domingo, 3 de junho de 2018

AILTON KRENAK. A POTÊNCIA DO SUJEITO COLETIVO. PARTE II


O TEMPO DO MITO

Ailton Krenak: É um mito totalmente absurdo dizer que nós índios, os negros que foram agarrados na África e despejados aqui, e os brancos, que alguns vieram sem saber para onde estavam indo, fomos constituir a base da nossa civilização. É um barateamento total da nossa história, é uma negação dos conflitos profundos que marcaram esses desencontros de povos.

Naturalizar o encontro dos índios com os negros nos quilombos como um evento que emerge como uma representação da força, da aliança natural desses povos contra o opressor é uma mistificação também, porque quando os negros e índios constituíram alianças em algumas situações de quilombo eles eram uma capacidade tão grande de alteridade, as identidades estavam tão claras que você não tinha nenhum pote formando aquela ideia de colocar todos num caldeirão e tirar dali um estrato. Então as pessoas sabiam que não eram matéria prima, são seres humanos com biografias, vidas e histórias. Suas sociedades tinham trajetórias próprias, eles tinham uma aliança circunstancial contra o opressor. Mas eles não estavam criando uma nova civilização; essa mistificação é uma maneira dos nossos continuados dominadores explicar e justificar o tipo de história que estamos constituindo a longo prazo.

A melhor maneira de arrematar a história do Brasil de uma maneira edificante é dizer que mesmo os índios e negros sendo esfolados e mortificados, ainda ergueram a bandeira da brasilidade.

Mesmo com os brancos descendo a chibata nos negros e índios, aqueles índios e negros eram tão cristãos, tão compassivos e devotos que estavam levantando a bandeira do Brasil escrita “ordem e progresso”. Então é um épico totalmente picareta e mistificador da nossa formação.

Na base da nossa formação só tem conflito; nem os brancos vieram para cá para fazer qualquer ato edificante, nem os negros vieram voluntariamente para ser escravos, e nem os índios estavam aqui achando engraçadinho essa invasão.

Uma puta duma invasão que não para, com muitos colaboradores aqui dentro. Quando todo mundo veste uma camisa verde e amarela e começa a berrar na Avenida Paulista atrás de um pato, eles estão mostrando para nós que os que estão resistindo são em menor número do que os colaboradores. Tem muito mais colaborador falando: “venham pegar a gente” do que gente levantando e dizendo: “não vem não, porque aqui tem um povo vivendo”. Então isso ainda denuncia uma falta de identidade. Para mim isso foi a maior denúncia de que a gente ainda precisa caminhar muito para um dia podermos olhar uns para as caras dos outros e dizer: “de alguma maneira nós constituímos uma nação”.

Eu ainda sigo incrédulo com a possibilidade de uma nação brasileira, uma certa dificuldade que me acompanha desde muito cedo quando não aceitei me engajar em nenhum partido político. Eu nunca me filiei em partido político, simplesmente porque nenhuma canga dessas me cabia. E como dizia um sujeito rebelde e goiano que me ajudou a fundar o Centro de Pesquisa Indígena, quando estava revoltado, dizia: “não bota canga em mim não. Era seu jeito de se rebelar. Eu acho que isso sempre foi uma espécie de lema meu interior, porque a ideia consoladora de que estamos no seio de uma nação nunca me embalou. Eu sempre me senti incomodado, com a sensação de que somos um acampamento enorme no escuro, na maioria das vezes atropelando uns aos outros. De vez em quando dá um raio, e naquele breve instante a iluminação do mesmo faz a gente olhar para um lado, para o outro e falar assim: “ali estão os índios, aqui estão os negros, ali estão todos esses outros povos que vieram para cá”. Esse acampamento tem toda essa multitude, toda essa gente e mundos aqui dentro. Nesse breve relance de olhar uns nos outros fazemos um “diretas já”, fazemos uma campanha da constituinte, mas volta o acampamento para o escuro de novo e começa a pancadaria doméstica. Só quando acende a luz de novo que você olha e vê uns aos outros meios esfolados, quebrados.

“A melhor maneira de arrematar a história do Brasil de uma maneira edificante é dizer que mesmo os índios e negros sendo esfolados e mortificados, ainda ergueram a bandeira da brasilidade.”

Como você vai chamar uma coisa dessa de nação? É um acampamento de portugueses, remanescentes, povos indígenas, alguns africanos e outros afrodescendentes, porque continua vindo povos da África para cá, que não são levas de gente trazidos na marra, mas vêm para continuar suas vidas e experiências, suas lutas e engajamentos, sua história, e também reanimam.

Da mesma maneira que o povo indígena é reanimado pelo contato com nossos parentes que ainda vivem em condições favoráveis na floresta, esses visitantes que vêm da África também reanimam o pensamento de muitos pensadores negros aqui no Brasil, sobre quem nós somos. Não podemos ficar perdidos num acampamento que só reconhece uns aos outros quando dá um relâmpago, temos que ser capazes de tentar uma memória continuada de quem nós somos.

No caso dos povos indígenas a memória continuada tem que visitar um lugar que insistem em chamar de mito, porque querem esvaziar ela de sentido histórico, e portanto  chamam de mito.

Acontece que todas as narrativas míticas anunciam coisas que nós vivemos, reconhecidas como história. Outro dia eu estava me perguntando, que lugar é esse que o mito informa para vocês? Como um pensamento se apoia nesse lugar da narrativa do mito para ele pensar e interagir com o mundo? O que me ocorreu é dizer que no tempo do mito a gente ainda não tinha a angústia da certeza. Parece um debate filosófico né? O tempo do mito é quando você ainda não tem angústia da certeza. Você não precisa ter certeza; o mito é uma possibilidade, não uma garantia. Não tem uma garantia de duração, de tempo; ele é mágico. Ele inaugura, abre uma porta para você atravessar e sair no mundo, interagir e se realizar no mundo. Sempre, obrigatoriamente, é uma experiência coletiva. Não é o sujeito, não é o self-made man. Não tem self made man nessa história. As pessoas pertencem a coletivos, suas histórias são de profunda interação com uma constelação de gente que, na base mesmo, costuma estar a sua herança cultural – seus avós, seus ancestrais. Independente de qual culto eles sigam, na base das mentalidades, do modo de se colocar no mundo estão as memórias mais antigas e ancestrais.

EDUCAÇÃO

Ailton Krenak: Eu acho que a gente cruza e encontra um ponto de intersecção interessante com a biografia da Macaé[1], que é a coisa dela conseguir ligar isso com a ideia da educação. A experiência dela com a educação é uma apropriação supercrítica, menos do que uma ferramenta e mais do que um ambiente onde a vida social do mundo moderno se constitui.

É no campo da educação, é quando você começa a fabricar o sujeito, a construir a pessoa. No caso das sociedades tradicionais de oralidade, a pessoa começa a ser constituída lá atrás, no sonho, antes de estar na barriga da mãe. Muitas dessas pessoas são sonhadas, e quando a mãe começa a gestar uma criança, a família, o coletivo já sabe que aquele menino veio, quem está vindo. Então diferentes tradições sabem que é um velho que está vindo. Quando o menino nasce já sabem olhar ele e falar: “esse é fulano, esse é ciclano”. Isso não tem nada a ver com reencarnação não, tem a ver com outras coisas muito mais complexas. Mas é a capacidade de entender o fluxo, a longa jornada da experiência humana que interage os que estão vivos agora e os ancestrais, independente do culto, pode até ser evangélico. Porque as pessoas podem falar: “não, mas isso é coisa da tradição dos pajés, xamãs, candomblés”. Não, em qualquer memória que essas pessoas tenham, a memória profunda, é formada por seus ancestrais.

“Quando você barateia um programa de educação igual esse governo golpista está fazendo, você já está dizendo que tipo de gente quer formar.”

Aí quando você pensa um tipo de sociedade onde uma ação de engajamento do sujeito na sociedade se dá pelo processo formativo disso que podemos chamar de educação, aí que me interesso muito pelo jeito que a Macaé entra nisso, o corte que ela faz. É diferente do Paulo Freire. O Darcy também é uma veia educadora, mas o jeito que ele olha a educação, e como esses outros educadores e pensadores abordam a educação como um serviço e competência do Estado, onde ele tem a hegemonia de informar esse processo e organizá-lo, de…

Jaílson: Definir agenda?

Ailton Krenak: Mais do que definir agenda, é eleger a condução que isso vai propiciar. Se você vai formar gente para virar mão de obra do mercado, se você vai formar gente crítica dentro da sociedade que você está integrando, se você vai formar gente para governar ou ser governada, isso é uma escolha que o Estado faz. Quando você define a Lei das Diretrizes Básicas da Educação você sinaliza que tipo de gente você está pretendendo formar.

Quando você barateia um programa de educação igual esse governo golpista está fazendo, você já está dizendo que tipo de gente quer formar.

A Macaé, essa coisa de identidade dela como professora, como educadora é o primeiro enunciado dela. Mas a capacidade dela de fazer a gestão desse negócio, a gestão desse aparato da educação e de ver ele por dentro e fazer a crítica dele é igual à crítica que eu tenho de fazer a crítica do aparato do Estado para capturar índio. Eu sei que ela tem capacidade de atravessar o aparelho do Estado e ver onde estão as ferramentas de dominação que o Estado aciona a cada período para produzir mentalidades servis, para produzir não cidadãos críticos, mas aquele estoque de gente que o mercado está encomendando para os próximos dez anos. A negação desse direito da pessoa de continuar sua formação, sua constituição de pessoa crítica capaz de interagir no mundo é uma das práticas mais constantes que o Estado brasileiro tem feito em diferentes períodos – no tempo do Getúlio Vargas, depois no período do Juscelino que se estendeu até a ditadura, que faz outro corte e entra com outro tipo de encomenda. É como se você tivesse uma linha de produção que só varia de acordo com a encomenda. Você calibra as máquinas para produzir o tipo de coisa que o mercado está encomendando. Decididamente a educação no Brasil hoje é para atender ao mercado, mesmo quando avançam…

A educação tinha que ser um ambiente privilegiado para o menino, a menina experimentar isso. Uma pessoa no mundo é essa potência toda, essa possibilidade de interagir com tudo. Não pode ser esse enquadramento da pessoa, do que tem-se  insistido em fazer. Eu sinto que da mesma maneira que eu esperneio no campo de desorganizar o aparato do Estado, que é obcecado pelo controle, a Macaé faz isso no campo da educação intervindo em diferentes contextos. Eu sei que para ela é difícil aceitar um convite para ser secretária de Educação do Estado, mas tem hora que nosso engajamento nos obriga a entrar num beco desses e alargá-lo, dar sentido a ele. É por ali que temos que passar. Foi nessas circunstâncias que em algum momento fiquei dez anos dentro de uma relação com o Estado. Quando eu estava assessorando o Estado de Minas Gerais, e não o governo de Minas, estava interferindo nas intersecções do aparelho desse Estado, e na reprodução dele, para dar contornos ao seu contato com nossas comunidades e territórios indígenas.

Então se daqui de dentro da máquina, do aparelho do Estado, saía as orientações para saúde, saneamento, meio ambiente, gestão territorial, do jeito que saía aqui não podia chegar na aldeia, porque atropelava. A gente tinha que serrar o dente do vampiro antes de soltá-lo. A gente falava: “não, espera aí, desse jeito esse teste de HIV não vai chegar nas aldeias”, com a Secretaria de Saúde. Ou “com a educação desse jeito, não vai ter escola em aldeia não”, foi o processo de maior engajamento da Macaé junto conosco. Modular que tipo de estrutura a rede de escolas do Estado podia chegar nas aldeias, como ela podia chegar. A gente não podia chegar e fazer uma transferência, uma extensão dessa rede de educação que tem aqui fora para cima das aldeias, era essa a tendência natural do Estado. Quando colocamos a questão de uma educação específica, de uma abordagem própria para cada etnia foi uma luta dentro do aparelho do Estado, para reconfigurar o que veio a dar no PIEI – Programa de Implantação de Escolas Indígenas. Esse programa está vivo até agora, e tem lutado muito para continuar tendo sua integridade, para que não seja aviltado por todas as interferências constantes do Município, do Estado e da Superintendência de Ensino.

É uma espécie de claquete do aparelho do Estado. Quando ele vê alguma criatividade surgindo, alguma invenção se espraiando…

Jailson: Que ele não controla.

Ailton Krenak: É, ele tem um acesso de ir controlar. Para, diminui, corta os recursos, tira os gestores que estão comprometidos com aquilo e enfia outros no lugar que sejam comprometidos com eles.

FLORESTANIA

Ailton Krenak: Então, acho que é uma luta constante para alargar o espaço do exercício da cidadania, mas uma que possa alcançar a ideia inventiva dos povos da floresta que disseram que têm florestania, para contrapor a essa coisa bruta da cidade onde a ideia de cidadão é rua asfaltada, água canalizada, saneamento, quadradinho, condomínios, conjuntos, propriedades privatizadas, serviços, segurança, polícia, saúde, hospital. Eles olham tudo isso e falam: “mas nós não somos isso”. Pode ser uma simplificação da ideia de cidadão, de cidade, mas um movimento muito ativo surgiu a partir de Rio Branco e se espalhou por algumas regiões da Amazônia, a demanda da florestania. São pessoas que têm um exercício cidadão dentro da floresta com a defesa dos territórios, da floresta, da biodiversidade, da capacidade desses povos se articularem e se moverem em amplos espaços, que não têm que ser na cidade. É como se estivesse questionando a hegemonia das cidades sobre os modos de assentamento, de comunidade, e tem que ter mesmo essa resistência da florestania questionando a cidadania urbana, porque a tendência dessa cidadania urbana é devorar tudo que tem em seu entorno e negar a potência de outras formas de ser cidadão.

A florestania é uma ótima maneira de colocar em questão se as cidades é mesmo o melhor lugar para as pessoas cooperarem umas com as outras, reproduzir vida e cultura, ou se elas são só consumidores de energia, inclusive de recursos naturais porque as cidades sugam tudo que está em volta. Para uma cidade existir ela precisa construir Belo Monte, pelo menos dizem que precisa.

JUVENTUDE INDÍGENA

Jailson: E nesse quadro como você vê a juventude? Você falou muito do papel significativo da juventude na década de 70 para construir o movimento indígena. E essa juventude de hoje, como é o indígena de hoje? Como você vê essa potência?

“Quanto tem de conservação e de segregação na existência de uma reserva, de um território?”

Ailton Krenak: Eu vejo a juventude indígena, escalando desde o meu filho de seis anos de idade até os que estão com 27, 30 anos com uma fissura pela conexão com o mundo. Mas se por um lado isso desconcerta um pensamento conservador como o meu, por outro ele também anima minha expectativa do próximo movimento deles, porque eles também estão reconhecendo na forma própria de seus avôs e ancestrais uma legítima maneira de resistir ao fim do mundo. Quanto mais eles se conectam, mais eles veem um mundo em destroços. Tem jovens yawanawa que vão para a Europa, caxinauás que vão para a Noruega e ficam cinco, seis meses para lá circulando em várias comunidades, fazendo xamanismo e interação com os outros, levando ayahuasca para aqueles povos brancos, colocando eles para viajar no cosmos. Eles voltam, olham para a cara dos avôs deles e falam: “foi meu avô que me ensinou isso”, e o avô daquele branco da Noruega não sabe. Isso desperta para um vínculo e cria um chamado de uma maneira, para que eles interajam com o lugar de onde eles vieram e para os possíveis outros lugares onde eles podem estar. Quem sabe essa vai ser uma das conexões da vida nas aldeias, que tira o povo indígena dessa armadilha do gueto. Não dá para você pensar que, no século XXII, continue tendo reservas indígenas. Na África isso era chamado de Bantustão, e o Mandela lutou contra isso. Ele falava: “isso é segregação”.

Quanto tem de conservação e de segregação na existência de uma reserva, de um território?

Mesmo quando chamam de território estão esvaziando o sentido de contenção que aquele lugar representa para quem vive lá dentro, de controle sobre quem vive lá dentro e estão informando muito pouco sobre a capacidade que aquela gente tem ali de interagir com o mundo. O que é mais curioso é que ao mesmo tempo em que dentro do Estado brasileiro se concebe a ideia de reservar uma terra para os índios, não se admite a ideia de que eles têm um trânsito entre aquele lugar e o resto do mundo.

O trânsito entre esses lugares tira dele a condição de índio. A gente volta ao começo da nossa conversa, quando os índios que começaram o movimento eram considerados não mais índios, porque não precisavam do passe do administrador do governo para circular. Agora já estamos falando numa circulação em outro termo, que é a possibilidade de circulação de ideias, de interação dessas pessoas com condição indígena interagir com o mundo. Está nesse programa de residências artísticas que está sendo inaugurado no Xingu, que recebe o pessoal da Inglaterra e leva os meninos para lá, que interage com o mundo. Isso não está no figurino da política do Estado brasileiro para sociedades indígenas. É como se o Estado brasileiro tivesse um programa para os índios idealizados, mas que não cabem os índios de verdade, os que têm que comer, beber, transitar, viver, interagir, aprender, mudar. Então é um desafio para esses meninos, que vai desde o de seis anos até o menino de 26 ou mais.

É ajudar nós, os pais, tios e avós a ver qual é o próximo passo que podemos dar no sentido de superar uma dicotomia do mundo do branco e do índio. Eu não acredito que seja sustentável essa condição de mundo do branco e do índio, temos que ser capazes de romper com essa fronteira. Agora como você rompe com essa fronteira sem esmagar e anular as diferenças?

“Ao mesmo tempo em que dentro do Estado brasileiro se concebe a ideia de reservar uma terra para os índios, não se admite a ideia de que eles têm um trânsito entre aquele lugar e o resto do mundo.”

Jailson: Qual seria a postura e contribuição, que você entende, que organizações poderiam dar para fortalecer as lutas indígenas no Brasil?

Ailton Krenak: Enquanto a gente conversava aqui, nós estávamos vendo quanta interação já existe hoje entre o mundo das aldeias, digamos assim, e os centros urbanos; tanto no Brasil quanto fora do Brasil. A convocatória que aparece para essa juventude é de se fazer presente em diferentes cenas, lugares das trocas culturais. Acho que talvez o que pudéssemos melhorar era a compreensão da diversidade de povos que nós nos constituímos. Acho que ainda prevalece uma ideia genérica do índio que se não tem tu, vai tu mesmo. Tipo assim, você pode ter algumas pessoas indígenas que estão circulando e que atendem à expectativa de troca com esse mundo da cultura, digamos; ou da experiência formativa, produção cultural e que não abre para a diversidade –  pluralidade, melhor dizendo. São centenas de povos com diferentes matrizes culturais vivendo em quase um milhar de endereços. Se formos pensar, devem haver mais de mil endereços territoriais indígenas no Brasil. A tendência que pode ser até refletida, por exemplo, nas mídias – você olha a novela da Globo tem, pelo menos, consecutivas novelas nos últimos cinco, seis anos que adotaram um padrão índio de televisão. Algum lugar de uma Amazônia imaginária, não é uma Amazônia onde os ribeirinhos e os indígenas vivem o dia-a-dia, mas é uma sublimação.

Tanto os índios quanto a Amazônia, acabam sendo uma abstração, tem pouco contato mesmo com a vida dessas comunidades. Acho que ter uma abertura para essa diversidade e pluralidade pode melhorar a qualidade das trocas que vem ocorrendo nos últimos cinco, seis anos. Isso não é uma crítica negativa –  pejorativa – do que tem sido feito. Já que foi feito uma pergunta direta de como poderíamos melhorar isso, acho que é diversificando os objetos de troca. Tem aquela coisa emblemática dos sertanistas. Você perguntou dos irmãos Vilas Boas. Eles criaram uma escola do contato, na qual eles penduravam um varal de panela, facão, acessórios e espelhos que atraíam os índios. Eram frentes de atração que usavam aquela representação da troca entre os brancos e os índios. Agora ela se reproduz no campo das trocas culturais, onde alguns itens são trocados; mas quem escolhe quais são os itens são os brancos. Então, acho que seria muito interessante que abrisse a possibilidade dos índios que já sabem fazer o enunciado da troca dizerem o que gostariam de trocar, ao invés de receberem, mais uma vez, facão, panelas, espelhos. Abrir os espaços da troca cultural para que ele tenha muitas mãos, entendeu? Não só mão e contra mão. Deve ter muitas mãos, vias de chegada e saída. Isso pode inclusive nos ajudar a desvelar outras paisagens, lugares de troca – trocas feitas em outros termos que não sejam só da captura do mundo simbólico dos índios pelo mundo dos brancos.

Como o mundo branco está saturado, ele está buscando novas referência nos imaginários – na África, nas florestas, aldeias, demonizando o mundo árabe. Então acho que devemos ficar bem atentos para que essas trocas não se deem apenas como uma continuidade da recolonização das nossas práticas e mentes por uma sociedade ávida por novidade, que é a civilização europeia, que move gente de pele escura. Você não precisa ser branco para ser recolonizador. Tem muita gente de pele morena recolonizando seus irmãos com toda a bagagem, bugiganga, ocidental; capturando os universos imaginários em troca de bugiganga fabricadas no mundo ocidental. É o caso da mercadoria. O Davi Kopenawa, naquele livro “A Queda do Céu”, faz uma crítica arrasadora da mercadoria. Ele chama os brancos da civilização da mercadoria. Eles dizem que são mais apaixonados pela mercadoria do que pelas suas próprias mulheres. Se um dos dois tiverem que morrer afogado, ele deixa a mulher e segura a mercadoria. Achei essa crítica tão terrível – eles olham a mercadoria com mais paixão do que as suas namoradas. Achei essa imagem tão reveladora.

DEMOCRACIA E GLOBALIZAÇÃO

Jailson: Qual você acha que é o desafio fundamental hoje colocado na sociedade em crise como a brasileira? Quais os riscos que esses movimentos sociais, inclusive o indígena, correm? Como eles podem responder? Já como aconteceu no final da década de 70, início da de 80, quando você fala que sai, de certa forma, de um processo mais obscuro e consegue apresentar luzes comuns. Quais seriam as luzes comuns nesse momento de luta pela democracia no Brasil?

“Gente de fora na Europa é refugiado, mas os recursos naturais desses mesmos povos para a Europa consumir –  é muito bem-vindo”

Ailton Krenak: Então, surpreende o fato da ideia de democracia ter sido capturada, também de uma maneira irrevogável, pelo império. O centro da força escura capturou a ideia de democracia e já distribui a democracia delivery. Se tiver algum lugar do mundo com carência de democracia, eles criam caos, arregaçam com tudo – como tem feito com a Venezuela – ou como podem fazer com a gente. Ou como fazem frequentemente na Argentina, ou como fizeram na Síria. Depois eles vão lá e semeiam democracia. Aquela ideia da primavera árabe, por exemplo, que eles venderam para nós; eles, na verdade, tratoraram o mundo árabe – as tradições, desestabilizando, bombardeando, para depois vir com esse papo de democracia. Tenho dúvida sobre o tipo de democracia que estão querendo servir para a gente. É bom ficarmos bem espertos.

Essa ideia moderna demais de globalização, prefiro aquela outra globalização preconizada pelo Milton Santos. É uma outra. Não essa sacanagem que estão fazendo – a globalização da mercadoria e internacionalização dos recursos. É a globalização da mercadoria, internacionalização dos recursos, mercadoria transita pra todo lado, mas pessoas não. Gente de fora na Europa é refugiado, mas os recursos naturais desses mesmos povos para a Europa consumir –  é muito bem-vindo.
[1] Macaé Maria Evaristo dos Santos é Educadora; coordenou o Programa de Implantação de Escolas Indígenas de Minas Gerais no período de 1997 a 2003. Atuou como Secretária de Alfabetização, Diversidade e Inclusão do Ministério da Educação (2013-2014).


Na Revista Periferias


https://racismoambiental.net.br/2018/06/02/ailton-krenak-a-potencia-do-sujeito-coletivo-parte-ii/

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