Ao
longo da história, não há movimento autoritário que não tenha contado com o
apoio de considerável parcela de juristas e juízes. Hitler, por exemplo, não
cansava de agradecer o apoio dos juízes alemães. Esse fenômeno da adesão de
juristas a regimes autoritários, prontos para justificar as maiores violações
aos direitos humanos, foi estudado e diversos livros foram publicados sobre o
que entrou para a histórica como “os juristas do horror”.
No
Brasil pós-golpe não é diferente. Não faltaram “juristas” para justificar a
“legalidade” de um impeachment sem a existência de um verdadeiro crime de
responsabilidade. Também nunca faltaram “juristas” para defender a “legalidade”
do encarceramento de multidões, pessoas que não interessam aos detentores do
poder econômico, em desconformidade com a Lei de Execuções Penais. Há,
inclusive, “juristas” que defendem a “legalidade” de atos praticados por juízes
de férias e em violação às regras de competência, que existem (e deveriam ser
respeitadas) justamente para evitar arbítrios e violações à impessoalidade.
Mais
grave: muitos “juristas” passaram – para agradar aos detentores do poder,
inclusive aos interesses dos meios de comunicação de massa – a defender a
violação aos limites semânticos impostos pelas leis, como no caso da
relativização do princípio constitucional da presunção de inocência.
Como
na Alemanha nazista, “juristas” passaram a defender a necessidade de ouvir “a
voz do povo” para decidir de acordo com a “vontade popular”. Se antes a “voz do
povo” era identificada com a opinião do Führer, hoje, “a voz do povo” é a
opinião dos próprios juízes, os Führer dos processos, que, muitas vezes, não
passa da opinião dos grupos econômicos que detêm os meios de comunicação.
O
exemplo mais significativo da ascensão do autoritarismo pela via judicial está
no complexo de ações que passou a ser conhecido como “caso Lava Jato”. No
âmbito dessa operação, que também virou uma mercadoria e foi vendida pela
propaganda do poder econômico como “a maior ação de combate à corrupção no Brasil”,
diversos procedimentos se caracterizaram pela violação aos limites legais e
éticos que definiam a democracia.
Em
outras palavras, a pretexto de combater a corrupção, a Operação Lava Jato
revelou-se um instrumento de corrupção da democracia. Os princípios e as regras
constitucionais, que foram conquistas civilizatórias e serviam como garantia
contra a opressão e o arbítrio, passaram a ser ignoradas por juízes,
procuradores e ministros, sob os aplausos de uma mídia que, em grande parte,
segue fielmente as lições de Goebbels.
Nesse
momento, vale lembrar que o “combate à corrupção” foi uma das principais
bandeiras do nacional-socialismo e responsável pela adesão popular ao nazismo,
embora pesquisas recentes revelem que nazistas enriqueceram por vias ilegais.
Os “moralistas” de lá, assim como os daqui, se revelaram uma fraude.
Ao
longo da história do Brasil, o “combate à corrupção” sempre foi um exemplo de
sucesso como arma política contra inimigos dos detentores do poder econômico
(Vargas, Jango, Lula e Dilma), mas um fracasso do ponto de vista de diminuir ou
recuperar os prejuízos causados ao erário público. Vários exemplos poderiam ser
citados, mas basta acessar os dados que demonstram que todos os valores que
seriam objeto de corrupção apontados pelos “juristas” que estão à frente da
Lava Jato são bem inferiores aos prejuízos suportados pela economia brasileira
em razão da maneira como foi conduzida a operação.
Em
outras palavras, diante dos descuidos dos neoinquisidores brasileiros, os
efeitos negativos da Operação Lava Jato para a economia são bem superiores à
recuperação dos ativos. O Brasil se deu mal com a Lava Jato, mas muitos donos
do poder econômico se deram muito bem.
Se
fosse apenas um fracasso em termos de defesa dos interesses nacionais, a Lava
Jato já seria um problema. Mas, ao desconsiderar sistematicamente a
Constituição da República e a legalidade democrática, instaurar perseguições
penais extremamente seletivas, manipular a opinião pública (aliás, estratégia
admitida pelo juiz Sérgio Moro em um dos poucos, senão o único, artigo
acadêmico conhecido de sua lavra) e violar direitos e garantias fundamentais, a
Operação Lava Jato contribuiu decisivamente para o crescimento do pensamento
autoritário e para a naturalização das ilegalidades estatais em nome de uma
“boa intenção”, daquelas que enchem o inferno.
A
Lava Jato transformou-se em uma ode à ilegalidade seletiva dos donos do poder.
Dentre tantos exemplos, pode ser citado o vazamento ilegal – trata-se de um
fato típico penal – das conversas do ex-presidente Lula e da presidenta
democraticamente eleita Dilma Rousseff, por obra do juiz Sergio Moro, que –
inacreditavelmente – continuou a julgar o ex-presidente, a vítima dessa conduta
vedada pelo ordenamento brasileiro, com a – inacreditável – aquiescência de
outros órgãos do Poder Judiciário.
A
lógica que direciona a atuação na Operação Lava Jato é tratar tudo e todos como
objetos negociáveis. Nesse sentido, viola a ideia iluminista da dignidade da
pessoa humana. Pessoas voltaram a ser presas para delatar outras pessoas, como
acontecia na idade média. Trocaram-se apenas as bruxas por políticos
indesejáveis aos olhos dos detentores do poder. A verdade e a liberdade,
valores da jurisdição penal democrática, foram transformadas também em mercadorias.
Em
delações premiadas sem suficientes limites epistêmicos e legais, a verdade,
sempre complexa, acaba substituída pela “informação” que confirma a hipótese
acusatória e que já foi assumida como a “adequada” por juízes e procuradores.
Trata-se de um novo fundamentalismo, que não deixa espaço para dúvidas, uma vez
que trata a mera hipótese acusatória como uma certeza, ainda que delirante.
Pessoas são postas em liberdade ou tem a pena reduzida se falam aquilo, e
somente aquilo, que os neoinquisidores querem ouvir.
A
necessária luta contra a corrupção foi distorcida. Criou-se um mundo pelo
avesso no qual os direitos e garantias fundamentais, condições para uma vida
digna, passaram a ser vistos como impedimentos à eficiência punitiva e ao
crescimento do Estado Penal.
Um
mundo pelo avesso no qual cumprir a Constituição é visto com desconfiança ao
mesmo tempo em que se celebram as pessoas que violam os limites democráticos.
Resistir ao crescimento do autoritarismo é também resistir à lógica de um poder
sem limites em um mundo em que a pós-verdade tornou-se tão aceitável quanto à
restrição ilícita da liberdade.
Nesse
contexto, figurar como réu em um processo pode significar apenas que alguém foi
escolhido como objeto de ódio ou perseguição.
Por Marcia Tiburi, na
Revista Cult
https://revistacult.uol.com.br/home/lava-jato-e-o-fascismo-marcia-tiburi/
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