Subtítulo:
Raquel Dodge inventa dois novos crimes: hermenêutica e porte ilegal da fala!
Quem escapará?
A
esta altura, todos já estão cientes do imbróglio do dia 8 (domingo retrasado).
“Imbróglio”. Muitos vêm usando essa palavra, mas, em meio ao calor dos acontecimentos,
ainda no domingo, fui o primeiro a chamar o episódio de “o maior imbróglio
jurídico do século”. Pois é. A minha distópica coluna (podem ler de novo — é
quase a realidade!) da semana passada (que, em dois dias, teve 101.400
leitores!) já é uma decorrência desse imbróglio.
Relembro
do que escrevi e me manifestei em cinco rádios, três sites, um jornal e a
ConJur. Afirmei que a decisão do desembargador Favreto somente poderia ser
desconstituída dentro das regras processuais. E jamais um juiz — em férias —
poderia ter descumprido e armado um verdadeiro tendéu em torno do assunto,
demonstrando sua total parcialidade (veja-se nesse sentido a contundente
crítica de alguém que não pode ser considerado um homem de esquerda,
Bresser-Pereira, publicada em seu perfil no Facebook). Também errou feio o
relator, desembargador Gebram, que não tinha competência (avocação é coisa dos
tempos da ditadura), e o presidente do TRF-4, desembargador Thompson Flores,
quem jamais poderia ter decidido como decidiu. É como se ele fosse presidente
do STF e passasse a desconstituir — por discordância — os HCs concedidos em
plantão ou monocraticamente pelos ministros Marco Aurélio, Toffoli, Gilmar,
Lewandowski, Rosa Weber... Bem assim.
Decisão
judicial se cumpre, quem não cumpre comete crime de desobediência. Ou, quando a
decisão for contrária (i) à posição política do destinatário e (ii) à sanha
punitivista, aí pode descumprir?
Mantenho
tudo o que eu disse à primeira hora do dia 10. E acrescento: Playboy, amigo de
Beira-Mar, obteve um HC junto ao STF e acabou solto por engano pela
administração penitenciaria de Goiás. Uau. O mundo vai cair? Como o STF ousou
dar um habeas corpus e depois, por engano, o presídio o soltou, a partir do
mandado que a justiça federal de GO enviou? Calma. Sem problema. O STF pode dar
HC à vontade. Se o ministro, monocraticamente, decide assim, só outra instância
para derrubar o HC. E ninguém pensou nisso. Claro que, no caso, houve erro da
administração. Alguém poderia dizer: mas como um bandido como Playboy recebe um
HC, com tantos outros processos pendentes?
O Ministro do STF deveria saber que... Ora, o ministro só examina o caso
concreto. Aquele específico. Por isso, o Direito é um fenômeno complexo. Ele
não é um fenômeno causal(ista). É sempre imputacional. Por isso o processo é
forma (dat esse rei).
Favreto
também estava convencido de que havia fatos novos (questões eleitorais etc. —
afinal, a juíza não decidia nunca e acabou, logo depois, decidindo) e concedeu
o HC. Como faz qualquer juiz ou desembargador... Plantonista. Por exemplo, um
desembargador do TJ-SP — monocraticamente — decretou prisão preventiva de um
mendigo de ofício... Em sede de HC. Crime de hermenêutica? Quando o banqueiro
Cacciola recebeu HC em 2007, houve crime de hermenêutica? Ah, bom: agora a
questão envolve política. E envolve Moro e outros. E Moro é intocável.
Ilegalidade de Moro é chamada de “agir prudente”. Nosso Eliot Ness de toga. Por
isso, quem o desgostar pode responder por dois crimes: porte ilegal da fala e
crime de hermenêutica. E Raquel Dodge manejará a denúncia.
Ora,
dezenas ou centenas de erros e acertos são cometidos pelo Judiciário todos os
meses. Coisas horrorosas como (i) inversão do ônus da prova, (ii) prisão de
ladrão de galinhas, (iii) prisão de ofício, que nem foi pedida pelo MP, (iv)
benesses para sonegadores e contrabandistas etc. Isso sem falar no que se faz
nos juizados (que é um território à parte no Direito) e na área cível. E isso
não causa espécie. Algum crime de hermenêutica nesse conjunto cotidiano de
decisões?
Aliás,
nesse episódio todo, o vencedor... Fui eu. Mas eu lamento ter vencido. E
explico por que. Fui, sou, o mais candente crítico do fantasma do livre
convencimento. Já escrevi mais de 2 mil páginas criticando e demonstrando a(s)
inconsistência(s) epistêmica(s) desse “instituto” brasileiro, demasiadamente
brasileiro. É uma katchanga real. Com o LC é possível fazer qualquer coisa.
Essas mais de 2 mil páginas estão em livros, artigos, estão aqui na própria
ConJur. Agora mesmo, estamos — Dierle Nunes, George Salomão e eu — lançando
todo um livro dedicado ao assunto.
Afinal,
por que eu lamento? Vejamos.
Vou
explicar essa coisa do LC melhor. Vejam que interessante (pau que bate em
Chico, na hora de lanhar Francisco, há uma rebelião dos chicoteadores): quando
da discussão do projeto das “10 medidas” (na verdade, lacanianamente,
desmedidas), o MPF e os juízes estavam preocupados porque, em um contraponto,
os deputados decidiram dar mais responsabilidade aos juízes, criando algumas
medidas que impedi(ri)am suas eventuais manifestações contra legem. Isso está
na mídia da época, basta procurar. Aqui, por exemplo, o projeto é noticiado e
discute-se o “crime de hermenêutica”, lembram?
É
impossível não questionar: o tal “crime de hermenêutica” não servia para punir
o abuso de autoridade... Mas agora, para retaliação, serve? Hein? Dra. Raquel
Dodge, falei para a senhora contratar um estagiário que procedesse como o
escravo nos tempos de Roma, que lhe dissesse, a cada cinco minutos: “Lembra-te
da Constituição” — escrevi aqui —, e a senhora sucumbiu à política. Chame o
estagiário de volta, doutora. Sim, Dodge protestou contra a emenda de Requião e
agora surfa na onda do crime de hermenêutica, porque agora é... Bem, o leitor
completa a frase. Isso tem nome: lawfare.
Aos
que ainda não entenderam, torno mais claro. Trago isso tudo para demonstrar
que, de novo, o Direito foi esquecido. Foi predado pela política. O “crime de
hermenêutica” era, e é, uma questão clara e puramente política. Assim como
também o é o livre convencimento.
Explicitando
ainda mais: ninguém tinha qualquer problema com o LC até agora, afora eu e
alguns juristas que cabem em uma Kombi — com motorista. Estou falando nisso há
anos, e ninguém parecia dar a mínima. Ajudei a tirar o livre convencimento do
CPC. A resposta da dogmática: “Humpf... [onomatopeia] Isso não existe. Claro
que juiz tem livre convencimento”. Pois é. Então agora virou problema? Daí,
tem-se que ele só é bom se contenta o emissor. O LC é apoiado, aplaudido...
Desde que a decisão que esteja nele baseada seja a favor da opinião política
daquele que discute. A PGR Raquel Dodge e outros são a favor do LC... Mas só se
ele for exercido em favor do que ela e outros pensam. Simples assim.
Um
pouco de história faz bem. Falo do mensalão. Como em 2012, o LC é ótimo...
Quando é para condenar. Pra absolver? Que absurdo! O ministro Lewandowski sabe
bem disso, quando escrevi artigo mostrando exatamente isso: todos eram a favor
do LC; quando o ministro Lewandowski invocou o LC para absolver, o mundo caiu.
Escrevi, então, dizendo: ora, o LC só serve para condenar?
Torno
ainda mais claro, porque meu ponto hoje é muito simples: se abrirmos qualquer
site de tribunal, inclusive do STF, o LC é sobranceiro. E como se invoca essa
entidade metafísica. Problemas para justificar o não deferimento de embargos?
Simples: basta dizer que usou o LC. Condenou bem ou condenou mal? Basta dizer
que a condenação ou absolvição se deu por LC. Daí, pergunto: se a moda vale,
Favreto não tinha livre convencimento? Quer dizer então que, agora, acabou o
LC? Por mim, o LC nunca deveria ter existido... Mas já que...!
Juridicamente,
a coisa é simples: nesse caso Favreto-Lula-Moro-Gebram-Thompson,
dogmaticamente, quando alguém não concorda com uma decisão (quantas decisões
acertam ou erram por dia Brasil afora?), somente dentro das regras do jogo é
que a polêmica poderia ter sido derrubada. Mas nunca do modo bizarro como foi.
E
atenção. Para quem acha que qualquer opinião no sentido de que Favreto era
competente é um absurdo jurídico (como diria o ministro Gerson Camarotti, da 3ª
Turma do STF, apoiado por alguns professores do RJ, “quem concorda com Favreto
é esquerda, ‘petralha’, adjetivos desse jaez), o painel da Folha de S.Paulo de
segunda-feira (16/7) dá conta do que minhas fontes já revelavam durante a
semana:
“Desembargadores
do TRF4 divergem sobre a atitude do Des. Favreto, que mandou soltar o
ex-presidente Lula num domingo de plantão. Parte entende que ele tinha
competência para decidir o HC — embora discorde dos argumentos para a
liberação. [...] O pedido de abertura de inquérito contra Favreto também divide
o TRF4. Desembargadores dizem que, se a investigação prosperar, será criado um
clima de que todo juiz que decida a favor de Lula está sujeito a punição”.
Pois
é. Se ele era plantonista, tinha competência, sim. Plantonista é o único que
tem competência. Em qualquer foro, tribunal, inclusive no STJ. Laurita Vaz,
presidente do STJ, concede HC em plantão (atenção: a mesma presidente Laurita
quem diz que a pena restritiva de direitos não pode ser executada após sentença
de 2º grau — ou seja, para ela, prisão, que é grave, pode remeter o sujeito
direito ao ergástulo depois do segundo grau — diz também e ao mesmo tempo que o
menos, restrição de direitos, não pode executar: nesse caso, a colegialidade
[sic] do STF não vale; mas quando é Favreto-Lula, aí não pode?). Afinal, qual é
a diferença do que fez Favreto com o que fez Laurita? Se vale a decisão do STF
para execução de pena, por que não valeria para restrição de direito, que é o
menos? Laurita, então, decidiu contra o que decidiu o STF. Imaginem se algum
ministro do STJ, não concordando com o posicionamento da ministra Laurita,
resolvesse desconstituir a decisão da plantonista?
De
todo modo, tranquilizemo-nos: sou libertário e garantista; sou totalmente a
favor de Laurita e de Favreto e digo: que bom que existem plantonistas nos
tribunais. Ruim é qualquer juiz ou desembargador ou ministro que não goste da
decisão do plantonista decidir, a manu militari, o não cumprimento. Ou avoquem
o feito. Aí a emenda sempre é pior que o soneto.
Ah,
erros e acertos judiciários. Crime de hermenêutica? Livre convencimento? O
ex-prefeito de Petrópolis teve seus bens bloqueados por quatro anos e agora foi
absolvido pelo STJ (aqui). O TJ-RJ cometeu crime de hermenêutica? Oh, céus!
Pois é. E de onde Raquel Dodge e os que pensam como ela mudaram tão
radicalmente de ideia sobre crime de hermenêutica a ponto de, depois de serem
radicalmente contra, agora usarem a tese como retaliação a Favreto? Que tal
usar a tese contra o ex-procurador-geral da República (Janot) quem, depois de
pedir a prisão de políticos como Sarney, pediu o arquivamento... Por total
ausência de provas? Oh, céus. E o que dizer do caso Cancellier? Crime de
hermenêutica da PF, do MPF e do PJ? Qual a pena? Oh, céus. E o caso da operação
carne fraca, que causou prejuízo de bilhões de reais ao país? Organização
criminosa cometendo o tipo penal-interpretativo de “crime de hermenêutica”? Ou,
como ele foi cometido por aliados, aí não vale? E o que dizer das centenas de
conduções coercitivas, declaradas inconstitucionais pelo STF? Crime de
interpretação? Clareza do CPP... Violada por juízes. Aliás, Moro foi o primeiro
violador do CPP. Contra a letra do CPP, vale crime de hermenêutica? Pois é. E
os mais de 70 executivos da Odebrecht que fizeram acordo de delação sem
denúncia e sem processo? Crime de hermenêutica? Qualificado? E as condenações
revertidas pelo STF de casos baseados só na palavra do delator? Quem paga o
prejuízo? O FAMCH (Fundo de Arrecadação das Multas do Crime de Hermenêutica)?
Ora,
senhoras e senhores. Um dia de ConJur derruba todos os argumentos de Raquel,
Moro e os que pensam como eles. Peguemos a edição de terça-feira (17/7). “Sem
aviso nem despacho, juíza do RJ bloqueia bens em 7 mil execuções”. Será
que algum colega dela, ao achar um absurdo a decisão, a desconstituiria? Ou o
presidente do TJ-RJ avocará? Crime de hermenêutica, dra. Raquel? E que tal
outro “crime de hermenêutica”? Leiam: “Juiz do DF reconhece duas uniões
estáveis simultaneamente”. Baseado em quê? Não opinião pessoal dele.
Livre convencimento? Dra. Raquel, vejo indícios de crime de hermenêutica... Ou
não. Afinal, Direito é um fenômeno complexo.
Portanto,
cuidado, muito cuidado. E se a própria Raquel Dodge for acusada de cometer
crime de hermenêutica toda vez que tiver que requerer arquivamento de uma
investigação da qual resultou pedido de prisão e a prova nada apontou, como no
caso Sarney (aqui)? Seria péssimo, não? E se olharmos para trás, quantos crimes
de hermenêutica encontraremos no ato de autoridades? Com efeito ex tunc.
Quantos réus haveria por crime de hermenêutica ou por “porte ilegal da fala”...
A ver (sem h).
Post
scriptum: Tivesse o STF decidido as ADCs (43,44 e 54), nada disso teria
acontecido. Ups. Mas a presidente do STF tem livre convencimento e
discricionariedade (o que dá no mesmo) para decidir a pauta... Por isso, as
consequências vêm sempre depois, como dizia o Conselheiro. Não seria melhor que
fossemos ortodoxos no cumprimento das leis e da CF? Não seria melhor que os
juízes não tivessem LC? Não seria melhor cumprirmos à risca as leis?
O
LC é autocontraditório. Autoimplosivo. Aliás, esse episódio jogou uma bomba na
tese do LC. Alguém com LC pode ser processado por ter tido LC por alguém que
usa o LC para dizer o que é LC... E o resultado tanto faz, porque o julgamento
será por LC e o recurso será apreciado por LC, sendo que alguém poderá vir
correndo e dizer que nem sequer o primeiro processo poderia ter sido feito
porque o LC não era livre... E o final é o suicídio epistêmico. Enquanto não
cumprirmos dispositivos como o 926 do CPC, o 93, IX da CF e pensarmos que cada
“cabeça é uma sentença” (germe do LC), esta(re)mos fragilizando mais e mais a
democracia. O custo é altíssimo. E não sei se teremos capital simbólico para
pagar a conta. Aliás, a conta está aí. E não inclui os 10%.
Minha
tese: bem que poderíamos aprender um pouco com isso, não?
Super
Post scriptum: Crime de hermenêutica foi o que Rui Barbosa disse acerca da
acusação ao seu cliente, o Juiz gaúcho Alcides de Mendonça Lima, em 1897
condenado por fazer controle difuso de constitucionalidade de uma lei sobre o
júri. A lei foi editada no governo de Julio de Castilhos, sobre o qual é
despiciendo falar. Lima foi suspenso por 9 meses pelo Superior Tribunal de
Justiça do RS. Recorreu ao STF e Rui Barbosa foi seu advogado, sustentando a
tese do crime de hermenêutica. Foi absolvido no STF. Pois a sentença de
Mendonça Lima - que lhe rendeu a suspensão - pode ser considerado o precedente
do controle difuso no Brasil. Nesse sentido, ver excelente texto de Maria
Fernanda Salcedo Repolês "O Caso dos crimes de hermenêutica: precedente do
controle difuso de constitucionalidade no Brasil", publicado nos anais do
XVIII Congresso Nacional do Conpedi, em 2009. Bingo, Maria Fernanda!
Lenio Luiz Streck é jurista,
professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-jul-19/eis-questj-trf-mpf-implodiram-livre-convencimento
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