Massacre
do Carandiru, São Paulo, 1992, 111 presos mortos. Rebelião no Anísio Jobim,
Manaus, 2017, 56 mortos. Neste intervalo de 25 anos que separa as duas
tragédias a população carcerária aumentou mais de 400% no país, de acordo com
um levantamento do Ministério da Justiça. O Brasil empilha presos nas cadeias,
penitenciárias e presídios do país como sacos de lixo no Leblon ou nos Jardins.
Em nome da guerra às drogas, pretos e pobres são jogados atrás das grades para
o conforto de grande parte da sociedade que prefere dar as costas para a
miséria brasileira.
Em
2014, eram 622.202 presos no Brasil. Naquele ano, o país estava na quarta
posição, atrás de Estados Unidos, China e Rússia. No entanto, os três países
que lideram a lista estão com os números estáveis.
Há
mais de 15 anos o professor Ignácio Cano se dedica ao aprofundamento do estudo
sobre violência por meio do Laboratório do Estudo da Violência (LAV) que criou
na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e é hoje uma das mais
respeitadas referências do país no assunto. Ele defende o fim da política atual
de guerra às drogas e a descriminalização de todas as substâncias
entorpecentes.
Confira
a entrevista que o professor concedeu à Fórum sobre o assunto.
Muitos
especialistas apontam a Lei de Drogas brasileira como a responsável pelo
aumento do encarceramento em massa no país ao dar poder exclusivo ao policial
para dizer quem é traficante e quem é usuário devido à dubiedade do texto. O
senhor compartilha deste pensamento?
A
questão é ainda mais profunda. Está relacionada à equivocada política de guerra
às drogas no país. As pessoas sempre consumiram drogas ao longo da história da
humanidade. A repressão ao comércio de drogas não traz outra consequência senão
encher as prisões e tirar recursos dos verdadeiros problemas de segurança. Se
você perguntar às pessoas qual é o medo maior que elas têm, vão responder que é
de ser assaltado e, aqui no Rio, ficar no meio de um tiroteio. Os tiroteios
acontecem por causa dessa luta contra drogas e não pelo comércio. Recursos que
poderiam ser dirigidos para o enfrentamento dos crimes que realmente causam
alarme social são dirigidos nessa luta às drogas. São recursos que poderiam
estar numa política de melhoria da vida carcerária. No entanto, as prisões
ficam superlotadas de gente que está apenas fazendo comércio de drogas. Pessoas
que não representam um perigo para ninguém. Está tudo errado desde o início,
embora seja verdade também que a indefinição legislativa entre tráfico e uso é
um problema sério. As mudanças legislativas que foram feitas nos últimos anos,
supostamente para aliviar a situação dos usuários e agravar ao tratamento penal
dos traficantes, transformou mais gente em traficante. Em vez de esvaziar as
cadeias, tiveram o impacto contrário.
E
esse combate às drogas guarda um recorte social e racial. O usuário de drogas
sintéticas na boate da Zona Sul acaba por não receber o mesmo tratamento que o
usuário de maconha no Morro do Alemão, por exemplo.
Uma
pesquisa recente da Defensoria Pública do Rio mostra que a chance de você ser
tipificado como traficante ao portar determinada quantidade de drogas varia
conforme a região onde você mora na cidade. O fato de ser morador de favela
significa uma associação ao tráfico apenas por ser morador de favela. É um sistema
seletivo contra as populações pobres.
O
Brasil deve se tornar nos próximos anos o país com a maior população carcerária
do mundo. O que o senhor acredita que deva ser feito para reverter essa
escalada?
A
lei teria de mudar para favorecer a redução de danos e, no momento posterior,
deveria-se descriminalizar as drogas. Tornar as drogas um problema apenas de
saúde pública, que é o que elas são. Tirar a competência dos juízes, dos
policiais. As drogas têm de ser tratadas como o tabaco, como o álcool. O grande
sucesso na prevenção de drogas, nos últimos anos, tem sido o tabaco porque não
há uma abordagem criminal, mas sim campanhas de conscientização. É isso que tem
conseguido diminuir o uso de tabaco sem que ninguém vá para a cadeia por isso.
A
guerra às drogas será vencida por meio da vitória na guerra de narrativas?
Acho
que a gente tem que parar de usar a metáfora da guerra para tudo que a gente
faz. Eu não aspiro a uma guerra de narrativas, aspiro a novas narrativas que
mostrem que a vida seria bem mais fácil se a gente descriminalizasse.
Continuaria havendo o problema da saúde pública, que não desaparece com ou sem
proibição, mas os custos sociais, em termos de violência, em termos de
corrupção, claramente seriam menores. O exemplo do Uruguai e dos Estados Unidos
vão acabar gerando uma mudança de lei. O que eu temo é que essa mudança de lei
seja só para a maconha, quando, na verdade, o princípio é geral. Muitos
usuários de maconha defendem que a droga seja liberada, mas construindo um
discurso em contraposição ao crack e à cocaína. A gente tem de fugir desse tipo
de argumento e entender que a criminalização de qualquer substância é negativa.
A gente não criminaliza chumbinho. A gente não criminaliza veneno. Se o veneno
pode ser comprado, por que uma substância com fins recreativos não poderia ser
comprada?
Os
defensores da política de repressão às drogas dizem que com o acesso às drogas
liberado, haveria um aumento do número de dependentes químicos no país. A
criminalização atrai a juventude, pela rebeldia da idade. O saldo nós não
saberíamos qual seria, mas uma coisa é certa: mesmo que aumentar o consumo, os
males para a sociedade seriam menores que o mal atual em termos de violência e
da corrupção.
Parte
da sociedade carioca que viveu os anos 80 costuma atribuir ao governo de Leonel
Brizola o crescimento da violência no estado. Ficou no inconsciente coletivo a
frase “polícia, no meu governo, não sobe morro”. No entanto, o governo de
Moreira Franco, posterior ao Brizola, que prometeu acabar com a violência em
seis meses com uso da força repressiva também fracassou. A frase completa é
“Polícia não sobe morro sem autorização”. As pessoas cortam a frase pela metade
e atribuem ao Brizola todos os males subsequentes. Foi a guerra às drogas que
tornou as bocas de fumo autênticos bunkers. A ideia de que o Brizola causou
isso tudo é uma fantasia que reforça o modelo criminalizador. O que pretendia o
coronel Nazaré Cerqueira, comandante da Polícia Militar na época, era evitar as
operações comandadas por policiais corruptos que são realizadas apenas para
aumentar o valor da cobrança do arrego.
A
operação no Complexo da Maré que resultou na morte do menino Marcos Vinícius
parecia totalmente sem controle. Policiais atirando do alto de um helicóptero,
fora do escopo do uso de uma aeronave de apenas acompanhar o trabalho dos
policiais. O Estado perdeu o controle sobre a polícia?
Em
alguns momentos há um certo elemento de descontrole, mas o que está por trás
disso é essa guerra às drogas, é pior que descontrole. É a política oficial de
guerra às drogas que acaba por resultar na morte de pessoas inocentes.
A
corrupção policial acontece em todos os lugares do mundo. Por que na América
Latina, particularmente no Brasil, ela se torna mais visível e com
consequências catastróficas para a sociedade?
Estados
fracos, salários baixos para policiais e um nível de corrupção do aparato
estatal muito alto. A corrupção não é só na polícia. As instituições nesse país
são corruptas. As empreiteiras, as empresas de carne são corruptas. Neste
cenário, não é de se espantar que a polícia seja corrupta. A corrupção é um mal
endêmico do Estado brasileiro.
No
cenário político atual, como viabilizar a construção de uma política nacional
de direitos humanos para a população carcerária? Estamos diante de uma utopia?
A
curto prazo, as perspectivas não são positivas porque o que nós temos observado
no Brasil e no mundo é o crescimento das forças autoritárias, truculentas,
dispostas a sacrificar direitos individuais em prol de uma segurança que nunca
chega. Estamos num momento em que o objetivo estratégico é não perder mais
direitos. Os setores que dominam essa pauta no Congresso Nacional são
extremamente conservadores, reacionários, que estão tentando impor uma agenda
regressiva. Não vejo uma perspectiva de melhora, a curto prazo, sobretudo no
que depender do Legislativo.
https://www.revistaforum.com.br/brasil-um-pais-de-encarcerados/
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