Em
1886, a Corte Suprema Americana, evocando a cláusula de “proteção igual”, da
14a. Emenda, decidiu que “um funcionário administrativo da Califórnia” era
obrigado a conduzir-se pelo princípio da “imparcialidade”, para deferir aos
chineses residentes no Estado os mesmos direitos deferidos aos nacionais,
concernentes às licenças para “abertura de lavanderias”, porque estes – como os
nacionais – tinham direito de “ganhar a vida”. Em 1896 esta mesma Corte, ao
tratar de um caso do Estado da Louisiana – referente a passageiro negro que
reclamou da “validade constitucional” de uma Lei que orientava o oferecimento
de acomodações “iguais mas separadas” nos seus trens- decidiu que esta regra de
“apharteid” não era inconsistente, juridicamente, frente à mesma Emenda.
Se
transportarmos o conteúdo destas decisões da Suprema Corte Americana para o
terreno do Brasil, poderemos fazer, em breve, a seguinte simulação dentro da
nossa própria dogmática constitucional: os processos contra Lula foram
acelerados, eles não revelaram nenhuma prova séria, a Constituição foi mudada,
através de interpretação forçada – para que as penas fossem cumpridas sem
trânsito em julgado – especialmente para prender Lula. Aécio, gravado pedindo
propina é candidato e está solto. Temer, gravado orientando uma empresa
corruptora, também está solto e continua Presidente. Bolsonaro, racista e
misógino, que prega seguidamente golpes de Estado está solto e é candidato.
A
mídia oligopólica, como se concluiu pela mais longa e odiosa campanha feita
contra um político popular, desde Getúlio, já comandou que Lula não pode
candidatar-se, mas o STF aceitará está ordem? Os mercados aqui no Brasil, como
em toda a América Latina, já tem o poder de “selecionar”, como diz Zaffaroni, e
o Sistema de Justiça, de criminalizar a quem lhe aprouver. Aquelas decisões da
Suprema Corte Americana, contraditórias entre si, mostram a grandeza e a
miséria do Direito: de um lado, considerando iguais perante o mercado os
chineses das lavanderias e, de outro, segregando os passageiros negros para
manter visível e funcional a hierarquia social instalada pela escravidão.
Afinal, esta construiu a identidade política da democracia americana, que conseguiu
combinar de forma perversa, ao longo de muitas décadas, a “imparcialidade”
formal com a igualdade hierarquizada e “separada”.
As
provas se tornaram secundárias, o tratamento igual tornou-se uma quimera e o
processo penal – neste caminho – pode tornar-se uma farsa grotesca, comandada
de fora do Direito, em função do projeto político que este oligopólio ajuíza
que é o melhor para seus interesses. Mas não nos enganemos, a taxa de
venalidade e subserviência que existe nas instituições de Justiça é a mesma que
existe em qualquer instituição pública ou privada que, em determinadas
circunstâncias históricas, torna dominante seus anti-valores. Jamais consegue,
todavia, destruir a consciência de todo mundo nem submeter completamente os
espíritos, de forma a aniquilar a grandeza que também existe em cada ser
humano, depositada no Direito e no senso de Justiça que ele carrega consigo.
O
registro da candidatura de Lula tornou-se hoje o ponto axial para as
verificação da potência real do nosso projeto democrático de 88: o STF vai
levar em conta os seus fundamentos – vincados na “inviolabilidade dos direitos”
e no “princípio da igualdade perante a lei” – ou vai adotar o caminho
delinquente da via “iguais mas separados”? No caso de Lula, separado da
política e da liberdade, para que os donos do poder e do convencimento
manipulado, entreguem o país aos donos do mundo capitalista e às agências
especulativas, que eles chamam malandramente de “mercado”.
* Tarso Genro
foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul, prefeito de Porto Alegre,
Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro das Relações
Institucionais do Brasil.
https://www.sul21.com.br/colunas/tarso-genro/2018/08/lula-grandeza-e-miseria-do-direito/
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