quinta-feira, 21 de junho de 2018

CONSTITUIÇÃO E PODER. O DEVIDO PROCESSO LEGAL CONTRA A PRESUNÇÃO DE CULPA. Por Néviton Guedes


Dias desses conclui uma segunda leitura do livro de Toby Green sobre o apavorante período da Inquisição (Inquisição: o reinado do medo). Já um clássico, sem dúvida. Na verdade, era para ser apenas a análise de algumas poucas partes do que havia destacado na minha primeira leitura, visando uma aula que daria a alunos de graduação em Direito. Porém, definitivamente, o texto se transformou, para mim, num daqueles livros que você não consegue começar a ler sem ir ao final, mesmo que já o tenha lido. Gostei tanto da obra que comecei a presenteá-la aos amigos que se interessam ou trabalham com processo penal.

Com o relato, o autor consegue nos inspirar, sem que o busque diretamente, a cautela benfazeja contra julgamentos antecipados, muito especialmente quando o acusado é daqueles que, por mais justos que queiramos ser, temos prontamente a certeza — e certeza incontornável — de sua culpa.

De fato, imaginem o retorno ao século XVII, num mundo ainda encantado por santos e demônios; numa época, como diria Max Weber, em que o ser humano ainda conseguia falar diretamente com Deus, mas que a pobreza e a ignorância dominante alcançavam, indistintamente, servos e nobres (entre os quais a presença incômoda de muitos analfabetos); não é difícil, olhando para trás, nos colocar a terrível questão: como os pobres mascates judeus, que não admitiam recusar a sua fé, estrangeiros em terras estranhas e fiéis de uma religião então responsabilizada pela morte do próprio Cristo, suportavam os autos de fé da Inquisição, que invariavelmente os condenava à fogueira sob a acusação indefensável de “praticarem judaísmo”, pecado imperdoável para a ignorância de então?

Hoje, em retrospectiva, podemos certificar que os autos de fé tinham menos o propósito de justiça do que a confirmação de certezas desde sempre consolidadas. Mas quantos séculos foram necessários para que chegássemos à conclusão de que muitas vezes a convicção social da culpa ilude e verdade do fato?

Nisso, aliás, nenhuma novidade. A partir do momento em que as sociedades humanas institucionalizaram alguma forma de julgamento dos comportamentos considerados indesejados, parece lícito supor que, desde sempre, esses procedimentos foram recobertos com alguma forma de liturgia, muito semelhante aos rituais religiosos, com finalidade e efeitos indiscutivelmente catárticos.

Os processos catárticos, como todos sabem, além da purificação que o público procura confortavelmente na punição de um terceiro, cumprem também uma função de coesão, nada desprezível para qualquer grupo social. Não é sem razão, aliás, que tanto a psicanálise como a observação de grupos religiosos certifiquem as “descargas de sentidos e emoções” resultantes da catarse provocada pelos ritos e processos expiatórios. Todos saímos melhor depois de castigar e redimir os nossos próprios pecados com a punição de um terceiro que, segundo algum espetáculo confirmatório, com certeza, merece.

Obviamente, em especial nos momentos em que as sociedades confrontam grave crise de identidade e coesão, não terá grande importância, ou significado, pelo menos para a finalidade de recompor a sua unidade, saber se o acusado é culpado ou inocente. De qualquer sorte, é sempre reconfortante à consciência humana ter a tranquilidade de se satisfazer com o sacrifício de pessoas que, independentemente da qualidade do procedimento, se possa ter a certeza, de antemão, de que são indiscutivelmente culpadas.

Não se trata, pois, em boa parte das vezes, de punir com justiça, mas simplesmente de punir.

Tudo isso explica porque, muito embora não possamos negar que todos erramos, no curso da história humana, as sociedades preferem, numa trágica reincidência de comportamento, escolher algumas vítimas que, por distinção e azar, podem ser sacrificadas, seletivamente, em espetáculos públicos, sem grave comprometimento de nosso senso de justiça.

No maravilhoso livro de Toby Green, temos, na experiência dos espetáculos montados para dar publicidade aos autos de fé da Inquisição, a confirmação de que os procedimentos para certificação dos culpados tiveram ali menos o propósito de justiça do que confirmar a estrutura de poder da sociedade com o sangue dos acusados (cito):

“O cortejo seguia pelas ruas de uma das duas mais importantes cidades da América (Cidade do México), anunciando com o estrondo dos tímpanos e dos instrumentos de sopro que um grande auto de fé seria realizado em um mês. (...) Um mês era o tempo mínimo para preparar o grande teatro do auto de fé. Foi construído um cadafalso de cerca de 37 metros de comprimento por 24 metros de largura, em torno do qual foram erguidas oito colunas de mármore, agrupadas em pares. Na pedra angular de um arco acima do cadafalso havia um brasão com o escudo de armas real, e foi construída uma pirâmide decorada com um escudo da fé. Havia pinturas de meninos tocando trombetas acima da porta que levava ao cadafalso, e os prisioneiros seriam mantidos em uma estrutura encimada por uma cúpula. A arena era sombreada por velas de barco fixadas em 43 troncos de aproximadamente 18 metros de altura, e trinta escadas levavam aos apartamentos e outros edifícios, permitindo que o público descansasse das exigências do auto de fé. O conjunto era esplendidamente decorado com pendentes de veludo, tapetes e cortinas vermelhas, e havia tanta atividade que “as pessoas se congregavam todos os dias e ali permaneciam do alvorecer ao anoitecer [...] elas admiravam tudo e sentiam que estavam assistindo a algo que podia se perpetuar através dos tempos”. (...) Todos os assentos estavam ocupados. Poucos dormiam, imaginando as sentenças que seriam aplicadas aos condenados. Contudo, “enquanto na cidade proliferava todo tipo de rumores, o Santo Ofício [...] prosseguia sua obra em silêncio”. Dos gabinetes da Inquisição foram enviados dois padres para ouvir as confissões de 15 pessoas condenadas à morte pela prática do judaísmo, apesar de terem sido batizadas e declararem professar a fé católica. Eram os chamados relaxados, termo que designava aqueles que seriam entregues pela Inquisição às autoridades laicas para serem executados”[1].

Bem observados os fatos, a verdade, ou não, das acusações feitas tinha pouquíssimo significado, seja porque, de antemão, o público e os acusadores já tinham determinado a culpa, seja porque o crime, ou pecado, era a própria condição do acusado (por exemplo, ser judeu), seja porque, em muitos casos, a função de catarse tinha mais importância do que propriamente o interesse de se fazer justiça. A recusa de alguns acusados, apesar do recurso regular e legitimado da tortura, de confessarem, em vez de colocar em dúvida o procedimento, apenas atestava para o público a culpa e a perversidade dos recalcitrantes.

Em síntese, quanto mais insistisse em sua inocência, mais o acusado se confirmava culpado. No processo, a confissão aparecia muito mais como instrumento de legitimação do sistema do que como meio idôneo de se alcançar a verdade. Confessando, ou não, os acusados já se sabiam culpados (cito):

“Todos os relaxados alegaram inocência e afirmaram serem bons cristãos, menos um deles. A exceção era Tomás Treviño de Sobremonte, um mercador itinerante que admitira ser judeu. Como se negara a aceitar a fé cristã, no dia seguinte seria executado na fogueira, enquanto os outros 14 relaxados obteriam a relativa clemência do estrangulamento antes de serem queimados. (...) Então vinham os prisioneiros sentenciados a penitências, como o açoite, a prisão, as galés e o confisco dos bens os reconciliados. Por último, os relaxados eram chamados para receber os estandartes de suas condenações, que “eram sambenitos [o hábito penitencial dos prisioneiros] decorados com chamas e figuras de demônios”; essas imagens aterrorizantes também decoravam as mitras, os capuzes em forma de cone que os prisioneiros usavam a caminho do cadafalso”[2].

Legitimando o sistema, o espetáculo dos autos de fé também permitia confirmar para o público a justiça e a humanidade com que juízes e promotores cumpriam suas funções (cito):

“Cada relaxado ia acompanhado por dois confessores, que não paravam de orar e exortar o condenado a se arrepender. Muitos confessores choravam, o que provocava copiosas lágrimas nos olhos da multidão, ao ver o espírito caridoso demonstrado pelos sacerdotes e o pouco interesse demonstrado pelo acusado”[3].

De tudo isso, não é difícil perceber que, em quadros de comoção social, o difícil não é confirmar a culpa, mas, sim, abrir algum espaço para a defesa da inocência. Os mesmos ritos de afirmação de poder e de purificação de infiéis, com a certificação da culpa antecipada, foram reproduzidos no terror da Revolução Francesa, de 1793-1794, e nos grandes expurgos promovidos pelo regime stalinista, especialmente, entre 1936 e 1938.

Não se pode esquecer a infâmia a que chegou o regime do terror francês, quando, no seu ápice, lança contra Maria Antonieta, totalmente desarmada, presa e indefesa, conforme narrado na bela biografia de autoria de Stefan Zweig, a abjeta acusação de relacionar-se com o próprio filho, pressionando a criança, que já perdera o pai, para que testemunhasse contra a mãe (uma prévia e tentativa do que hoje conhecemos como “delação premiada”).

Por sua vez, em 1936, o procurador-geral de Stalin, Andrei Vichinski, alcançou opróbrio internacional como promotor, no julgamento de Zinoviev e Kamenev, no período conhecido como a “Grande Purga”, atacando suas vítimas indefesas com uma conhecida retórica de culpa presumida, em que clamou, sem qualquer reserva de moral ou pudor, para que fossem exterminados os agora opositores, por ele designados de “cães raivosos (...) animais abjetos (...) raposas e porcos”.

Quando imaginamos que, em todos esses processos, por séculos e com o aplauso de toda a sociedade, o que se assistiu não foi a punição de criminosos, demônios, ou animais raivosos, mas de impotentes e indefesos seres humanos, é que podemos compreender que as garantias do processo, historicamente, foram erguidas não apenas e propriamente para a proteção de quem de pronto saudamos como inocentes, mas, sobretudo, para aqueles que, por qualquer razão, a sociedade está sempre pronta para considerar culpados. Em síntese, quanto mais presunção de culpa, mais importante se faz a garantia do devido processo, da ampla defesa e do contraditório.

[1] Green, Toby, Inquisição: o reinado do medo. Tradução Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012 (posição 286-303, Kindle).
[2] Green, Toby, Inquisição: o reinado do medo. Tradução Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012 (posição 312, Kindle).
[3] Green, Toby, Inquisição: o reinado do medo. Tradução Cristina Cavalcanti. Rio de Janeiro: Objetiva, 2012 (posição 320, Kindle).

Néviton Guedes é desembargador federal do TRF-1, doutor em Direito pela Universidade de Coimbra e professor no UniCEUB.

Revista Consultor Jurídico





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