quarta-feira, 20 de junho de 2018

DIREITO DE DEFESA. A PALAVRA DO COLABORADOR NÃO É SUFICIENTE PARA O RECEBIMENTO DE DENÚNCIA. Por Pierpaolo Cruz Bottini


Pierpaolo Bottini [Spacca]A Lei 12.850/13 prevê que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador. O legislador não considera o relato do colaborador como prova, como elemento suficiente para revelar ao juiz a certeza da autoria ou da materialidade do crime.

A colaboração premiada é importante para a investigação de delitos — mas é mero instrumento, uma ferramenta de auxílio nas apurações. O colaborador, por ser alguém que confessadamente se envolveu em práticas ilícitas, não tem o status de testemunha. Apesar de ser obrigado a falar a verdade, sob pena de perder os benefícios do acordo, sua condição é diversa. Não se trata de mero expectador de fatos alheios, mas de pessoa envolvida no contexto delitivo, que presta depoimentos com o escopo de obter vantagens permitidas por lei, em troca de informações às autoridades públicas.

Assim, os depoimentos do colaborador devem ser pesados com cautela. Ainda que sejam elemento relevante para orientar investigações, apontar rumos e indicar linhas de pesquisa, não são provas em si. Como já assentado pelo STF, a narrativa do colaborador é um meio de obtenção de provas, um instrumento que direciona as autoridades ao local da prova (STF, HC 127.483).

Por isso, tais declarações não podem — por si — fundamentar uma condenação. Mas segue em aberto outra questão: a narrativa do colaborador, quando desacompanhada de dados de corroboração, pode sustentar o recebimento da denúncia?

O recebimento da denúncia é o ato de inauguração da ação penal, o momento em que o juiz reconhece haver indícios de autoria, elementos capazes de tornar o indivíduo suspeito, de qualifica-lo como réu.

Para receber a denúncia é preciso ao menos de um conjunto de indícios que indiquem ser aquela pessoa suspeita da prática de um crime — e o CPP indica que indícios são as circunstâncias conhecidas e provadas que, tendo relação com o fato, autorizam, por indução, concluir-se a existência e outra ou outras circunstâncias (CPP, artigo 239).

Nessa linha, a já clássica lição de Maria Thereza Rocha de Assis Moura:

“(...) para que alguém seja acusado em juízo, faz-se imprescindível que a ocorrência do fato típico esteja evidenciada; que haja, no mínimo, probabilidade (e não mera possibilidade) de que o sujeito incriminado seja autor e um mínimo de culpabilidade”[1]

A nosso ver, a narrativa do colaborador premiado é insuficiente para legitimar a atuação estatal. Suas palavras não garantem a subsistência de uma ação penal, se desacompanhadas de elementos objetivos e materiais que sustentem a veracidade das declarações.

Nesse sentido, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em recente julgado:

“A meu sentir, se os depoimentos do réu colaborador, sem outras provas minimamente consistentes de corroboração, não podem conduzir à condenação, também não podem autorizar a instauração de ação penal por padecerem, parafraseando Vitorio Grevi, da mesma presunção relativa de falta de fidedignidade”
(...)
“Se ‘nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações do agente colaborador’ (art. 4º ,§16 d Lei no 12.850/13), é licito concluir que essas declarações, por si sós, não autorizam a formulação de um juízo de probabilidade de condenação e, por via de consequência, não permitem um juízo positivo de admissibilidade da acusação” (STF, 2ª Turma, Inq. 3.994, Rel. para Acórdão Min. Dias Toffoli).

Em outras palavras, a mera palavra do colaborador não é suficiente para o recebimento da denúncia. É necessário algum elemento adicional, algum dado de corroboração para além da palavra do réu e seus manuscritos — valendo lembrar que anotações à mão, em papéis, entregues pelo colaborador são meras extensões de declarações, sem valia como elemento de corroboração, como já decidiu a mesma 2ª Turma do STF:

“Ocorre que uma anotação unilateralmente feita em manuscrito particular não tem o condão de corroborar, por si só, o depoimento do colaborador, ainda que para fins de recebimento de denúncia.

Se o depoimento do colaborador necessita ser corroborado por fontes diversas de prova, evidente que uma anotação particular dele próprio emanada não pode servir, por si só, de instrumento de validação” (STF, 2ª Turma, Inq. 3.994, Rel. para Acórdão Min. Dias Toffoli).

Isso não significa que declarações do colaborador ou seus manuscritos não sejam relevantes — são elementos aptos a dar inicio a investigações que possam levar a outros dados que corroborem sua versão, portanto, merecem consideração. E podem ensejar a concessão dos benefícios previstos em lei.

Mas não são suficientes para o início da persecução penal.

A colaboração premiada é um instrumento legítimo e importante para a investigação criminal, mas deve ser compreendida em seus limites, de forma que condenações e recebimentos de denúncia calcadas apenas na palavra do colaborador — por mais firme e coerente que seja — carecem de legitimidade.

[1] Justa Causa para a ação penal – doutrina e jurisprudência. São Paulo: RT, 2001.

Pierpaolo Cruz Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.

Revista Consultor Jurídico



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