sexta-feira, 22 de junho de 2018

O CASO DE ERNESTO GATTAI E A PERSEGUIÇÃO HISTÓRICA AOS ANARQUISTAS. Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy


Nossas reminiscências históricas apontam autoritarismos, incompreensões, manipulações de opinião pública. Raymundo Faoro inquietava-se com os donos do poder. Eles persistem, a inquietação se mantém. O caso que agora narro ilustra essa premissa.

Em 1937, a Corte Suprema dos Estados Unidos do Brasil — como então se chamava o Supremo Tribunal Federal — julgou pedido de Habeas Corpus protocolado em favor de Ernesto Gattai, sobre quem incidia ameaça de expulsão do país.

Gattai é o pai de Zelia Gattai, esposa do escritor Jorge Amado. Gattai foi acusado da prática de atividades subversivas. Era tido como anarquista, perigoso à segurança pública; a situação ganhava dimensão dramática na medida em que era natural da Itália.

Era uma tentativa de expulsão de estrangeiro reputado como nocivo à segurança nacional. Questão muito recorrente na década de 1930, a exemplo, entre outros, das expulsões que atingiram Olga Benário Prestes e Genny Gleiser. O problema radica em polarização ideológica que marcou aquela época, que se viu dividida em direita e esquerda, opondo integralistas e comunistas. Sobre as duas tendências pairava olimpicamente Getúlio Vargas, que maquiavelicamente explorou a contradição que então se desenhava.

Estávamos na ditadura de Getúlio Vargas: o Estado Novo. Fazia-se devassa contra acusados de simpatia para com o comunismo; o enjaulamento dos inimigos do regime era a regra. Apoio discreto das Forças Armadas e participação ativa de advogados destemidos, também marcam esse tempo, de triste memória, e que ainda hoje desafia o estudo das relações entre a história vivida, a história objetiva das sociedades humanas e o esforço científico para se descrever, explicar e pensar o que se viveu, sob a angústia e a esperança do que presentemente se vive.

Gattai era mais um imigrante italiano que cruzara o oceano embalado na utopia anarquista, com a cabeça cheia de sonhos e de projetos, que se desfizeram com o confronto com a vida real, dissolvida em sociedade ainda cheia de preconceitos, e de difícil assimilação. Não obstante ideologia de sabor oficial reze outra cantilena, que decorre de um cânone oficial que prega utopia racial, a realidade era dura, outra, sentida na pele pelos quintas-colunas, como se chamariam os egressos dos países do Eixo: alemães, japoneses e italianos.

A questão ganhou sabor especial, no caso do italiano, historicamente vinculado com militância anarquista e comunista. Ernesto Gattai sofreu com a tentativa do governo Vargas de expulsá-lo do país. Fora acusado de fazer propaganda do comunismo. E por ser estrangeiro, tentou-se matizar que era nocivo à vida nacional, o que justificava o processamento do decreto de expulsão, que se sucederia à prisão, em face da qual Ernesto Gattai com o Habeas Corpus que aqui se estuda.

A tese centrou-se na prova de que Ernesto Gattai era cidadão brasileiro, embora não tivesse nascido no Brasil. Tocou-se no problema da cidadania fática, que caracteriza a nacionalidade derivada. Radicado no país, Gattai deveria ser tratado como brasileiro. Narrou-se sua trajetória, sua vinda da Itália, bem como o modo como constituiu família e adquiriu bens em nosso país.

Gattai tinha intenção de viver no Brasil, como se brasileiro fosse; casara-se no Brasil. Tivera filhos aqui nascidos. Gattai residia no Brasil de modo ininterrupto, desde a vinda com seu pai. Aqui adquirira propriedades. Tentava-se qualificar Gattai como nacional. Isso evitaria a expulsão. Gattai possuía residência fixa no Brasil, era casado, tinha cinco filhos e não mantinha nenhuma relação com a Embaixada da Itália ou com o próprio país no qual nascera.

Entre os filhos de Gattai, insisto, Zélia, cuja vida é referência e recorrência também com a de seu eterno companheiro, Jorge Amado. Todo o conjunto circunstancial comprovava que Gattai detinha, do ponto de vista fático, nacionalidade brasileira, nos termos da Constituição de 1891.

Informações sobre a família e a trajetória do paciente, a partir dos livros de sua filha, Zélia Gattai. A exemplo do que teria se passado com todos os imigrantes, a viagem da família fora muito difícil. E no caso dos Gattai havia inegáveis relações com o movimento anarquista, conforme se compreende da narrativa de Zélia Gattai. A família italiana desembarcou no Brasil. Os Gattai tiveram muita dificuldade para passar pela alfândega.

Zélia também narrou a prisão do pai, em passagem que nominou a situação de corriqueira durante o Estado Novo. Zélia contou sobre a angústia sofrida durante o tempo em que ele ficou preso, e que era compartilhada por toda a família, que ficara definitivamente marcada pelo triste episódio. Ao longo das investigações, e Gattai ainda estava preso, a família fora abordada pela polícia do regime. As humilhações eram recorrentes, e Zélia as descreveu com muito realismo.

A comprovada qualidade de brasileiro (embora tácita) impediu a expulsão do de Gattai. Os fatos aqui narrados comprovam época difícil, marcada pela violência e pela arbitrariedade. Os ministros do STF foram sensíveis à pretensão de Gattai. Neutralizou-se a insensibilidade da polícia política.

O estudioso contemporâneo percebe nas entrelinhas dos depoimentos e da condução do procedimento um estado de fúria e de precaução permanente para com os comunistas, típicos de época em que o perigo vermelho inundava a reflexão jurídica, comprovando que esta última é caudatária da política. Gattai saiu da prisão. É Zélia quem relata que: “Fraco, depauperado, a saúde para sempre comprometida, meu pai não resistiu à febre tifoide que o acometeu, tempos depois de ter saído da prisão. Morreu em 1940, aos 54 anos”.

Direitos humanos e liberdades públicas, bem como o acesso às liberdades fundamentais, não se plasmam em época difícil, marcada por recorrente estado de exceção, tornado regra, e maquiado por propaganda política engenhosa e populista, que até hoje impressiona, mediante o culto popular a que se defere ao líder do Estado Novo. Mais um nome na galeria de nossos ídolos, a quem nossa geração também deve as mazelas com as quais convivemos.

Indicações bibliográficas

BRASIL. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Autos de Habeas Corpus 26.643.
CARVALHO, José Murilo de. Forças Armadas e Política no Brasil. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005.
CHAGAS, Carlos. O Brasil sem Retoque - a História Contada por Jornais e Jornalistas. Rio de Janeiro: Record, 2005.
DULLES, John W.F.. Sobral Pinto, a Consciência do Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.
GATTAI, Zélia. Anarquistas graças a Deus. Rio de Janeiro: Record, 2006.
GATTAI, Zélia. Um chapéu para viagem. Rio de Janeiro: Record, 2004.
LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da UNICAMP, 2003.
MANGABEIRA, João. Em Torno da Constituição. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1934.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1965.
MAXWELL, Kenneth. A Devassa da Devassa. São Paulo: Paz e Terra, 2005.
RAMOS, Graciliano. Memórias do Cárcere. Rio de Janeiro: Record, 1994.
TAVARES, Flávio. Memórias do Esquecimento. Rio de Janeiro: Record, 2005.
UCHOA CAVALCANTI, João Barbalho. Constituição Federal Brasileira. Brasília: Senado, 1992.
VIOTTI DA COSTA, Emília. O Supremo Tribunal Federal e a Construção da Cidadania. São Paulo: IEJ, 2001.

Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).

Revista Consultor Jurídico



Nenhum comentário: