No
final de 2013, com a implantação do Programa Mais Médicos, foram contratados
mais de 12 mil médicos para trabalhar na rede nacional de atendimento básico de
saúde pública, em regime temporário. A nacionalidade cubana representou, nessa
primeira fase do programa, cerca de 80% desses médicos, com mais da metade
desse percentual composto por mulheres.
Esse
elevado número de mulheres alinha-se com as tendências globais dos movimentos
migratórios hoje, em sua ligação com o funcionamento do mercado de trabalho.
Cerca da metade das populações em movimento é formada por mulheres que, na
maioria das vezes, encontram condições muito precárias de inserção laboral nos
países de destino, sobretudo no trabalho doméstico e de cuidado, mas também na
indústria e nos serviços. Todavia, o caso das médicas mostra como hoje há
também um perfil altamente qualificado que compõe esses movimentos.
Já
nos anos 1980, Mirjana Morokivaisic, uma das maiores especialistas no tema das
migrações femininas, chamava atenção à presença e ao protagonismo das mulheres
nesses deslocamentos internacionais.
A
autora fez uma crítica, ainda muito atual, que denuncia a visão da imigração e
do refúgio como fenômenos masculinos, nos quais a mulher, quando ganha
visibilidade, é considerada apenas como “acompanhante” e “dependente passiva”
do homem no projeto e na experiência imigratórios.
As
médicas cubanas – muitas delas mães, tendo que suportar a distância de seus
filhos e da família – representam mais um caso que desmente essa visão sobre as
migrações desatenta em relação ao sexo. Ao chegarem no Brasil, algumas dessas
mulheres já estavam fazendo uma segunda experiência de imigração e de trabalho
fora de Cuba.
Aqui,
sua atuação profissional ocorreu em mais de dois mil municípios, sobretudo nas
periferias – mesmo naquelas marcadas pela violência. Essas médicas também
penetraram, por meio de sua profissão de prevenção e cura, o profundo do
Brasil, na região árida do Nordeste e em zonas rurais e de floresta, onde estão
as populações indígenas e quilombolas, dentre outros grupos sociais.
O
registro histórico dessa fase inicial do Mais Médicos não pode apagar o
protagonismo das médicas cubanas que, como sabemos, tiveram que enfrentar
muitos obstáculos – sobretudo o racismo e a xenofobia – colocados à sua
presença e à sua atuação profissional. É preciso lembrar que esses obstáculos
se somam às dificuldades de um machismo historicamente imperante na estrutura
do nosso mercado de trabalho e de nossa sociedade, colocando uma carga de peso
adicional para essas médicas.
De
fato, o caso dos médicos cubanos no Brasil evidencia como a xenofobia se mescla
com o racismo e age mesmo em estratos altos do mercado de trabalho, como a
profissão médica, refletindo também um contexto internacional mais amplo de
hostilidades aos imigrantes e refugiados na atualidade.
Ao
invés de bem-vindos, os médicos cubanos – muitos deles negros – foram recebidos
com desprezo e desconfiança pela grande mídia, por parte da categoria médica
brasileira, da população do país e também de alguns poderes públicos municipais
que ficaram responsáveis pelo alojamento dos médicos recrutados.
Muitas
manifestações hostis a esses médicos ocorreram no nosso país. Talvez a mais
significativa delas seja a carta aberta à população, intitulada “A saúde
pública e a vergonha nacional”, escrita em conjunto por entidades
representantes dos médicos no Brasil. A carta diz que a importação de médicos
“simboliza a vergonha nacional” pois expõe os brasileiros “à ação de pessoas
cujos conhecimentos e competências não foram comprovados”.
A
atuante campanha contra o Mais Médicos teve efeitos práticos contra os médicos
cubanos. Muitos deles sentiram na pele a exposição a xingamentos, ao descrédito
relativo ao profissionalismo e à eficiência no exercício de suas atividades e
até à capacidade linguística de se comunicar com a população brasileira. Há
muitos registros que poderiam ser citados nesse sentido. Sem dúvida, esses
obstáculos se impuseram a essas médicas de forma redobrada, justamente por
serem mulheres.
Essas
médicas-imigrantes sofreram, portanto, um encadeamento de preconceitos e
barreiras por serem imigrantes, de um país do Sul global, com um regime
socialista, parte delas negras, que vivem aqui com uma renda muito inferior à
média dos médicos nacionais (geralmente vivendo nas periferias onde trabalham)
e, finalmente, por serem mulheres, em um país cuja população médica é ainda
predominantemente masculina (sobretudo em algumas especialidades).
Contudo,
não há dúvida de que esse estranhamento está sendo respondido, de forma a
desmentir as acusações, tanto por parte dos próprios médicos e médicas cubanos,
quanto também da população brasileira, incluindo parte da categoria dos
médicos.
Depois
de mais de quatro anos da chegada dos médicos cubanos no Brasil, o quadro quase
se inverteu. Os brasileiros usuários do SUS procuram os cubanos para se
tratarem! A aprovação do serviço desses médicos é muito alta e está sendo
documentada por diversas pesquisas, comprovando a excelência, reconhecida
nacional e internacionalmente, e a extrema competência e humanidade desses
profissionais.
Sem
dúvida alguma, de um quadro de xenofobia e racismo construídos pelo alto,
passa-se, neste momento de crise econômica e política do Brasil – em que a
renovação dos contratos dos cubanos tornou-se incerta e muitos desses médicos
estão deixando o País – a um contexto de protesto e um sentimento de enorme
perda por parte da nossa população usuária do SUS.
Mais
do que qualquer análise escrita sobre o tema, as imagens fotográficas de
Araquém Alcântara, em seu livro “Mais Médicos”, já deixaram um registro dos
caminhos profissionais percorridos por esses médicos e médicas no Brasil, que,
embora repletos de obstáculos, foram sem dúvida acompanhados por relações
solidárias, por uma prática profissional altamente qualificada e, em especial,
pelo comprometimento humano com a população brasileira, independentemente de
sua renda.
Trata-se,
lembremos, de uma vitória das médicas-imigrantes, que mostra sua capacidade de
superar barreiras construídas e de serem aceitas no e pelo tratamento médico,
ou seja, no seu ambiente de trabalho, que é essencialmente humano, e prescinde
da nacionalidade, e do sexo, para seu pleno exercício.
*Patricia Villen é
pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da Unicamp
https://www.geledes.org.br/as-medicas-imigrantes-cubanas-e-os-preconceitos-encadeados/
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