sexta-feira, 1 de junho de 2018

AS MÉDICAS-IMIGRANTES CUBANAS E OS PRECONCEITOS ENCADEADOS. Por Patricia Villen, da CartaCapital

No final de 2013, com a implantação do Programa Mais Médicos, foram contratados mais de 12 mil médicos para trabalhar na rede nacional de atendimento básico de saúde pública, em regime temporário. A nacionalidade cubana representou, nessa primeira fase do programa, cerca de 80% desses médicos, com mais da metade desse percentual composto por mulheres.

Esse elevado número de mulheres alinha-se com as tendências globais dos movimentos migratórios hoje, em sua ligação com o funcionamento do mercado de trabalho. Cerca da metade das populações em movimento é formada por mulheres que, na maioria das vezes, encontram condições muito precárias de inserção laboral nos países de destino, sobretudo no trabalho doméstico e de cuidado, mas também na indústria e nos serviços. Todavia, o caso das médicas mostra como hoje há também um perfil altamente qualificado que compõe esses movimentos.

Já nos anos 1980, Mirjana Morokivaisic, uma das maiores especialistas no tema das migrações femininas, chamava atenção à presença e ao protagonismo das mulheres nesses deslocamentos internacionais.

A autora fez uma crítica, ainda muito atual, que denuncia a visão da imigração e do refúgio como fenômenos masculinos, nos quais a mulher, quando ganha visibilidade, é considerada apenas como “acompanhante” e “dependente passiva” do homem no projeto e na experiência imigratórios.

As médicas cubanas – muitas delas mães, tendo que suportar a distância de seus filhos e da família – representam mais um caso que desmente essa visão sobre as migrações desatenta em relação ao sexo. Ao chegarem no Brasil, algumas dessas mulheres já estavam fazendo uma segunda experiência de imigração e de trabalho fora de Cuba.

Aqui, sua atuação profissional ocorreu em mais de dois mil municípios, sobretudo nas periferias – mesmo naquelas marcadas pela violência. Essas médicas também penetraram, por meio de sua profissão de prevenção e cura, o profundo do Brasil, na região árida do Nordeste e em zonas rurais e de floresta, onde estão as populações indígenas e quilombolas, dentre outros grupos sociais.

O registro histórico dessa fase inicial do Mais Médicos não pode apagar o protagonismo das médicas cubanas que, como sabemos, tiveram que enfrentar muitos obstáculos – sobretudo o racismo e a xenofobia – colocados à sua presença e à sua atuação profissional. É preciso lembrar que esses obstáculos se somam às dificuldades de um machismo historicamente imperante na estrutura do nosso mercado de trabalho e de nossa sociedade, colocando uma carga de peso adicional para essas médicas.

De fato, o caso dos médicos cubanos no Brasil evidencia como a xenofobia se mescla com o racismo e age mesmo em estratos altos do mercado de trabalho, como a profissão médica, refletindo também um contexto internacional mais amplo de hostilidades aos imigrantes e refugiados na atualidade.

Ao invés de bem-vindos, os médicos cubanos – muitos deles negros – foram recebidos com desprezo e desconfiança pela grande mídia, por parte da categoria médica brasileira, da população do país e também de alguns poderes públicos municipais que ficaram responsáveis pelo alojamento dos médicos recrutados.

Muitas manifestações hostis a esses médicos ocorreram no nosso país. Talvez a mais significativa delas seja a carta aberta à população, intitulada “A saúde pública e a vergonha nacional”, escrita em conjunto por entidades representantes dos médicos no Brasil. A carta diz que a importação de médicos “simboliza a vergonha nacional” pois expõe os brasileiros “à ação de pessoas cujos conhecimentos e competências não foram comprovados”.

A atuante campanha contra o Mais Médicos teve efeitos práticos contra os médicos cubanos. Muitos deles sentiram na pele a exposição a xingamentos, ao descrédito relativo ao profissionalismo e à eficiência no exercício de suas atividades e até à capacidade linguística de se comunicar com a população brasileira. Há muitos registros que poderiam ser citados nesse sentido. Sem dúvida, esses obstáculos se impuseram a essas médicas de forma redobrada, justamente por serem mulheres.

Essas médicas-imigrantes sofreram, portanto, um encadeamento de preconceitos e barreiras por serem imigrantes, de um país do Sul global, com um regime socialista, parte delas negras, que vivem aqui com uma renda muito inferior à média dos médicos nacionais (geralmente vivendo nas periferias onde trabalham) e, finalmente, por serem mulheres, em um país cuja população médica é ainda predominantemente masculina (sobretudo em algumas especialidades).

Contudo, não há dúvida de que esse estranhamento está sendo respondido, de forma a desmentir as acusações, tanto por parte dos próprios médicos e médicas cubanos, quanto também da população brasileira, incluindo parte da categoria dos médicos.

Depois de mais de quatro anos da chegada dos médicos cubanos no Brasil, o quadro quase se inverteu. Os brasileiros usuários do SUS procuram os cubanos para se tratarem! A aprovação do serviço desses médicos é muito alta e está sendo documentada por diversas pesquisas, comprovando a excelência, reconhecida nacional e internacionalmente, e a extrema competência e humanidade desses profissionais.

Sem dúvida alguma, de um quadro de xenofobia e racismo construídos pelo alto, passa-se, neste momento de crise econômica e política do Brasil – em que a renovação dos contratos dos cubanos tornou-se incerta e muitos desses médicos estão deixando o País – a um contexto de protesto e um sentimento de enorme perda por parte da nossa população usuária do SUS.

Mais do que qualquer análise escrita sobre o tema, as imagens fotográficas de Araquém Alcântara, em seu livro “Mais Médicos”, já deixaram um registro dos caminhos profissionais percorridos por esses médicos e médicas no Brasil, que, embora repletos de obstáculos, foram sem dúvida acompanhados por relações solidárias, por uma prática profissional altamente qualificada e, em especial, pelo comprometimento humano com a população brasileira, independentemente de sua renda.

Trata-se, lembremos, de uma vitória das médicas-imigrantes, que mostra sua capacidade de superar barreiras construídas e de serem aceitas no e pelo tratamento médico, ou seja, no seu ambiente de trabalho, que é essencialmente humano, e prescinde da nacionalidade, e do sexo, para seu pleno exercício.

*Patricia Villen é pesquisadora de pós-doutorado do Departamento de Sociologia da Unicamp

https://www.geledes.org.br/as-medicas-imigrantes-cubanas-e-os-preconceitos-encadeados/

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