Nossas
reminiscências históricas apontam autoritarismos, incompreensões, manipulações
de opinião pública. Raymundo Faoro inquietava-se com os donos do poder. Eles
persistem, a inquietação se mantém. O caso que agora narro ilustra essa
premissa.
Em
1937, a Corte Suprema dos Estados Unidos do Brasil — como então se chamava o
Supremo Tribunal Federal — julgou pedido de Habeas Corpus protocolado em favor
de Ernesto Gattai, sobre quem incidia ameaça de expulsão do país.
Gattai
é o pai de Zelia Gattai, esposa do escritor Jorge Amado. Gattai foi acusado da
prática de atividades subversivas. Era tido como anarquista, perigoso à
segurança pública; a situação ganhava dimensão dramática na medida em que era
natural da Itália.
Era
uma tentativa de expulsão de estrangeiro reputado como nocivo à segurança
nacional. Questão muito recorrente na década de 1930, a exemplo, entre outros,
das expulsões que atingiram Olga Benário Prestes e Genny Gleiser. O problema
radica em polarização ideológica que marcou aquela época, que se viu dividida
em direita e esquerda, opondo integralistas e comunistas. Sobre as duas
tendências pairava olimpicamente Getúlio Vargas, que maquiavelicamente explorou
a contradição que então se desenhava.
Estávamos
na ditadura de Getúlio Vargas: o Estado Novo. Fazia-se devassa contra acusados
de simpatia para com o comunismo; o enjaulamento dos inimigos do regime era a
regra. Apoio discreto das Forças Armadas e participação ativa de advogados
destemidos, também marcam esse tempo, de triste memória, e que ainda hoje
desafia o estudo das relações entre a história vivida, a história objetiva das
sociedades humanas e o esforço científico para se descrever, explicar e pensar
o que se viveu, sob a angústia e a esperança do que presentemente se vive.
Gattai
era mais um imigrante italiano que cruzara o oceano embalado na utopia
anarquista, com a cabeça cheia de sonhos e de projetos, que se desfizeram com o
confronto com a vida real, dissolvida em sociedade ainda cheia de preconceitos,
e de difícil assimilação. Não obstante ideologia de sabor oficial reze outra
cantilena, que decorre de um cânone oficial que prega utopia racial, a
realidade era dura, outra, sentida na pele pelos quintas-colunas, como se
chamariam os egressos dos países do Eixo: alemães, japoneses e italianos.
A
questão ganhou sabor especial, no caso do italiano, historicamente vinculado
com militância anarquista e comunista. Ernesto Gattai sofreu com a tentativa do
governo Vargas de expulsá-lo do país. Fora acusado de fazer propaganda do
comunismo. E por ser estrangeiro, tentou-se matizar que era nocivo à vida
nacional, o que justificava o processamento do decreto de expulsão, que se
sucederia à prisão, em face da qual Ernesto Gattai com o Habeas Corpus que aqui
se estuda.
A
tese centrou-se na prova de que Ernesto Gattai era cidadão brasileiro, embora
não tivesse nascido no Brasil. Tocou-se no problema da cidadania fática, que
caracteriza a nacionalidade derivada. Radicado no país, Gattai deveria ser
tratado como brasileiro. Narrou-se sua trajetória, sua vinda da Itália, bem como
o modo como constituiu família e adquiriu bens em nosso país.
Gattai
tinha intenção de viver no Brasil, como se brasileiro fosse; casara-se no
Brasil. Tivera filhos aqui nascidos. Gattai residia no Brasil de modo
ininterrupto, desde a vinda com seu pai. Aqui adquirira propriedades.
Tentava-se qualificar Gattai como nacional. Isso evitaria a expulsão. Gattai
possuía residência fixa no Brasil, era casado, tinha cinco filhos e não
mantinha nenhuma relação com a Embaixada da Itália ou com o próprio país no
qual nascera.
Entre
os filhos de Gattai, insisto, Zélia, cuja vida é referência e recorrência
também com a de seu eterno companheiro, Jorge Amado. Todo o conjunto
circunstancial comprovava que Gattai detinha, do ponto de vista fático,
nacionalidade brasileira, nos termos da Constituição de 1891.
Informações
sobre a família e a trajetória do paciente, a partir dos livros de sua filha,
Zélia Gattai. A exemplo do que teria se passado com todos os imigrantes, a
viagem da família fora muito difícil. E no caso dos Gattai havia inegáveis
relações com o movimento anarquista, conforme se compreende da narrativa de
Zélia Gattai. A família italiana desembarcou no Brasil. Os Gattai tiveram muita
dificuldade para passar pela alfândega.
Zélia
também narrou a prisão do pai, em passagem que nominou a situação de
corriqueira durante o Estado Novo. Zélia contou sobre a angústia sofrida
durante o tempo em que ele ficou preso, e que era compartilhada por toda a
família, que ficara definitivamente marcada pelo triste episódio. Ao longo das
investigações, e Gattai ainda estava preso, a família fora abordada pela
polícia do regime. As humilhações eram recorrentes, e Zélia as descreveu com
muito realismo.
A
comprovada qualidade de brasileiro (embora tácita) impediu a expulsão do de
Gattai. Os fatos aqui narrados comprovam época difícil, marcada pela violência
e pela arbitrariedade. Os ministros do STF foram sensíveis à pretensão de
Gattai. Neutralizou-se a insensibilidade da polícia política.
O
estudioso contemporâneo percebe nas entrelinhas dos depoimentos e da condução
do procedimento um estado de fúria e de precaução permanente para com os
comunistas, típicos de época em que o perigo vermelho inundava a reflexão
jurídica, comprovando que esta última é caudatária da política. Gattai saiu da
prisão. É Zélia quem relata que: “Fraco, depauperado, a saúde para sempre
comprometida, meu pai não resistiu à febre tifoide que o acometeu, tempos
depois de ter saído da prisão. Morreu em 1940, aos 54 anos”.
Direitos
humanos e liberdades públicas, bem como o acesso às liberdades fundamentais,
não se plasmam em época difícil, marcada por recorrente estado de exceção,
tornado regra, e maquiado por propaganda política engenhosa e populista, que
até hoje impressiona, mediante o culto popular a que se defere ao líder do
Estado Novo. Mais um nome na galeria de nossos ídolos, a quem nossa geração
também deve as mazelas com as quais convivemos.
Indicações
bibliográficas
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Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e
doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela
FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela
UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e
pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck
de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista
Consultor Jurídico
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