Pierpaolo
Bottini [Spacca]A Lei 12.850/13 prevê que nenhuma sentença condenatória será
proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador. O
legislador não considera o relato do colaborador como prova, como elemento
suficiente para revelar ao juiz a certeza da autoria ou da materialidade do
crime.
A
colaboração premiada é importante para a investigação de delitos — mas é mero
instrumento, uma ferramenta de auxílio nas apurações. O colaborador, por ser
alguém que confessadamente se envolveu em práticas ilícitas, não tem o status
de testemunha. Apesar de ser obrigado a falar a verdade, sob pena de perder os
benefícios do acordo, sua condição é diversa. Não se trata de mero expectador
de fatos alheios, mas de pessoa envolvida no contexto delitivo, que presta
depoimentos com o escopo de obter vantagens permitidas por lei, em troca de
informações às autoridades públicas.
Assim,
os depoimentos do colaborador devem ser pesados com cautela. Ainda que sejam
elemento relevante para orientar investigações, apontar rumos e indicar linhas
de pesquisa, não são provas em si. Como já assentado pelo STF, a narrativa do
colaborador é um meio de obtenção de provas, um instrumento que direciona as
autoridades ao local da prova (STF, HC 127.483).
Por
isso, tais declarações não podem — por si — fundamentar uma condenação. Mas
segue em aberto outra questão: a narrativa do colaborador, quando
desacompanhada de dados de corroboração, pode sustentar o recebimento da denúncia?
O
recebimento da denúncia é o ato de inauguração da ação penal, o momento em que
o juiz reconhece haver indícios de autoria, elementos capazes de tornar o
indivíduo suspeito, de qualifica-lo como réu.
Para
receber a denúncia é preciso ao menos de um conjunto de indícios que indiquem
ser aquela pessoa suspeita da prática de um crime — e o CPP indica que indícios
são as circunstâncias conhecidas e provadas que, tendo relação com o fato,
autorizam, por indução, concluir-se a existência e outra ou outras
circunstâncias (CPP, artigo 239).
Nessa
linha, a já clássica lição de Maria Thereza Rocha de Assis Moura:
“(...)
para que alguém seja acusado em juízo, faz-se imprescindível que a ocorrência
do fato típico esteja evidenciada; que haja, no mínimo, probabilidade (e não
mera possibilidade) de que o sujeito incriminado seja autor e um mínimo de
culpabilidade”[1]
A
nosso ver, a narrativa do colaborador premiado é insuficiente para legitimar a
atuação estatal. Suas palavras não garantem a subsistência de uma ação penal,
se desacompanhadas de elementos objetivos e materiais que sustentem a
veracidade das declarações.
Nesse
sentido, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, em recente julgado:
“A
meu sentir, se os depoimentos do réu colaborador, sem outras provas minimamente
consistentes de corroboração, não podem conduzir à condenação, também não podem
autorizar a instauração de ação penal por padecerem, parafraseando Vitorio
Grevi, da mesma presunção relativa de falta de fidedignidade”
(...)
“Se
‘nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas
declarações do agente colaborador’ (art. 4º ,§16 d Lei no 12.850/13), é licito
concluir que essas declarações, por si sós, não autorizam a formulação de um
juízo de probabilidade de condenação e, por via de consequência, não permitem
um juízo positivo de admissibilidade da acusação” (STF, 2ª Turma, Inq. 3.994,
Rel. para Acórdão Min. Dias Toffoli).
Em
outras palavras, a mera palavra do colaborador não é suficiente para o
recebimento da denúncia. É necessário algum elemento adicional, algum dado de
corroboração para além da palavra do réu e seus manuscritos — valendo lembrar
que anotações à mão, em papéis, entregues pelo colaborador são meras extensões
de declarações, sem valia como elemento de corroboração, como já decidiu a
mesma 2ª Turma do STF:
“Ocorre
que uma anotação unilateralmente feita em manuscrito particular não tem o
condão de corroborar, por si só, o depoimento do colaborador, ainda que para fins
de recebimento de denúncia.
Se
o depoimento do colaborador necessita ser corroborado por fontes diversas de
prova, evidente que uma anotação particular dele próprio emanada não pode
servir, por si só, de instrumento de validação” (STF, 2ª Turma, Inq. 3.994,
Rel. para Acórdão Min. Dias Toffoli).
Isso
não significa que declarações do colaborador ou seus manuscritos não sejam
relevantes — são elementos aptos a dar inicio a investigações que possam levar
a outros dados que corroborem sua versão, portanto, merecem consideração. E
podem ensejar a concessão dos benefícios previstos em lei.
Mas
não são suficientes para o início da persecução penal.
A
colaboração premiada é um instrumento legítimo e importante para a investigação
criminal, mas deve ser compreendida em seus limites, de forma que condenações e
recebimentos de denúncia calcadas apenas na palavra do colaborador — por mais
firme e coerente que seja — carecem de legitimidade.
[1] Justa Causa para a ação
penal – doutrina e jurisprudência. São Paulo: RT, 2001.
Pierpaolo Cruz
Bottini é advogado, sócio do escritório Bottini e Tamasauskas e professor
livre-docente de Direito Penal da Faculdade de Direito da USP.
Revista Consultor
Jurídico
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