Em
tempos de crise o Direito parece fenecer. Constituições, códigos, estatutos e
jurisprudências parecem apenas esbravejar ante a realidade dos fatos. Em tempos
de crise, o Direito vai bem apenas no imaginário dos juristas, que “(...) vivem
um paradoxo: (...) cotidiano está marcado pelo contraditório, mas (...)
ideologia conservadora está sempre reafirmando a harmonia do mundo”[1]; essa
harmonia é empiricamente inexistente.
Uma
carta do jovem Marx a seu pai dá pistas dessa desilusão. A carta é datada de 10
de novembro de 1837[2]. Karl Marx, então com 19 anos, revela-nos uma
antropologia negativa da ordem jurídica. Essa - a ordem jurídica - só parece
funcionar quando as instituições aparentemente se submetem a uma ordem
supostamente livre de fissuras ou de conflitos, que de algum modo, ainda quando
latentes, são imediatamente abafados.
A
missiva é cheia de ternura de esperança. Marca uma percepção de mundo ao mesmo
tempo doce e realista. A carta de Marx, é diferente, por exemplo, da famosa
epístola que Franz Kafka enviou a seu pai, e que constitui farto material para
análise de conflitos típicos entre pai e filho, em contextos edipianos. A carta
de Kafka é carregada de pessimismo. A carta de Marx é carregada de otimismo
para com a vida, embora se mostrasse desiludido com os estudos de Direito que
fazia. Ainda moço, já se revelava como o grande lutador que conhecemos e
admiramos, concordemos ou não com suas premissas e conclusões.
Na
carta, Marx falava de seus planos. Estava apaixonado por Jenny von Westphalen,
com quem noivara secretamente um ano antes (os intelectuais também amam).
Explicava o que estava lendo, o que estudava, o que o cativava nesse mundo
deliciosamente instigante que é o mundo da cultura. À época, Marx estudava
Direito na Universidade de Bonn[3]. As observações que enviou ao pai, relativa
aos estudos que fazia, prenunciam o modo desdenhoso como o filósofo
revolucionário de Trier trataria o direito no contexto de seu pensamento e da
formulação de sua leitura da sociedade.
E
nesses dias de hoje, nos quais a ordem jurídica observa inerte e atônita o
desdobrar dos acontecimentos de matiz econômico, comprova-se a profecia de quem
colocou o mundo das leis como mero coadjuvante do mundo econômico, isto é, como
uma expressão de conjuntura em face de uma ativa estrutura. Esse fórmula,
porém, e negativamente, foi de algum modo sequestrada pelos adversários que
Marx historicamente provocou, e que ao longo dos anos, subverteram o conceito
esperançoso de uma ordem justa pelo conceito imaginariamente aferível de uma
ordem eficiente. A usarmos termos imprecisos e fora de moda, a direita tomou da
esquerda algumas ferramentas de transformação do mundo, do mesmo modo que o
direito tomou da teologia várias ferramentas de manutenção desse mesmo mundo.
Marx
contou ao pai que estava desencantado com os assuntos então discutidos em sala
de aula, a exemplo da oposição entre leis do ser e leis do dever ser, ponto de
partida para uma construção metafísica da justiça, carregada de idealismo.
Denunciava que o Direito consistia em mera apropriação inconsciente de um
dogmatismo matemático, o que sentia especialmente com a exploração dos
problemas jurídicos tornados clássicos pelos cultores do Direito romano.
Marx
não se conformava com classificações jurídicas intermináveis, e que se
iniciavam com digressões em torno de semelhanças e de dissemelhanças entre
Direito Público e Direito Privado. Reproduziu na mencionada carta excerto das
categorizações que fazia em sala de aula, perguntando ao pai por que deveria
encher páginas com conceitos e taxonomias absolutamente distantes da realidade,
desprovidos de funcionalidade. Percebia que seus esforços para um estudo sério
se perdiam nas trivialidades e na futilidade. Achava que perdia tempo precioso.
Queixou-se
que se arruinava em estudos que desdenhavam a natureza, a arte, o mundo real, o
que o alienava, bem como aos amigos que então tinha. Explicou ao pai que
estudava o tema da propriedade em Savigny, o Direito Criminal em Feuerbach (de
quem se tornou amigo, e justamente quem formulou o preceito clássico de que não
há crime sem lei anterior que o defina). Estou Aristóteles, de quem teria
traduzido a Retórica. Estudou também o Direito alemão, com base no método
histórico, como se fazia à época, voltando no tempo até a época dos reis
francos.
Quanto
aos planos do pai, no sentido de que Marx obtivesse um emprego público, na área
jurídica, o jovem estudante pouco entusiasticamente admitiu que, de fato, a
jurisprudência o interessaria um pouco mais do que o estudo da administração.
Pensava também na carreira acadêmica, porém os concursos exigiam dos candidatos
pelo menos a produção de um livro medíocre, com comentários dos códigos das
várias províncias germânicas, o que ocorreu antes da unificação do Direito
alemão, público (ocorrido em 1871, com a vitória de Bismarck) e privado (o que
ocorreu em 1900, com o advento do Código Civil alemão).
Marx
distanciou-se do Direito, aproximando-se da filosofia, preparando tese de
doutorado sobre a filosofia da natureza em Demócrito e em Epicuro. Profetizou
que a ordem jurídica seria uma serva da ordem econômica, bem como as demais
instâncias da vida humana, a exemplo da política e da estética, vaticinando que
a ilusão da justiça comprovaria delírio ideológico e patológico para com uma
ordem que atenderia a poucos.
Nessa
carta do jovem Marx já se capta certa apreensão para com a fragilidade das
coisas do mundo, onde, o que é sólido desmancha-se no ar, ao mesmo tempo em que
o sagrado acaba profanado, a usarmos uma de suas expressões mais ricas de
sentido.
[1] É a passagem
clássica de Roberto A. R. de Aguiar, O Imaginário dos Juristas, talvez o mais
lúcido texto sobre direito e ideologia escrito no Brasil. Conferir Amílton
Bueno de Carvalho, Revista de Direito Alternativo, nº 2, São Paulo: Acadêmica,
1993, pp. 18-27.
[2] Tenho comigo uma
versão traduzida da carta, para o inglês. Loyd D. Easto e Kurt H. Guddat, Karl
Marx- writings og the young Marx on Philosophy and Society, Indianapolis:
Hackett, 1997, pp. 40-50.
[3] Para uma compreensão
biográfica dessa fase de Marx, conferir David McLellan, Karl Marx, a Biography,
London: Palmgrave, 2006, pp. 13 e ss.
Arnaldo
Sampaio de Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e
doutor e mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela
FGV-ESAF e pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela
UnB (Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e
pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto
Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-jun-03/desilusao-direito-carta-jovem-marx-pai
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