O
tema escolhido para nossa contribuição em mais um semestre de atividades do
Observatório Constitucional tangencia os direitos fundamentais dos animais,
explorando suas possibilidades teóricas e apresentando, muito brevemente, as
decisões do Supremo Tribunal Federal sobre este assunto.
A
pergunta que instiga a reflexão é a possibilidade de enquadramento dos direitos
dos animais numa quarta dimensão dos direitos fundamentais, em contraposição e
diálogo com o que a doutrina constitucionalista tradicional[1] tem chamado de
direitos fundamentais de quarta geração.
Paulo
Bonavides, entre nós, é precursor da doutrina que defende a existência de uma
quarta geração, ou dimensão, dos direitos fundamentais. Entretanto, as
divergências sobre o assunto, associada a uma já longa e silenciosa ausência de
premissas teóricas e metodológicas a justificarem a existência de um elemento
inequivocamente diferenciador entre os direitos fundamentais de terceira e
quarta dimensões, indicam que ainda é tempo de refletir sobre isso.
Acreditamos
que a proposta de direitos fundamentais de quarta dimensão justifica-se pela
análise, também polêmica, da existência de direitos dos animais não-humanos. O
presente artigo apresentará alguns aportes teóricos do paradigma do Estado de
Direitos Fundamentais[2] como o ambiente dogmático adequado para reconhecer,
com apoio na doutrina pós-humanista, as condições de possibilidade de direitos
fundamentais dos animais, bem como dará notícia dos precedentes do Supremo
Tribunal Federal que enfrentaram esta temática.
O
principal compromisso de um Estado de direitos fundamentais é com a irradiação,
vinculação e efeitos, inclusive entre privados, desses direitos para todas as
relações jurídicas e sociais. Sua construção, ao longo da história da
humanidade, impõe, limita e condiciona o modelo político da contemporaneidade à
garantia de uma vida digna para a pessoa humana.
Um
Estado constitucional comprometido com os direitos fundamentais assumiu feições
de Estado ideal, cuja concretização passou a ser sua constante tarefa[3].
Dentro dessa perspectiva, os direitos fundamentais passam a ser vistos, também,
como um direito objetivo, destacando sua força jurídica autônoma.[4]As
implicações dessa nova faceta dos direitos fundamentais surgem na concretização
desses direitos, que serão irradiados para todo o ordenamento jurídico e
direcionará, também, os órgãos Legislativo, Judiciário e Executivo[5], bem como
toda a sociedade civil.
A
importância do tratamento dos direitos dos animais, na perspectiva objetiva dos
direitos fundamentais, ocorre, exatamente, pela posição preeminente dos
direitos fundamentais[6], transformando, portanto, os direitos dos animais em
normas diretamente decorrentes do ordenamento jurídico constitucional, na
condição de um dos componentes básicos da ordem constituinte.
Destacar
a força irradiante não subjetivista dos direitos fundamentais, em seu sentido
objetivista mais amplo, é essencial para que se possa avançar em uma discussão sobre
direitos fundamentais dos animais, uma vez que a proposta é estender, a
indivíduos de outras espécies, a titularidade de direitos inerentes à sua
condição existencial, de maneira a alargar os horizontes do princípio da
dignidade humana, basilar de todo o ordenamento jurídico-constitucional
contemporâneo, para um conceito pós-humanista, acolhedor de todos os indivíduos
como titulares dos referidos direitos.
Os
direitos fundamentais, desde os essencialmente humanos, considerados
pré-positivos e suprapositivos, até os efetivamente positivados na
Constituição, correspondem aos direitos garantidos a seres humanos que são
considerados sujeitos em uma determinada organização social e política. Abrange
direitos individuais, coletivos e difusos, e regulam, a partir desses direitos,
a atuação estatal, afirmando-se sua vinculatividade obrigatória tanto perante
os entes públicos quanto às entidades privadas.
A
teoria pós-humanista[7] permite um diálogo entre os direitos fundamentais dos
animais não humanos com a doutrina humanista clássica e propõe uma nova visão
acerca do que é possível incluir como pauta, na seara constitucional, de uma
nova visão teórica e prática acerca da natureza jurídica dos animais não
humanos. Seria possível, nesse contexto, falar-se em sujeitos de direitos
fundamentais não-humanos?
A
abordagem pós-humanista é a forma, então, encontrada, dentro dos seus variados
campos de estudo e pesquisa, para questionar verdades preconcebidas quanto ao
sujeito humano e construir um panorama inclusivo dos demais sujeitos que
constituem o todo[8], propondo um novo saber. Esse progresso científico no
âmbito jurídico[9] enseja uma interação com outras áreas, para que seja
possível uma revolução nas interações existentes entre os humanos e os demais
animais.
A
proposta de um Estado de direitos fundamentais que acolhe os sujeitos
não-humanos implica, necessariamente, a ampliação dos destinatários dos
direitos ditos próprios e inerentes aos humanos para além de seres da nossa
espécie[10], de maneira que o princípio da dignidade humana, basilar de toda a
construção teórica dos direitos fundamentais, seja estendido para os demais
entes animados.
A
humanidade, por razões culturais e históricas, possui um enorme bloqueio ético
em considerar que há outros indivíduos, que não da espécie humana, oprimidos e
discriminados de maneira arbitrária e inquestionada. É um caminho que não visa
desconstituir, mas ressignificar suas premissas e direcionar-se para uma
proteção da vida universal, uma vez que a dignidade, a priori, é direito
inerente apenas aos seres humanos, ainda que de maneira universalizada, como os
direitos fundamentais de terceira geração.
Trazer
essa percepção para o âmbito jurídico e, mais, para a teoria constitucional, é
questionar a própria premissa humanista como categoria constitucional. A
Constituição, como a “lei de todas as leis que o Estado produz”, positiva todos
os preceitos axiológicos, partindo de pressupostos humanistas, bem como do
conceito de dignidade humana.[11] A tendência em remodelar esse paradigma não
visa excluir direitos dos sujeitos humanos, nem negar valores existenciais do
ser humano, mas de questionar a sua posição central na condição de únicos
titulares de direitos fundamentais.
Nesse
sentido, e na linha de responder positivamente à pergunta sobre a existência de
direitos fundamentais de quarta dimensão, é que se propõe o reconhecimento de
direitos fundamentais dos seres vivos não humanos, principalmente dos animais,
advertindo-se, entretanto, que isso não está sedimentado no âmbito
internacional, nem das constituições dos países, tampouco sendo uma posição
defendida pela doutrina pátria [12].
Por
isso é que se percebe, nessa ausência de reconhecimento, um aporte para
defender a possibilidade de dar aos direitos fundamentais dos animais um
tratamento normativo próprio e, no que tange à dogmática dos direitos
fundamentais, elevá-los a categoria de normas constitucionais, na qualidade de
direitos fundamentais de quarta dimensão, os quais para além dos sujeitos
humanos, prestigiariam características da existência não humana, declarando-se,
com isso, uma proteção da vida animal, em sentido amplo.
Elevar
os direitos fundamentais a este patamar é o mesmo que ressignificar o princípio
da dignidade humana, com uma finalidade essencialmente inclusiva, pois,
enquanto os direitos fundamentais de terceira geração abrangem todos os
direitos do gênero humano, em seu último grau de evolução conceitual, os
direitos fundamentais de quarta dimensão corresponderiam a um passo além da
dimensão humana, protegendo os seres vivos que habitam o planeta em caráter
universal.
Essa
ressignificação trata, portanto, de redimensionar a dignidade humana, que
protege a integridade física e emocional da pessoa humana e lhe garante um
tratamento apto a que o indivíduo e as coletividades possam gozar de seus
direitos de forma plena.[13]. Cuida também de proibir atos violadores de tal
dignidade, protegendo e acolhendo indivíduos cuja dignidade foi arbitrariamente
negada e que reclamam por uma reparação histórica e um debate ético honesto e
significativo dos valores a eles relacionados.
O
tratamento dos direitos dos animais como uma quarta dimensão dos direitos
fundamentais justifica-se, portanto, mediante a possibilidade de manter a
proeminência da dignidade humana como vetor constitucional e fazer,
simultaneamente, uma releitura desse princípio, transferindo-o para o patamar
de uma dignidade global, pós-humana.
A
partir da proposta pós-humanista é possível traçar uma superação do paradigma
antropocêntrico, que tornou a dignidade da pessoa humana o epicentro de todo o
catálogo dos direitos fundamentais[14], para dar um grande passo constitucional
no sentido de reconhecer a animais não humanos valor intrínseco[15].
A
proposta de inserir animais não humanos no cenário jurídico, na condição de
sujeitos de direitos fundamentais de quarta dimensão é justificada pela busca
de justiça social interespécies[16]. Admitir a dignidade jurídica dos animais,
no sentido de proteger constitucionalmente a singularidade da vida animal,
embora pareça pouco provável, já vem sendo vista como possível no
constitucionalismo e tem seus reflexos expressos na jurisprudência do Supremo
Tribunal Federal.
Muito
embora a Suprema Corte brasileira não tenha reconhecido a existência de
direitos fundamentais dos animais, como categoria constitucional autônoma
decorrente da doutrina pós-humanista, não se pode deixar de registrar a
existência de, pelo menos, três precedentes relevantes em que a jurisprudência
constitucional brasileira prestigiou, com fundamento na norma constitucional
constante do art. 225, §1º, VII, da CRFB, o direito dos animais a não serem
submetidos a crueldade.
No
Recurso Extraordinário 153.531/SC, julgado em 03 de junho de 1997, o Supremo
apreciou o caso da Farra do Boi, afirmando a inconstitucionalidade dessa
manifestação cultural, sob o argumento de que ela confrontava a Carta da
República a qual, expressamente, rejeitava crueldade contra animais.
Compreensão
semelhante pode ser encontrada nas decisões das ADIs 2.514/SC e 1.856/RJ, em
que se discutia a constitucionalidade de legislação estadual referente a
exposições e competições entre aves combatentes. Em 29 de junho de 2005 e 26 de
maio de 2011, respectivamente, o STF, em sua composição plenária, entendeu que
a sujeição dos animais a experiências de crueldade não se apresentava
compatível com a Constituição brasileira.
Por
fim, na mesma linha, o Pleno da Suprema Corte, na ADI 4.983, julgada em 6 de
outubro de 2006, confirmou que a garantia do exercício de direitos culturais
não autorizava práticas e manifestações que submetessem os animais a crueldade,
declarando a inconstitucionalidade de legislação estadual regulamentadora das
vaquejadas.
Tem-se,
pois, um indicativo jurisprudencial consolidado no Supremo Tribunal Federal a
reconhecer, ainda que de forma não expressa, direitos dos animais com respaldo
diretamente no texto constitucional (art. 225, §1º, VII, da CRFB), o que me
anima a reafirmar que é possível, no contexto do Estado de Direitos
Fundamentais, acolher uma quarta dimensão desses direitos, como aquela que
reconhece e protege direitos dos seres vivos não humanos.
[1]
Por todos vide: NOVELINO, Marcelo. Direito Constitucional. São Paulo : Editora
Método, 2009, p. 362-364.
[2]
SILVA, Christine Oliveira Peter da. Estado de direitos fundamentais, disponível
em: .
Acesso em 11/5/2018
[3]
SARLET, Info Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª ed. Porto
Alegre: Livraria do advogado, 2012, p. 140.
[4]
SILVA, Christine Oliveira Peter da. Estado de direitos fundamentais, disponível
em: .
Acesso em 11/05/2018, p. 10.
[5]
LUÑO, Perez. Los Derechos Fundamentales apud SARLET, Info Wolfgang. A eficácia
dos direitos fundamentais. 11ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p
143.
[6]
[6] SILVA, Christine Oliveira Peter da. Estado de direitos fundamentais,
disponível em:
.
Acesso em 11/05/2018.
[7]
A própria expressão “pós-humanismo” ainda é discutida e entendida de maneiras
diversas: a) utilizada para marcar o fim do período de desenvolvimento social
conhecido como humanismo, de modo que pós-humano vem a significar ‘depois do
humanismo’; b) sinalização de que o que constitui o ser humano está passando
por transformações, ou seja, existe um novo significado para o que é ser humano
e c) “pós humano” significa uma convergência geral dos organismos com as
tecnologias, tornando-as indistinguíveis. Cf. PEPPERELL, Robert. The Post-human
Condition. Oxford: Intellect, 1995, p. 174 e SANTAELLA, Lúcia. Pós-humano: por
quê? Revista da USP. São Paulo, n. 74, p. 126-137. Jun/ago, 2007, p. 133.
[8]
SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e
autonomia de um saber pós-humanista. Disponível em: .
Acesso em 13/05/2018.
[9]
SILVA, Tagore Trajado de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e
autonomia de um saber pós-humanista. Disponível em:
. Acesso
em 13/05/2018.
[10]
SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e
autonomia de um saber pós-humanista. Disponível em:
. Acesso
em 13/05/2018
[11]
BRITTO, Carlos Ayres. O humanismo como categoria constitucional. Belo
Horizonte: Fórum, 2007, p. 88.
[12]
SARLET, Info Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 11ª ed. Porto
Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 50-51.
[13]
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da Pessoa Humana e Direitos Fundamentais. 3ª
ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2004, p. 50.
[14]
CASTRO, Roberto Siqueira. A Constituição aberta e os direitos fundamentais, 2ª
ed., Editora Forense, 2010: Rio de Janeiro, p. 50.
[15]
Sobre o conceito de valor intrínseco, pertinente citar Fernando Araújo em A
hora dos direitos dos animais, o qual aponta três imprecisões quanto à noção de
valor intrínseco, evidentemente influenciadas pelo pensamento jusnaturalista e
que contribuem para uma atribuição radical de consideração ou completa
desconsideração de algo ou alguém: a) a ideia de que só merece respeito aquilo
que é reconhecido como possuidor de valor intrínseco, ou seja, o valor
intrínseco é correlacionado com o nosso reconhecimento e nossa vontade de
respeitar; b) o que possui valor intrínseco é superior aquilo que não possui
valor intrínseco, tendo este valor meramente instrumental e c) todos que
possuem valor intrínseco possuem o mesmo valor intrínseco, ou seja, tem o mesmo
peso para todas as pessoas. Essas ambiguidades demonstram que o valor
intrínseco que embasa a própria dignidade humana não é algo natural, mas sim
construído subjetivamente por quem o gera. É fruto de sua subjetividade.
ARAÚJO, Fernando. A Hora do Direito dos Animais. Coimbra: Almedina, 2003.
[16]
SILVA, Tagore Trajano de Almeida. Direito Animal e Pós-humanismo: formação e
autonomia de um saber pós-humanista. (2015), p. 2003-2004.
Christine Peter é doutora
em Direito, Estado e Constituição pela UnB e professora de Direito
Constitucional do UniCeub.
Kaluaná Oliveira é
bacharel em Direito pelo UniCeub.
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