O TEMPO DO MITO
Ailton
Krenak: É um mito totalmente absurdo dizer que nós índios, os negros que foram
agarrados na África e despejados aqui, e os brancos, que alguns vieram sem
saber para onde estavam indo, fomos constituir a base da nossa civilização. É
um barateamento total da nossa história, é uma negação dos conflitos profundos
que marcaram esses desencontros de povos.
Naturalizar
o encontro dos índios com os negros nos quilombos como um evento que emerge
como uma representação da força, da aliança natural desses povos contra o
opressor é uma mistificação também, porque quando os negros e índios
constituíram alianças em algumas situações de quilombo eles eram uma capacidade
tão grande de alteridade, as identidades estavam tão claras que você não tinha
nenhum pote formando aquela ideia de colocar todos num caldeirão e tirar dali
um estrato. Então as pessoas sabiam que não eram matéria prima, são seres
humanos com biografias, vidas e histórias. Suas sociedades tinham trajetórias
próprias, eles tinham uma aliança circunstancial contra o opressor. Mas eles
não estavam criando uma nova civilização; essa mistificação é uma maneira dos
nossos continuados dominadores explicar e justificar o tipo de história que
estamos constituindo a longo prazo.
A
melhor maneira de arrematar a história do Brasil de uma maneira edificante é
dizer que mesmo os índios e negros sendo esfolados e mortificados, ainda
ergueram a bandeira da brasilidade.
Mesmo
com os brancos descendo a chibata nos negros e índios, aqueles índios e negros
eram tão cristãos, tão compassivos e devotos que estavam levantando a bandeira
do Brasil escrita “ordem e progresso”. Então é um épico totalmente picareta e
mistificador da nossa formação.
Na
base da nossa formação só tem conflito; nem os brancos vieram para cá para
fazer qualquer ato edificante, nem os negros vieram voluntariamente para ser
escravos, e nem os índios estavam aqui achando engraçadinho essa invasão.
Uma
puta duma invasão que não para, com muitos colaboradores aqui dentro. Quando
todo mundo veste uma camisa verde e amarela e começa a berrar na Avenida
Paulista atrás de um pato, eles estão mostrando para nós que os que estão
resistindo são em menor número do que os colaboradores. Tem muito mais
colaborador falando: “venham pegar a gente” do que gente levantando e dizendo:
“não vem não, porque aqui tem um povo vivendo”. Então isso ainda denuncia uma
falta de identidade. Para mim isso foi a maior denúncia de que a gente ainda
precisa caminhar muito para um dia podermos olhar uns para as caras dos outros
e dizer: “de alguma maneira nós constituímos uma nação”.
Eu
ainda sigo incrédulo com a possibilidade de uma nação brasileira, uma certa
dificuldade que me acompanha desde muito cedo quando não aceitei me engajar em
nenhum partido político. Eu nunca me filiei em partido político, simplesmente
porque nenhuma canga dessas me cabia. E como dizia um sujeito rebelde e goiano
que me ajudou a fundar o Centro de Pesquisa Indígena, quando estava revoltado,
dizia: “não bota canga em mim não. Era seu jeito de se rebelar. Eu acho que
isso sempre foi uma espécie de lema meu interior, porque a ideia consoladora de
que estamos no seio de uma nação nunca me embalou. Eu sempre me senti
incomodado, com a sensação de que somos um acampamento enorme no escuro, na
maioria das vezes atropelando uns aos outros. De vez em quando dá um raio, e
naquele breve instante a iluminação do mesmo faz a gente olhar para um lado,
para o outro e falar assim: “ali estão os índios, aqui estão os negros, ali
estão todos esses outros povos que vieram para cá”. Esse acampamento tem toda
essa multitude, toda essa gente e mundos aqui dentro. Nesse breve relance de
olhar uns nos outros fazemos um “diretas já”, fazemos uma campanha da
constituinte, mas volta o acampamento para o escuro de novo e começa a
pancadaria doméstica. Só quando acende a luz de novo que você olha e vê uns aos
outros meios esfolados, quebrados.
“A
melhor maneira de arrematar a história do Brasil de uma maneira edificante é
dizer que mesmo os índios e negros sendo esfolados e mortificados, ainda
ergueram a bandeira da brasilidade.”
Como
você vai chamar uma coisa dessa de nação? É um acampamento de portugueses,
remanescentes, povos indígenas, alguns africanos e outros afrodescendentes,
porque continua vindo povos da África para cá, que não são levas de gente
trazidos na marra, mas vêm para continuar suas vidas e experiências, suas lutas
e engajamentos, sua história, e também reanimam.
Da
mesma maneira que o povo indígena é reanimado pelo contato com nossos parentes
que ainda vivem em condições favoráveis na floresta, esses visitantes que vêm
da África também reanimam o pensamento de muitos pensadores negros aqui no
Brasil, sobre quem nós somos. Não podemos ficar perdidos num acampamento que só
reconhece uns aos outros quando dá um relâmpago, temos que ser capazes de
tentar uma memória continuada de quem nós somos.
No
caso dos povos indígenas a memória continuada tem que visitar um lugar que
insistem em chamar de mito, porque querem esvaziar ela de sentido histórico, e
portanto chamam de mito.
Acontece
que todas as narrativas míticas anunciam coisas que nós vivemos, reconhecidas
como história. Outro dia eu estava me perguntando, que lugar é esse que o mito
informa para vocês? Como um pensamento se apoia nesse lugar da narrativa do
mito para ele pensar e interagir com o mundo? O que me ocorreu é dizer que no
tempo do mito a gente ainda não tinha a angústia da certeza. Parece um debate
filosófico né? O tempo do mito é quando você ainda não tem angústia da certeza.
Você não precisa ter certeza; o mito é uma possibilidade, não uma garantia. Não
tem uma garantia de duração, de tempo; ele é mágico. Ele inaugura, abre uma
porta para você atravessar e sair no mundo, interagir e se realizar no mundo.
Sempre, obrigatoriamente, é uma experiência coletiva. Não é o sujeito, não é o
self-made man. Não tem self made man nessa história. As pessoas pertencem a
coletivos, suas histórias são de profunda interação com uma constelação de
gente que, na base mesmo, costuma estar a sua herança cultural – seus avós,
seus ancestrais. Independente de qual culto eles sigam, na base das
mentalidades, do modo de se colocar no mundo estão as memórias mais antigas e
ancestrais.
EDUCAÇÃO
Ailton
Krenak: Eu acho que a gente cruza e encontra um ponto de intersecção
interessante com a biografia da Macaé[1], que é a coisa dela conseguir ligar
isso com a ideia da educação. A experiência dela com a educação é uma
apropriação supercrítica, menos do que uma ferramenta e mais do que um ambiente
onde a vida social do mundo moderno se constitui.
É
no campo da educação, é quando você começa a fabricar o sujeito, a construir a
pessoa. No caso das sociedades tradicionais de oralidade, a pessoa começa a ser
constituída lá atrás, no sonho, antes de estar na barriga da mãe. Muitas dessas
pessoas são sonhadas, e quando a mãe começa a gestar uma criança, a família, o
coletivo já sabe que aquele menino veio, quem está vindo. Então diferentes
tradições sabem que é um velho que está vindo. Quando o menino nasce já sabem
olhar ele e falar: “esse é fulano, esse é ciclano”. Isso não tem nada a ver com
reencarnação não, tem a ver com outras coisas muito mais complexas. Mas é a
capacidade de entender o fluxo, a longa jornada da experiência humana que
interage os que estão vivos agora e os ancestrais, independente do culto, pode
até ser evangélico. Porque as pessoas podem falar: “não, mas isso é coisa da
tradição dos pajés, xamãs, candomblés”. Não, em qualquer memória que essas
pessoas tenham, a memória profunda, é formada por seus ancestrais.
“Quando
você barateia um programa de educação igual esse governo golpista está fazendo,
você já está dizendo que tipo de gente quer formar.”
Aí
quando você pensa um tipo de sociedade onde uma ação de engajamento do sujeito
na sociedade se dá pelo processo formativo disso que podemos chamar de
educação, aí que me interesso muito pelo jeito que a Macaé entra nisso, o corte
que ela faz. É diferente do Paulo Freire. O Darcy também é uma veia educadora,
mas o jeito que ele olha a educação, e como esses outros educadores e
pensadores abordam a educação como um serviço e competência do Estado, onde ele
tem a hegemonia de informar esse processo e organizá-lo, de…
Jaílson:
Definir agenda?
Ailton
Krenak: Mais do que definir agenda, é eleger a condução que isso vai propiciar.
Se você vai formar gente para virar mão de obra do mercado, se você vai formar
gente crítica dentro da sociedade que você está integrando, se você vai formar
gente para governar ou ser governada, isso é uma escolha que o Estado faz.
Quando você define a Lei das Diretrizes Básicas da Educação você sinaliza que
tipo de gente você está pretendendo formar.
Quando
você barateia um programa de educação igual esse governo golpista está fazendo,
você já está dizendo que tipo de gente quer formar.
A
Macaé, essa coisa de identidade dela como professora, como educadora é o
primeiro enunciado dela. Mas a capacidade dela de fazer a gestão desse negócio,
a gestão desse aparato da educação e de ver ele por dentro e fazer a crítica
dele é igual à crítica que eu tenho de fazer a crítica do aparato do Estado
para capturar índio. Eu sei que ela tem capacidade de atravessar o aparelho do
Estado e ver onde estão as ferramentas de dominação que o Estado aciona a cada
período para produzir mentalidades servis, para produzir não cidadãos críticos,
mas aquele estoque de gente que o mercado está encomendando para os próximos
dez anos. A negação desse direito da pessoa de continuar sua formação, sua
constituição de pessoa crítica capaz de interagir no mundo é uma das práticas
mais constantes que o Estado brasileiro tem feito em diferentes períodos – no
tempo do Getúlio Vargas, depois no período do Juscelino que se estendeu até a
ditadura, que faz outro corte e entra com outro tipo de encomenda. É como se
você tivesse uma linha de produção que só varia de acordo com a encomenda. Você
calibra as máquinas para produzir o tipo de coisa que o mercado está
encomendando. Decididamente a educação no Brasil hoje é para atender ao
mercado, mesmo quando avançam…
A
educação tinha que ser um ambiente privilegiado para o menino, a menina
experimentar isso. Uma pessoa no mundo é essa potência toda, essa possibilidade
de interagir com tudo. Não pode ser esse enquadramento da pessoa, do que tem-se insistido em fazer. Eu sinto que da mesma
maneira que eu esperneio no campo de desorganizar o aparato do Estado, que é
obcecado pelo controle, a Macaé faz isso no campo da educação intervindo em
diferentes contextos. Eu sei que para ela é difícil aceitar um convite para ser
secretária de Educação do Estado, mas tem hora que nosso engajamento nos obriga
a entrar num beco desses e alargá-lo, dar sentido a ele. É por ali que temos
que passar. Foi nessas circunstâncias que em algum momento fiquei dez anos
dentro de uma relação com o Estado. Quando eu estava assessorando o Estado de
Minas Gerais, e não o governo de Minas, estava interferindo nas intersecções do
aparelho desse Estado, e na reprodução dele, para dar contornos ao seu contato
com nossas comunidades e territórios indígenas.
Então
se daqui de dentro da máquina, do aparelho do Estado, saía as orientações para
saúde, saneamento, meio ambiente, gestão territorial, do jeito que saía aqui
não podia chegar na aldeia, porque atropelava. A gente tinha que serrar o dente
do vampiro antes de soltá-lo. A gente falava: “não, espera aí, desse jeito esse
teste de HIV não vai chegar nas aldeias”, com a Secretaria de Saúde. Ou “com a
educação desse jeito, não vai ter escola em aldeia não”, foi o processo de
maior engajamento da Macaé junto conosco. Modular que tipo de estrutura a rede
de escolas do Estado podia chegar nas aldeias, como ela podia chegar. A gente
não podia chegar e fazer uma transferência, uma extensão dessa rede de educação
que tem aqui fora para cima das aldeias, era essa a tendência natural do
Estado. Quando colocamos a questão de uma educação específica, de uma abordagem
própria para cada etnia foi uma luta dentro do aparelho do Estado, para
reconfigurar o que veio a dar no PIEI – Programa de Implantação de Escolas
Indígenas. Esse programa está vivo até agora, e tem lutado muito para continuar
tendo sua integridade, para que não seja aviltado por todas as interferências
constantes do Município, do Estado e da Superintendência de Ensino.
É
uma espécie de claquete do aparelho do Estado. Quando ele vê alguma
criatividade surgindo, alguma invenção se espraiando…
Jailson:
Que ele não controla.
Ailton
Krenak: É, ele tem um acesso de ir controlar. Para, diminui, corta os recursos,
tira os gestores que estão comprometidos com aquilo e enfia outros no lugar que
sejam comprometidos com eles.
FLORESTANIA
Ailton
Krenak: Então, acho que é uma luta constante para alargar o espaço do exercício
da cidadania, mas uma que possa alcançar a ideia inventiva dos povos da
floresta que disseram que têm florestania, para contrapor a essa coisa bruta da
cidade onde a ideia de cidadão é rua asfaltada, água canalizada, saneamento,
quadradinho, condomínios, conjuntos, propriedades privatizadas, serviços,
segurança, polícia, saúde, hospital. Eles olham tudo isso e falam: “mas nós não
somos isso”. Pode ser uma simplificação da ideia de cidadão, de cidade, mas um
movimento muito ativo surgiu a partir de Rio Branco e se espalhou por algumas
regiões da Amazônia, a demanda da florestania. São pessoas que têm um exercício
cidadão dentro da floresta com a defesa dos territórios, da floresta, da
biodiversidade, da capacidade desses povos se articularem e se moverem em
amplos espaços, que não têm que ser na cidade. É como se estivesse questionando
a hegemonia das cidades sobre os modos de assentamento, de comunidade, e tem
que ter mesmo essa resistência da florestania questionando a cidadania urbana,
porque a tendência dessa cidadania urbana é devorar tudo que tem em seu entorno
e negar a potência de outras formas de ser cidadão.
A
florestania é uma ótima maneira de colocar em questão se as cidades é mesmo o
melhor lugar para as pessoas cooperarem umas com as outras, reproduzir vida e
cultura, ou se elas são só consumidores de energia, inclusive de recursos naturais
porque as cidades sugam tudo que está em volta. Para uma cidade existir ela
precisa construir Belo Monte, pelo menos dizem que precisa.
JUVENTUDE INDÍGENA
Jailson:
E nesse quadro como você vê a juventude? Você falou muito do papel
significativo da juventude na década de 70 para construir o movimento indígena.
E essa juventude de hoje, como é o indígena de hoje? Como você vê essa
potência?
“Quanto
tem de conservação e de segregação na existência de uma reserva, de um
território?”
Ailton
Krenak: Eu vejo a juventude indígena, escalando desde o meu filho de seis anos
de idade até os que estão com 27, 30 anos com uma fissura pela conexão com o
mundo. Mas se por um lado isso desconcerta um pensamento conservador como o
meu, por outro ele também anima minha expectativa do próximo movimento deles,
porque eles também estão reconhecendo na forma própria de seus avôs e
ancestrais uma legítima maneira de resistir ao fim do mundo. Quanto mais eles
se conectam, mais eles veem um mundo em destroços. Tem jovens yawanawa que vão
para a Europa, caxinauás que vão para a Noruega e ficam cinco, seis meses para
lá circulando em várias comunidades, fazendo xamanismo e interação com os
outros, levando ayahuasca para aqueles povos brancos, colocando eles para
viajar no cosmos. Eles voltam, olham para a cara dos avôs deles e falam: “foi
meu avô que me ensinou isso”, e o avô daquele branco da Noruega não sabe. Isso
desperta para um vínculo e cria um chamado de uma maneira, para que eles
interajam com o lugar de onde eles vieram e para os possíveis outros lugares
onde eles podem estar. Quem sabe essa vai ser uma das conexões da vida nas
aldeias, que tira o povo indígena dessa armadilha do gueto. Não dá para você
pensar que, no século XXII, continue tendo reservas indígenas. Na África isso
era chamado de Bantustão, e o Mandela lutou contra isso. Ele falava: “isso é
segregação”.
Quanto
tem de conservação e de segregação na existência de uma reserva, de um
território?
Mesmo
quando chamam de território estão esvaziando o sentido de contenção que aquele
lugar representa para quem vive lá dentro, de controle sobre quem vive lá
dentro e estão informando muito pouco sobre a capacidade que aquela gente tem
ali de interagir com o mundo. O que é mais curioso é que ao mesmo tempo em que
dentro do Estado brasileiro se concebe a ideia de reservar uma terra para os
índios, não se admite a ideia de que eles têm um trânsito entre aquele lugar e
o resto do mundo.
O
trânsito entre esses lugares tira dele a condição de índio. A gente volta ao
começo da nossa conversa, quando os índios que começaram o movimento eram
considerados não mais índios, porque não precisavam do passe do administrador
do governo para circular. Agora já estamos falando numa circulação em outro
termo, que é a possibilidade de circulação de ideias, de interação dessas
pessoas com condição indígena interagir com o mundo. Está nesse programa de
residências artísticas que está sendo inaugurado no Xingu, que recebe o pessoal
da Inglaterra e leva os meninos para lá, que interage com o mundo. Isso não
está no figurino da política do Estado brasileiro para sociedades indígenas. É
como se o Estado brasileiro tivesse um programa para os índios idealizados, mas
que não cabem os índios de verdade, os que têm que comer, beber, transitar,
viver, interagir, aprender, mudar. Então é um desafio para esses meninos, que
vai desde o de seis anos até o menino de 26 ou mais.
É
ajudar nós, os pais, tios e avós a ver qual é o próximo passo que podemos dar
no sentido de superar uma dicotomia do mundo do branco e do índio. Eu não
acredito que seja sustentável essa condição de mundo do branco e do índio,
temos que ser capazes de romper com essa fronteira. Agora como você rompe com
essa fronteira sem esmagar e anular as diferenças?
“Ao
mesmo tempo em que dentro do Estado brasileiro se concebe a ideia de reservar
uma terra para os índios, não se admite a ideia de que eles têm um trânsito
entre aquele lugar e o resto do mundo.”
Jailson:
Qual seria a postura e contribuição, que você entende, que organizações
poderiam dar para fortalecer as lutas indígenas no Brasil?
Ailton
Krenak: Enquanto a gente conversava aqui, nós estávamos vendo quanta interação
já existe hoje entre o mundo das aldeias, digamos assim, e os centros urbanos;
tanto no Brasil quanto fora do Brasil. A convocatória que aparece para essa
juventude é de se fazer presente em diferentes cenas, lugares das trocas
culturais. Acho que talvez o que pudéssemos melhorar era a compreensão da
diversidade de povos que nós nos constituímos. Acho que ainda prevalece uma
ideia genérica do índio que se não tem tu, vai tu mesmo. Tipo assim, você pode
ter algumas pessoas indígenas que estão circulando e que atendem à expectativa
de troca com esse mundo da cultura, digamos; ou da experiência formativa,
produção cultural e que não abre para a diversidade – pluralidade, melhor dizendo. São centenas de
povos com diferentes matrizes culturais vivendo em quase um milhar de
endereços. Se formos pensar, devem haver mais de mil endereços territoriais
indígenas no Brasil. A tendência que pode ser até refletida, por exemplo, nas
mídias – você olha a novela da Globo tem, pelo menos, consecutivas novelas nos
últimos cinco, seis anos que adotaram um padrão índio de televisão. Algum lugar
de uma Amazônia imaginária, não é uma Amazônia onde os ribeirinhos e os
indígenas vivem o dia-a-dia, mas é uma sublimação.
Tanto
os índios quanto a Amazônia, acabam sendo uma abstração, tem pouco contato
mesmo com a vida dessas comunidades. Acho que ter uma abertura para essa
diversidade e pluralidade pode melhorar a qualidade das trocas que vem
ocorrendo nos últimos cinco, seis anos. Isso não é uma crítica negativa – pejorativa – do que tem sido feito. Já que
foi feito uma pergunta direta de como poderíamos melhorar isso, acho que é
diversificando os objetos de troca. Tem aquela coisa emblemática dos
sertanistas. Você perguntou dos irmãos Vilas Boas. Eles criaram uma escola do
contato, na qual eles penduravam um varal de panela, facão, acessórios e
espelhos que atraíam os índios. Eram frentes de atração que usavam aquela
representação da troca entre os brancos e os índios. Agora ela se reproduz no
campo das trocas culturais, onde alguns itens são trocados; mas quem escolhe
quais são os itens são os brancos. Então, acho que seria muito interessante que
abrisse a possibilidade dos índios que já sabem fazer o enunciado da troca
dizerem o que gostariam de trocar, ao invés de receberem, mais uma vez, facão,
panelas, espelhos. Abrir os espaços da troca cultural para que ele tenha muitas
mãos, entendeu? Não só mão e contra mão. Deve ter muitas mãos, vias de chegada
e saída. Isso pode inclusive nos ajudar a desvelar outras paisagens, lugares de
troca – trocas feitas em outros termos que não sejam só da captura do mundo
simbólico dos índios pelo mundo dos brancos.
Como
o mundo branco está saturado, ele está buscando novas referência nos
imaginários – na África, nas florestas, aldeias, demonizando o mundo árabe.
Então acho que devemos ficar bem atentos para que essas trocas não se deem
apenas como uma continuidade da recolonização das nossas práticas e mentes por
uma sociedade ávida por novidade, que é a civilização europeia, que move gente
de pele escura. Você não precisa ser branco para ser recolonizador. Tem muita
gente de pele morena recolonizando seus irmãos com toda a bagagem, bugiganga,
ocidental; capturando os universos imaginários em troca de bugiganga fabricadas
no mundo ocidental. É o caso da mercadoria. O Davi Kopenawa, naquele livro “A
Queda do Céu”, faz uma crítica arrasadora da mercadoria. Ele chama os brancos
da civilização da mercadoria. Eles dizem que são mais apaixonados pela
mercadoria do que pelas suas próprias mulheres. Se um dos dois tiverem que
morrer afogado, ele deixa a mulher e segura a mercadoria. Achei essa crítica
tão terrível – eles olham a mercadoria com mais paixão do que as suas
namoradas. Achei essa imagem tão reveladora.
DEMOCRACIA E GLOBALIZAÇÃO
Jailson:
Qual você acha que é o desafio fundamental hoje colocado na sociedade em crise
como a brasileira? Quais os riscos que esses movimentos sociais, inclusive o
indígena, correm? Como eles podem responder? Já como aconteceu no final da
década de 70, início da de 80, quando você fala que sai, de certa forma, de um
processo mais obscuro e consegue apresentar luzes comuns. Quais seriam as luzes
comuns nesse momento de luta pela democracia no Brasil?
“Gente
de fora na Europa é refugiado, mas os recursos naturais desses mesmos povos
para a Europa consumir – é muito
bem-vindo”
Ailton
Krenak: Então, surpreende o fato da ideia de democracia ter sido capturada,
também de uma maneira irrevogável, pelo império. O centro da força escura
capturou a ideia de democracia e já distribui a democracia delivery. Se tiver
algum lugar do mundo com carência de democracia, eles criam caos, arregaçam com
tudo – como tem feito com a Venezuela – ou como podem fazer com a gente. Ou
como fazem frequentemente na Argentina, ou como fizeram na Síria. Depois eles
vão lá e semeiam democracia. Aquela ideia da primavera árabe, por exemplo, que
eles venderam para nós; eles, na verdade, tratoraram o mundo árabe – as
tradições, desestabilizando, bombardeando, para depois vir com esse papo de democracia.
Tenho dúvida sobre o tipo de democracia que estão querendo servir para a gente.
É bom ficarmos bem espertos.
Essa
ideia moderna demais de globalização, prefiro aquela outra globalização
preconizada pelo Milton Santos. É uma outra. Não essa sacanagem que estão
fazendo – a globalização da mercadoria e internacionalização dos recursos. É a
globalização da mercadoria, internacionalização dos recursos, mercadoria
transita pra todo lado, mas pessoas não. Gente de fora na Europa é refugiado,
mas os recursos naturais desses mesmos povos para a Europa consumir – é muito bem-vindo.
–
[1]
Macaé Maria Evaristo dos Santos é Educadora; coordenou o Programa de
Implantação de Escolas Indígenas de Minas Gerais no período de 1997 a 2003.
Atuou como Secretária de Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da
Educação (2013-2014).
Na Revista Periferias
https://racismoambiental.net.br/2018/06/02/ailton-krenak-a-potencia-do-sujeito-coletivo-parte-ii/
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