terça-feira, 16 de julho de 2019

FIÓDOR DOSTOIÉVSKI: O ESCRITOR EM SEU CONTEXTO HISTÓRICO. Carlos Russo Jr.

O conjunto da vastíssima obra de Dostoiévski é tão atual quanto possam ser os tormentos da alma e os escaninhos de nosso subconsciente, pois de alguma forma a ele foi dado, como a poucos, o conhecimento do coração humano, cujas veleidades mais ocultas são postas a nu nos seus personagens.

É bem verdade que a arte de Dostoiévski não se direciona a todos os tipos de leitores. Ela se volta basicamente para espíritos que sejam ansiosos, aqueles que vivam sob as tensões existenciais paralelas às de seus personagens, ou, dito de outra forma, Dostoiévski busca leitores capazes de vivenciarem as paixões que chegam até eles pela literatura. E estes, ao descobrirem-no, sentirão que os romances do grande escritor russo agem de uma maneira hipnotizadora sobre si próprios. “Com uma volúpia consciente, diabólica, Dostoiévski retarda o momento em que seremos conquistados, levando-nos ao paroxismo da angústia interior”, sublinha Zweig.

Dostoiévski era politicamente um conservador, mas um conservador de talhe profundamente humanista. Em toda a sua imensa obra, ele propugna pela dignidade do ser humano, pelo amor ao próximo, pela fraternidade universal, expressando como ninguém o sentimento de com- paixão pelos fracos e oprimidos e pela redenção dos degradados sociais. Satiriza e ridiculariza como ninguém as vaidades, o consumismo, a corrupção social e a mediocridade das altas rodas.

Fiodor Dostoiévski nasceu em Moscou em 1821, filho de um médico de origem nobre e instruído, mas empobrecido, altamente depressivo e com acessos de cólera. A mãe era uma simples camponesa e dela pouco sabemos. Seu primeiro lar foi um hospital militar.

A infância de Dostoiévski passou-se sob a autocracia do Czar Nicolau I, celebrizado por Tolstói como Nicolau “Palkine”, o homem da palka, o espancador. Reinado marcado por uma política imperialista agressiva e guerras frequentes, assim como por uma repressão implacável. Época também de estagnação econômica e avanço de uma burocracia que perpetuava privilégios e impedia avanços burgueses e liberais.

Em 1833, o Czar fez formular aquele que seria seu programa de governo: "Autocracia, Ortodoxia e Nacionalidade". Estipulava que as pessoas deveriam mostrar lealdade à autoridade ilimitada do Czar, às tradições da Igreja Ortodoxa e, de uma forma mais vaga, à nação russa. Ademais, praticamente abolia a existência das diversas nacionalidades dentro do hemisfério russo.

Aos dezesseis anos morreu-lhe a mãe e o pai tomou a decisão de mudar-se com os filhos para o campo. Entregou-se logo após à bebida e em um de seus acessos coléricos terminou assassinado pelos próprios servos.

Fiodor estava matriculado na Academia de Engenharia Militar em S. Petersburgo. Considerado um jovem de poucos amigos, impetuoso e sensível, perdulário e ambicioso, saíra de algum modo ao pai. Era um leitor tão ardente quanto seu irmão Mikhail e não tardou para que se desinteressasse pela carreira militar e abraçasse a literária.

Em 1844, aos vinte e três anos, já o encontramos vivendo na pobreza daqueles que, sem fortuna, se dedicam aos livros. “Gente Humilde”, o primeiro romance, é inserido no romantismo da época e foi uma grande descoberta para a intelectualidade petersburguense. Na expressão do poeta Nekrassov, endossada pelo crítico Bielínski, surgia um novo Gogol!

Incentivado por todos a seguir a carreira literária, ao publicar seu segundo romance, “O Duplo”, onde principia a escrita sobre temas psicológicos, no caso a paranoia, sentiu que o êxito obtido principiava por escapava-lhe das mãos.

Chegamos, então, ao ano de 1848 e o espírito do tempo era o da revolta. Denominado de “A primavera dos povos”, o ano foi marcado por sublevações em quase toda a Europa. Neste mesmo ano, ocorre o lançamento do Manifesto Comunista de Marx e Engels: “Um fantasma ronda a Europa: o fantasma do comunismo”.

Dostoiévski, assim como muitos outros intelectuais russos, entusiasmou-se pelos temas libertários e foi fundada uma associação literária: o Círculo Petrachevski. Também é certo que, ademais do grupo literário, Dostoiévski participou de uma organização radical secreta, liderada por Nikolai Spechniev. Essa sua associação, por sorte, jamais chegaria a ser descoberta pelas autoridades czaristas.

Na Rússia aumentavam as perseguições aos intelectuais que clamavam por reformas liberalizantes. Nada melhor para o czarismo que inventar uma conjuração contra o Império, denominando-a de “Conspiração Petrachevski”. Desencadeada a repressão, esta redundaria no episódio mais terrível na vida de Dostoiévski, o qual marcou claramente todas suas obras futuras. O grupo Petrachevski foi preso e confinado na Fortaleza de Pedro e Paulo.

Dostoiévski manteve-se corajosamente calado em todo o interrogatório e ainda subscreveu uma petição reafirmando seus princípios liberais. Após oito meses em solitária, surgiu a principal acusação: haver lido em público uma carta aberta do escritor social- revolucionário Bielínski, então falecido, ao escritor Nikolai Gogol, na qual o autor de “Almas Mortas” era criticado por suas visões políticas e sociais conservadoras! E por esse único fato, Dostoiévski foi condenado à morte!

Já vendado, a comutação da sentença capital pelo Czar ocorreu no último momento. Dostoiévski foi, então, enviado à Sibéria para quatro anos de trabalhos forçados. A Bíblia foi o único livro que lhe permitiram levar no longo martírio da casa prisional, onde será uma sombra entre as sombras, sem nome, apenas um número, esquecido dentre tantos outros “mortos sem sepultura”.

Quando, chegando à Sibéria, os soldados tiraram-lhe das pernas feridas as correntes que as prendiam, o condenado de vinte e oito anos havia mantido intocável e indestrutível o desejo de vida, de escrever e de tudo anotar em sua prodigiosa memória para um dia servir-lhe de material de criação. E como lhe serviriam! Anos após, em 1862, surgiria o romance autobiográfico “Recordações da Casa dos Mortos”, um libelo contra a tortura e o genocídio nas prisões czaristas!

Em carta a seu irmão Dostoiévski comenta sobre o calvário vivido: “Não me abati e nem senti desânimo. A vida é vida em qualquer lugar, a vida está em nós mesmos e não fora de nós. Ao meu lado há pessoas e permanecer sempre, quaisquer que sejam os infortúnios, sem perder a coragem e cair no desânimo- eis em que consiste a vida, em que consiste seu objetivo.”

Os quatro anos de trabalho forçado mudaram física e intelectualmente o escritor. Ele desenvolveu os primeiros sintomas da epilepsia que o acompanhariam até a morte, e sua visão de mundo e dos homens tornou-se amarga e complexa, sepultando antigos ideais liberais.

Ao final do período, ainda cumprirá mais cinco anos como soldado na fronteira com a Mongólia, sendo-lhe proibida qualquer publicação.

No exílio, casa-se com a viúva de um amigo suboficial, Maria Dmitrievna, construindo um relacionamento desde logo conflituoso. Na própria noite de núpcias, Dostoiévski foi acometido por ataque epilético. Anos mais tarde, Maria em seu leito de morte confessa-lhe que sempre o havia traído, até mesmo naquela noite.

Decorridos nove anos, com a esposa e um enteado, Dostoiévski tem autorização para retornar do exílio à Petersburgo, já sob o reinado do novo Czar. Era o ano de 1859 e o clima intelectual na metrópole mudara. Havia um pouco mais de abertura, um novo nacionalismo de cor eslavófila se afigurava.

O período de 1859 a 1865 foram transformadores para Dostoiévski. Junto com seu irmão Mikhail, fundou a revista “O Tempo”. Em formato de folhetim, publicou seu novo livro: “Humilhados e ofendidos”.

Em 1862, pela primeira vez, aos quarenta e um anos de idade, Fiodor viajará à Europa onde descobrirá duas paixões: uma pela roleta e outra por Pauline Suslova, uma estudante russa liberada de preconceitos. Suslova, com seus dezesseis anos, torna-se amante do escritor que principiava a ser famoso. Mas a moça, rapidamente, o troca por um novo amor e ele, um ano após a partida, retorna à Rússia. Dostoiévski contraíra dívidas e quem o socorre com um empréstimo, que somente será pago nove anos depois, é o escritor Turguêniev.

Na volta à Petersburgo, aguarda-o a esposa tuberculosa, Maria Dmitrievna, e meses após, falece seu irmão Mikhail. A revista “O Tempo” é fechada pela censura. No entanto, o espírito inquieto de Dostoiévski decide abrir nova publicação: “A Época”. E o faz sob o assédio permanente de censores e de credores.

O destino reservava ao escritor um tempo de profunda solidão. Em 1864, após o irmão falece a esposa enfermiça. Dostoiévski, que sempre teve dificuldade em desenvolver relacionamentos interpessoais, encontra-se agora totalmente só. Solitário e com dívidas, tendo de cuidar do sustento de si mesmo, da família do irmão morto e do enteado.

É quando escreve “O homem do subterrâneo”, uma obra antirromântica de um pessimismo azedo, influência de seu estado de espírito depressivo e absoluto isolamento. Ora, eis uma obra absolutamente moderna, o princípio de nova forma literária confessional e irônica, prenunciando o Existencialismo com antecipação de meio século!

De todo os modos, as reformas de Alexandre II, apesar de modestas, eram uma prova evidente que o paquiderme- crocodilo do Estado Czarista poderia mover-se. E é nessa conjuntura que, surge “O crocodilo”, no qual Dostoiévski assinala mais uma nova senda literária futura: o Surrealismo. E será a ele que Kafka recorrerá ao escrever a “Metamorfose”.

Se por um lado, “O crocodilo” assinala o princípio da fase de maturidade criativa, em poucos de seus tantos escritos observamos um Dostoiévski mais livre, sarcástico, irônico e por que não dizer, bem humorado! Acontece que ele vivia uma realidade pessoal de todo modo nova: um novo casamento, em 1867, com a moça que ele contratara para a taquigrafia de “O Jogador” e das primeiras páginas de “Crime e Castigo”, a jovem Ana Grigorievna.

Fiodor logrou alcançar com Ana uma relação afetiva harmoniosa. Fugira da Rússia pelas dívidas que poderiam leva-lo à cadeia, e residia agora em Dresden com a família. Ana engravida pela segunda vez e nem os credores ou os censores oficiais lhe batiam mais à porta. Há algum tempo também deixara as roletas e os baralhos, considerando-se curado do antigo vício.

No tempo certo retorna a Petersburgo e seus últimos romances tiveram uma “editora” e “distribuidora” especial, a própria esposa. Dostoiévski não precisava mais vender direitos autorais antecipados; Ana administrava suas contas e a família podia até mesmo dar-se ao luxo de passar férias em uma dacha.

A cada palestra proferida pelo grande russo maior era o público, suas edições se esgotavam rapidamente. Surgiram um a um seus maiores trabalhos, considerados como os da maturidade artística, em ordem cronológica: “Crime e Castigo”, 1866/ 1868; “O Idiota”, 1869; “Os Demônios”, 1872; “O Adolescente”, 1875; “Os Irmãos Karamazovi”, 1881. Todas elas trabalhos monumentais que, literariamente, deram forma à espiritualidade do homem moderno.

Em 1880, participou da inauguração do monumento a Aleksandre Pushkin em Moscou, onde proferiu um discurso memorável sobre o destino da Rússia no mundo, premonitório da própria revolução de 1917. Em alta voz destacou a importância da união da humanidade, definindo-a como o único caminho para a sobrevivência harmoniosa. “Eles prometeram que não iriam mais odiar, mas simplesmente amar uns aos outros”, escreveu Fiódor Dostoiévski emocionado em carta à esposa Anna Dostoyevskaya, em junho de 1880. Em novembro deste mesmo ano, terminou de escrever "Os Irmãos Karamazovi".

Sua morte ocorre em Petersburgo no dia 10 de fevereiro de 1881, por hemorragia pulmonar associada ao enfisema. Um momento de dor muda varreu toda a Rússia. Das cidades mais distantes surgem enviados para prestarem uma última homenagem. A Rua do Ferreiro, sua residência e onde foi posta a câmara ardente, foi insuficiente para uma multidão de mais de sessenta mil pessoas que se comprimiu em cortejo até o Monastério de Alexandre Nevski, onde os restos mortais repousam.

Três semanas após seu enterro, o Czar Alexandre II sofreu um segundo atentado terrorista e também morreu. Foi coroado czar seu filho, Alexandre III que, ao estilo arquireacionário do avô Nicolau I, se encarregará de reverter a maioria das reformas liberalizantes realizadas pelo pai.

Essa foi a vida e o contexto histórico em que viveu um dos mais geniais escritores trágicos de todos os tempos: Fiódor Dostoiévski.




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