Dias
desses conclui uma segunda leitura do livro de Toby Green sobre o apavorante
período da Inquisição (Inquisição: o reinado do medo). Já um clássico, sem
dúvida. Na verdade, era para ser apenas a análise de algumas poucas partes do
que havia destacado na minha primeira leitura, visando uma aula que daria a
alunos de graduação em Direito. Porém, definitivamente, o texto se transformou,
para mim, num daqueles livros que você não consegue começar a ler sem ir ao
final, mesmo que já o tenha lido. Gostei tanto da obra que comecei a
presenteá-la aos amigos que se interessam ou trabalham com processo penal.
Com
o relato, o autor consegue nos inspirar, sem que o busque diretamente, a
cautela benfazeja contra julgamentos antecipados, muito especialmente quando o
acusado é daqueles que, por mais justos que queiramos ser, temos prontamente a
certeza — e certeza incontornável — de sua culpa.
De
fato, imaginem o retorno ao século XVII, num mundo ainda encantado por santos e
demônios; numa época, como diria Max Weber, em que o ser humano ainda conseguia
falar diretamente com Deus, mas que a pobreza e a ignorância dominante alcançavam,
indistintamente, servos e nobres (entre os quais a presença incômoda de muitos
analfabetos); não é difícil, olhando para trás, nos colocar a terrível questão:
como os pobres mascates judeus, que não admitiam recusar a sua fé, estrangeiros
em terras estranhas e fiéis de uma religião então responsabilizada pela morte
do próprio Cristo, suportavam os autos de fé da Inquisição, que invariavelmente
os condenava à fogueira sob a acusação indefensável de “praticarem judaísmo”,
pecado imperdoável para a ignorância de então?
Hoje,
em retrospectiva, podemos certificar que os autos de fé tinham menos o
propósito de justiça do que a confirmação de certezas desde sempre
consolidadas. Mas quantos séculos foram necessários para que chegássemos à
conclusão de que muitas vezes a convicção social da culpa ilude e verdade do
fato?
Nisso,
aliás, nenhuma novidade. A partir do momento em que as sociedades humanas
institucionalizaram alguma forma de julgamento dos comportamentos considerados
indesejados, parece lícito supor que, desde sempre, esses procedimentos foram
recobertos com alguma forma de liturgia, muito semelhante aos rituais
religiosos, com finalidade e efeitos indiscutivelmente catárticos.
Os
processos catárticos, como todos sabem, além da purificação que o público
procura confortavelmente na punição de um terceiro, cumprem também uma função
de coesão, nada desprezível para qualquer grupo social. Não é sem razão, aliás,
que tanto a psicanálise como a observação de grupos religiosos certifiquem as
“descargas de sentidos e emoções” resultantes da catarse provocada pelos ritos
e processos expiatórios. Todos saímos melhor depois de castigar e redimir os
nossos próprios pecados com a punição de um terceiro que, segundo algum
espetáculo confirmatório, com certeza, merece.
Obviamente,
em especial nos momentos em que as sociedades confrontam grave crise de
identidade e coesão, não terá grande importância, ou significado, pelo menos
para a finalidade de recompor a sua unidade, saber se o acusado é culpado ou
inocente. De qualquer sorte, é sempre reconfortante à consciência humana ter a
tranquilidade de se satisfazer com o sacrifício de pessoas que,
independentemente da qualidade do procedimento, se possa ter a certeza, de
antemão, de que são indiscutivelmente culpadas.
Não
se trata, pois, em boa parte das vezes, de punir com justiça, mas simplesmente
de punir.
Tudo
isso explica porque, muito embora não possamos negar que todos erramos, no
curso da história humana, as sociedades preferem, numa trágica reincidência de
comportamento, escolher algumas vítimas que, por distinção e azar, podem ser
sacrificadas, seletivamente, em espetáculos públicos, sem grave comprometimento
de nosso senso de justiça.
No
maravilhoso livro de Toby Green, temos, na experiência dos espetáculos montados
para dar publicidade aos autos de fé da Inquisição, a confirmação de que os
procedimentos para certificação dos culpados tiveram ali menos o propósito de
justiça do que confirmar a estrutura de poder da sociedade com o sangue dos
acusados (cito):
“O
cortejo seguia pelas ruas de uma das duas mais importantes cidades da América
(Cidade do México), anunciando com o estrondo dos tímpanos e dos instrumentos
de sopro que um grande auto de fé seria realizado em um mês. (...) Um mês era o
tempo mínimo para preparar o grande teatro do auto de fé. Foi construído um
cadafalso de cerca de 37 metros de comprimento por 24 metros de largura, em
torno do qual foram erguidas oito colunas de mármore, agrupadas em pares. Na
pedra angular de um arco acima do cadafalso havia um brasão com o escudo de
armas real, e foi construída uma pirâmide decorada com um escudo da fé. Havia
pinturas de meninos tocando trombetas acima da porta que levava ao cadafalso, e
os prisioneiros seriam mantidos em uma estrutura encimada por uma cúpula. A
arena era sombreada por velas de barco fixadas em 43 troncos de aproximadamente
18 metros de altura, e trinta escadas levavam aos apartamentos e outros
edifícios, permitindo que o público descansasse das exigências do auto de fé. O
conjunto era esplendidamente decorado com pendentes de veludo, tapetes e
cortinas vermelhas, e havia tanta atividade que “as pessoas se congregavam
todos os dias e ali permaneciam do alvorecer ao anoitecer [...] elas admiravam
tudo e sentiam que estavam assistindo a algo que podia se perpetuar através dos
tempos”. (...) Todos os assentos estavam ocupados. Poucos dormiam, imaginando
as sentenças que seriam aplicadas aos condenados. Contudo, “enquanto na cidade
proliferava todo tipo de rumores, o Santo Ofício [...] prosseguia sua obra em
silêncio”. Dos gabinetes da Inquisição foram enviados dois padres para ouvir as
confissões de 15 pessoas condenadas à morte pela prática do judaísmo, apesar de
terem sido batizadas e declararem professar a fé católica. Eram os chamados
relaxados, termo que designava aqueles que seriam entregues pela Inquisição às
autoridades laicas para serem executados”[1].
Bem
observados os fatos, a verdade, ou não, das acusações feitas tinha pouquíssimo
significado, seja porque, de antemão, o público e os acusadores já tinham
determinado a culpa, seja porque o crime, ou pecado, era a própria condição do
acusado (por exemplo, ser judeu), seja porque, em muitos casos, a função de
catarse tinha mais importância do que propriamente o interesse de se fazer justiça.
A recusa de alguns acusados, apesar do recurso regular e legitimado da tortura,
de confessarem, em vez de colocar em dúvida o procedimento, apenas atestava
para o público a culpa e a perversidade dos recalcitrantes.
Em
síntese, quanto mais insistisse em sua inocência, mais o acusado se confirmava
culpado. No processo, a confissão aparecia muito mais como instrumento de
legitimação do sistema do que como meio idôneo de se alcançar a verdade.
Confessando, ou não, os acusados já se sabiam culpados (cito):
“Todos
os relaxados alegaram inocência e afirmaram serem bons cristãos, menos um
deles. A exceção era Tomás Treviño de Sobremonte, um mercador itinerante que
admitira ser judeu. Como se negara a aceitar a fé cristã, no dia seguinte seria
executado na fogueira, enquanto os outros 14 relaxados obteriam a relativa
clemência do estrangulamento antes de serem queimados. (...) Então vinham os
prisioneiros sentenciados a penitências, como o açoite, a prisão, as galés e o
confisco dos bens os reconciliados. Por último, os relaxados eram chamados para
receber os estandartes de suas condenações, que “eram sambenitos [o hábito
penitencial dos prisioneiros] decorados com chamas e figuras de demônios”;
essas imagens aterrorizantes também decoravam as mitras, os capuzes em forma de
cone que os prisioneiros usavam a caminho do cadafalso”[2].
Legitimando
o sistema, o espetáculo dos autos de fé também permitia confirmar para o
público a justiça e a humanidade com que juízes e promotores cumpriam suas
funções (cito):
“Cada
relaxado ia acompanhado por dois confessores, que não paravam de orar e exortar
o condenado a se arrepender. Muitos confessores choravam, o que provocava
copiosas lágrimas nos olhos da multidão, ao ver o espírito caridoso demonstrado
pelos sacerdotes e o pouco interesse demonstrado pelo acusado”[3].
De
tudo isso, não é difícil perceber que, em quadros de comoção social, o difícil
não é confirmar a culpa, mas, sim, abrir algum espaço para a defesa da
inocência. Os mesmos ritos de afirmação de poder e de purificação de infiéis,
com a certificação da culpa antecipada, foram reproduzidos no terror da
Revolução Francesa, de 1793-1794, e nos grandes expurgos promovidos pelo regime
stalinista, especialmente, entre 1936 e 1938.
Não
se pode esquecer a infâmia a que chegou o regime do terror francês, quando, no
seu ápice, lança contra Maria Antonieta, totalmente desarmada, presa e
indefesa, conforme narrado na bela biografia de autoria de Stefan Zweig, a
abjeta acusação de relacionar-se com o próprio filho, pressionando a criança,
que já perdera o pai, para que testemunhasse contra a mãe (uma prévia e
tentativa do que hoje conhecemos como “delação premiada”).
Por
sua vez, em 1936, o procurador-geral de Stalin, Andrei Vichinski, alcançou
opróbrio internacional como promotor, no julgamento de Zinoviev e Kamenev, no
período conhecido como a “Grande Purga”, atacando suas vítimas indefesas com
uma conhecida retórica de culpa presumida, em que clamou, sem qualquer reserva
de moral ou pudor, para que fossem exterminados os agora opositores, por ele
designados de “cães raivosos (...) animais abjetos (...) raposas e porcos”.
Quando
imaginamos que, em todos esses processos, por séculos e com o aplauso de toda a
sociedade, o que se assistiu não foi a punição de criminosos, demônios, ou
animais raivosos, mas de impotentes e indefesos seres humanos, é que podemos
compreender que as garantias do processo, historicamente, foram erguidas não
apenas e propriamente para a proteção de quem de pronto saudamos como
inocentes, mas, sobretudo, para aqueles que, por qualquer razão, a sociedade
está sempre pronta para considerar culpados. Em síntese, quanto mais presunção
de culpa, mais importante se faz a garantia do devido processo, da ampla defesa
e do contraditório.
[1]
Green, Toby, Inquisição: o reinado do medo. Tradução Cristina Cavalcanti. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2012 (posição 286-303, Kindle).
[2]
Green, Toby, Inquisição: o reinado do medo. Tradução Cristina Cavalcanti. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2012 (posição 312, Kindle).
[3]
Green, Toby, Inquisição: o reinado do medo. Tradução Cristina Cavalcanti. Rio
de Janeiro: Objetiva, 2012 (posição 320, Kindle).
Néviton
Guedes é desembargador federal do TRF-1, doutor em Direito pela Universidade de
Coimbra e professor no UniCEUB.
Revista
Consultor Jurídico
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