A
possibilidade de futuro passa por estarmos abertos ao imprevisível, afirma o
filósofo italiano Franco Berardi. Entre alertas e críticas, diz-nos que a UE
apenas tem contribuído para o empobrecimento sistemático dos europeus.
A
trajetória de Franco Berardi é no mínimo eclética. Na década de 60, ingressa no
grupo Poder Operário, quando estudava na Faculdade de Letras e Filosofia da
Universidade de Bolonha, onde se licenciou em Estética. Em 1975, funda a
revista “A/Traverso”, que se transforma no núcleo do movimento criativo de
Bolonha, e centra o seu trabalho intelectual na relação entre tecnologia e
comunicação. Em finais da década de 70 exila-se em Paris e, posteriormente,
ruma a Nova Iorque. Quando regressa a Itália, em meados dos anos 80, publica o
artigo “Tecnologia comunicativa”, que preconiza a expansão da internet como
fenômeno social e cultural decisivo.
Com
vasta obra publicada, o filósofo italiano e professor de História Social dos
Media na Accademia di Brera, em Milão, continua a refletir sobre o papel dos
media e da tecnologia de informação no capitalismo pós-industrial, a
precariedade existencial e a necessidade de repensarmos “o nosso futuro
econômico”.
O
acrônimo inglês TINA – There Is No Alternative [não há alternativa] – é usado
recorrentemente para justificar a necessidade de trabalhar mais e de aumentar a
produtividade. Na sua opinião, não há mesmo alternativa?
Esse
tem sido o discurso dos líderes políticos nos últimos 40 anos, desde que
Margaret Thatcher declarou que “a sociedade não existe”. Existem apenas
indivíduos, empresas e países competindo e lutando pelo lucro. É este o
objetivo do capitalismo financeiro. E com esta declaração foi proclamado o fim
da sociedade e o início de uma guerra infinita: a competição é a dimensão
econômica da guerra. Quando a competição é a única relação que existe entre as
pessoas, a guerra passa a ser o ‘ponto de chegada’, o culminar do processo.
Penso que, em breve, acabaremos por assistir a algo que está para além da nossa
imaginação…
O que pode pôr em causa o
capitalismo financeiro? Enfrenta alguma ameaça?
A
solidariedade é a maior ameaça para o capitalismo financeiro. A solidariedade é
o lado político da empatia, do prazer de estarmos juntos. E quando as pessoas
gostam mais de estar juntas do que de competir entre si, isso significa que o
capitalismo financeiro está condenado. Daí que a dimensão da empatia, da
amizade, esteja a ser destruída pelo capitalismo financeiro. Mas atenção, não
acredito numa vontade maléfica. O que me parece é que os processos tecnológico
e econômico geraram, simultaneamente, o capitalismo financeiro e a aniquilação
tecnológica digital da presença do outro. Nós desaparecemos do campo da
comunicação porque quanto mais comunicamos menos presentes estamos – física,
erótica e socialmente falando – na esfera da comunicação. No fundo, o
capitalismo financeiro assenta no fim da amizade. Ora, a tecnologia digital é o
substituto da amizade física, erótica e social através do Facebook, que
representa a permanente virtualização da amizade. Agora diz-se que é preciso
“consertar o Facebook”. O problema não está em “consertar” o Facebook, mas sim
em ‘consertarmo-nos’ a nós. Precisamos de regressar a algo que o Facebook apagou.
O pensamento crítico pode
ajudar a “consertarmo-nos”?
Não
há pensamento crítico sem amizade. O pensamento crítico só é possível através
de uma relação lenta com a ciência e com as palavras. O antropólogo britânico
Jack Goody explica na sua obra “Domesticação do Pensamento Selvagem” que o
pensamento crítico só é possível quando conseguimos ler um texto duas vezes e
repensar o que lemos para podermos distinguir entre o bem e o mal, entre
verdade e mentira. Quando o processo de comunicação se torna vertiginoso,
assente em multicamadas e extremamente agressivo, deixamos de ter tempo
material para pensarmos de uma forma emocional e racional. Ou seja, o
pensamento crítico morreu! É algo que não existe nos dias de hoje, salvo em
algumas áreas minoritárias, onde as pessoas podem dar-se ao luxo de ter tempo e
de pensar.
No
seu livro “Futurability – The Age of Impotence and the Horizon of Possibility”
(2017) escreve que o paradoxo da automação sob o capitalismo reside no fato de
“chantagear os trabalhadores a trabalharem mais e mais depressa em troca de
cada vez menos dinheiro, numa luta impossível contra os robôs”.
Não há pensamento crítico sem
amizade. O pensamento crítico só é possível através de uma relação lenta com a
ciência e com as palavras – Franco Berardi
Há
pelo menos 20 anos que isso acontece um pouco por todo o lado, Europa incluída.
Importa dizer que a União Europeia (UE) não existe ao nível político, apenas ao
nível financeiro. Aliás, a função da UE tem sido, e continua a ser, a de
obrigar as pessoas a trabalhar mais em troca de salários cada vez mais baixos.
Estamos a falar num empobrecimento sistemático. Mas o desenvolvimento
tecnológico, em si mesmo, não é uma coisa má, pelo contrário. O problema está
na forma como o capitalismo organiza as possibilidades tecnológicas de maneira
a cairmos numa armadilha. O que quero eu dizer com isto? Que somos levados a
pensar que a liberdade advém do trabalho e do salário. Que somos obrigados a
pensar que a tecnologia é uma ferramenta para a acumulação, o lucro. Ora, é
difícil sair de ‘armadilhas mentais’ como esta.
Considera que o futuro pode
passar pela criação de um Rendimento Básico Incondicional (RBI)?
Defendo
um rendimento básico ‘incondicional’, sublinho, para permitir a sobrevivência
social. Todos temos o direito a existir. Mas esse rendimento não está
relacionado com a disponibilidade de cada um para trabalhar. É precisamente o
contrário, pois trata-se de uma ferramenta mental e epistemológica que tem como
objetivo emancipar a sociedade da necessidade de um salário. A verdade é que já
não precisamos de ter um salário, porque as máquinas fazem o trabalho por nós.
Ou seja, ficamos libertos – e não é para passar o tempo a dormir ou sem fazer
nada – para fazer aquilo que as máquinas não conseguem fazer: ensinar
matemática às crianças, curar a ansiedade, cuidar dos outros, nutrir a amizade.
Se quisermos desenvolver as potencialidades inerentes aos vários campos
tecnológicos, precisamos de nos libertar da obrigação do trabalho e da
chantagem do salário. Não sou o único que o digo e defendo, longe disso. Larry
Page, CEO da Google, já disse que a empresa pode cortar 50% dos postos de
trabalho já amanhã. Isso é uma boa ou má notícia? O discurso político olha para
este tipo de declarações como uma ameaça, como um grande perigo, mas o fato de
o RBI ter entrado no vocabulário dos partidos políticos já é um pequeno começo.
Somos levados a pensar que a
liberdade advém do trabalho e do salário. Que somos obrigados a pensar que a
tecnologia é uma ferramenta para a acumulação, o lucro. Ora, é difícil sair de
‘armadilhas mentais’ como esta – Franco Berardi
Seja
como for, temos de ver esta questão de todos os ângulos. Em Itália,por exemplo,
o partido mais votado nas últimas legislativas – o Movimento 5 Estrelas, de
Luigi di Maio – incluiu o rendimento básico no seu programa. Mas aquilo que
dizem é: “nós vamos dar-vos mil euros por mês, na condição de aceitarem o
próximo trabalho que vos for proposto. Se amanhã lhe ligarmos a propor um
trabalho, tem de aceitar ou cancelamos o rendimento básico”. Isto é chantagem
pura e dura! Isto é uma ajuda financeira a desempregados e o conceito de
desemprego neste contexto é totalmente falso. A expressão “desemprego” deveria
ser substituída por outra: “tempo de vida emancipado”. O rendimento básico não
é um apoio financeiro ao desemprego, mas um substituto da ideia de salário. O
conceito de salário tem de ser substituído pelo direito universal à existência.
Isto não é uma ideia excêntrica, é, muito simplesmente, reconhecer que a
inteligência artificial e a tecnologia digital podem fazer o nosso trabalho. Ou
seja, nós somos necessários para desempenhar aquele trabalho que é
verdadeiramente humano e que nada tem a ver com o conceito econômico de
trabalho.
Como vê o papel dos media e
das redes sociais nos tempos que correm?
Devo
dizer que, nos dias de hoje, a expressão “media” não é muito óbvia. Remete para
quê exatamente? Remete para o The New York Times (NYT) ou para o Facebook?
Digamos que, neste último ano, houve uma disputa cerrada entre o NYT e o
Facebook e foi este que acabou por vencer, porque o pensamento crítico morreu.
E o pensamento imersivo está fora do alcance da crítica. A imersividade é,
pois, a única possibilidade. Esta é outra questão relevante. Acredita que o
Facebookpode ser ‘consertado’? Pessoalmente não acredito. Em tempos, eu e
muitas outras pessoas acreditávamos que a Internet ia libertar a humanidade.
Errado. As ferramentas tecnológicas não vão libertar-nos. Só a humanidade pode
libertar-se a si própria. Voltando ao Facebook,como podemos defini-lo? O Facebook
é uma máquina de aceleração infinita. E esta aceleração, intensificação, obriga
a distrair-nos daquilo que é a genuína amizade.
Considera que as redes sociais
padronizam formas de estar?
Sem
dúvida. A nossa energia emocional foi absorvida pelo mundo digital, por isso as
pessoas esperam que os outros “gostem” do que dizemos [nas redes sociais] e
muita gente sente-se infeliz quando os seus posts não produzem esse efeito. Uma
das consequências desse investimento emocional é o chamado ‘efeito da câmara de
eco’, ou seja, tendemos a comunicar, a trocar informações e opiniões com
pessoas que pensam como nós, ou que reforçam as nossas expectativas, e reagimos
mal à diferença. Podemos chamar-lhe psicopatologia da comunicação. O futuro só
é imaginável quando estamos dispostos a investir emocionalmente nos outros, na
amizade, na solidariedade e, claro, no amor. Mas se não formos capazes de
sentir empatia, o futuro não existe. São os outros que nos validam, que nos
conferem humanidade.
Um estudo da OMS refere o
suicídio como a segunda causa de morte entre crianças e jovens com idades entre
10 e 24 anos; e estima que, em 2020, a depressão será a segunda forma de
incapacidade mais recorrente em todo o mundo. Que leitura faz deste retrato
alarmante?
Entre
finais da década de 1970 e 2013, a taxa de suicídio aumentou 60% em todo o
mundo, segundo dados da OMS. Como podemos explicar este aumento brutal?! O que
aconteceu há 40 anos atrás? Como referi antes, Margaret Thatcher declarou que a
sociedade não existe; paralelamente, o neoliberalismo eliminou a empatia da
esfera social. Depois, a tecnologia digital começou a destruir a possibilidade
do real, da relação física entre humanos; a emergência de Tony Blair é a prova
de que a Esquerdamorreu – refiro Blair por ser mais fácil de identificar, mas
juntamente com ele estão muitos outros líderes. A Esquerda nunca foi capaz de
equacionar alternativas como o RBI e outras, e embarcou no discurso neoliberal:
pleno emprego, oito horas por dia, cinco dias por semana durante uma vida
inteira. Isto é cada vez menos viável. O pleno emprego é algo impossível, o que
temos é mais precariedade para todos, cortes nos salários para todos, mais
trabalho para todos, em suma, uma nova escravatura. A isto somam-se dois
aspectos importantes. Primeiro, a obrigação passou a ser parte integrante da
nossa formação psicológica e a competição tornou-se no princípio moral
universal. Segundo, passamos a julgar-nos em função do critério da
produtividade. Existe apenas um modelo, um padrão, que é o da competição e
sentimo-nos culpados de todos os nossos “fracassos”, seja ele o desemprego ou a
pobreza. Há quem lhe chame auto-exploração.
Acreditávamos
que a Internet ia libertar a humanidade. Errado. As ferramentas tecnológicas
não vão libertar-nos. Só a humanidade pode libertar-se a si própria – Franco
Berardi
Refere num artigo que o ser
humano tem de abandonar o desejo de controlar…
Hoje
em dia, o grau de imprevisibilidade aumentou de tal forma que pôs fim à
potência masculina. O ponto de vista feminino, por seu turno, representa a
complexidade, a imprevisibilidade da infinita riqueza da natureza e da
tecnologia – não no sentido de algo oposto à natureza, mas como uma forma de
evolução natural. Atualmente, só o ponto de vista feminino é que pode salvar a
raça humana. O ponto de vista masculino já não é capaz de fazer o tipo de
‘trabalho’ de que fala Maquiavel: dominar a natureza. Isso já não é possível,
por isso temos de libertar a produtividade da natureza e da mente humana, isto
é, o conhecimento. Hoje em dia, o problema não está no excesso de tecnologia,
mas sim na nossa incapacidade de lidar com a tecnologia sem ficarmos reféns do
preconceito do poder, do controle, da dominação. Temos de abandonar essa
pretensão: a de controlar.
Subscreve as palavras de Keynes:
“o inevitável geralmente não acontece, porque o imprevisível prevalece”.
Sem
dúvida. E embora não seja meu hábito fazer sugestões, deixo esta: as pessoas
devem estar abertas ao inesperado, ao imprevisível. Se olharmos para o
presente, constatamos que a guerra, a violência, o fascismo são inevitáveis.
Mas o inevitável nunca acontece porque existe o imprevisível. Ora, nós não
sabemos o quão imprevisível as coisas podem ser, mas podemos estar receptivos
ao imprevisível. Devemos estar atentos e procurar continuamente uma ‘linha de
fuga’ para o inevitável, sendo que isso requer muito empenho, uma enorme
energia e atividade.
Como vê a Europa de hoje?
De
momento, exceto Portugal e Espanha, o racismo é o único ponto de entendimento
entre os europeus. Nem mais nem menos: racismo. E não tem a ver com o medo do
outro, da diferença. Tem a ver com a incapacidade de lidar com o passado
colonial. A ideia que prevalece na Europa é que se ganha quando se é mais
racista do que o outro.
O
racismo é o único ponto de entendimento entre os europeus. Nem mais nem menos:
racismo. E não tem a ver com o medo do outro, da diferença. Tem a ver com a
incapacidade de lidar com o passado colonial – Franco Berardi
A
Europa está fraturada e o discurso mantém-se: o Norte contra o Sul, [o grupo
de] Visegrado contra Paris e Berlim… Enfim, apenas confluem num aspecto:
rejeitar a imigração. Mesmo que isso signifique a morte de milhares de pessoas
e o encarceramento de milhões de pessoas na Líbia,no Níger, nos Camarões, na
Nigéria e por aí diante. Além disso, estamos perante uma situação altamente
paradoxal, que é o fato de Trump e Putinse entenderem, serem amigos. Isto traz
novos desafios e maior imprevisibilidade.
As
pessoas devem estar abertas ao inesperado, ao imprevisível. Se olharmos para o
presente, constatamos que a guerra, a violência, o fascismo são inevitáveis.
Mas o inevitável nunca acontece porque existe o imprevisível – Franco Berardi
Considera que a diplomacia
ainda pode ter um papel relevante na gestão dessa imprevisibilidade?
A
diplomacia é algo quase impossível nos tempos que correm, porque os EUA e a
Rússia deixaram de ser inimigos. Trump tem razão quando diz que Putin “é um
tipo porreiro”, porque esteve com ele pessoalmente e percebeu no seu olhar que
é boa pessoa. Ele vê as coisas assim: Putin é branco como nós [americanos] e é
cristão. O mundo mudou. Hoje já não existe uma lógica bipolar, dois blocos que
se opõem. O que temos é brancos contra pessoas de cor. Na minha opinião, o
supremacismo é a verdadeira divisão nos dias de hoje. E o nacionalismo é uma
forma de supremacismo. Daí a pergunta: como podemos explicar o estado de guerra
atual? É o resultado de 500 anos de colonialismo. O homem branco é incapaz de
enfrentar essa herança e responsabilidade, porque implica a redefinição das
nossas expectativas econômicas e de consumo. E não me refiro a um racismo do
passado; o racismo atual é algo absolutamente novo. Os brancos europeus, tal
como os brancos americanos, têm a percepção de que estão a ser invadidos e isso
vai levar a uma guerra, mais tarde ou mais cedo. Ou seja, temos forçosamente de
repensar o nosso futuro econômico. O crescimento acabou, pelo que só a
redistribuição da riqueza pode dar início a uma nova era, a um novo processo de
solidariedade.
Por Ana Pina
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Historias-do-Futuro/-O-pensamento-critico-morreu-diz-o-filosofo-Franco-Berardi/48/40718
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