domingo, 3 de junho de 2018

AILTON KRENAK. A POTÊNCIA DO SUJEITO COLETIVO. PARTE I


Apresentação
Por Julia Sá Earp*

Não poderia Ailton Krenak vir a público em entrevista em momento mais pertinente, quando se faz necessário  ouvir uma voz que inspira e perturba nossas percepções para que a lucidez e a consciência não se dissipem com o vento. Não é uma tarefa fácil introduzir a personalidade do Ailton Krenak. Enquanto lia pela primeira vez estas páginas, ouvia sua calma narrativa pendulando entre o renomado precursor dos movimentos sociais indígenas e o sincero e curioso senhor que compartilha de forma instigante as esquisitices e contrassensos do mundo dos brancos.

Sem esforço, sua fala nos faz olhar de ponta cabeça as noções já dadas como certas para nós. Ailton Krenak é um dos maiores conhecedores do emaranhado histórico da luta pelos direitos indígenas dentro e fora da política brasileira, sua participação junto a Álvaro Tukano, Marcos Terena e Raoni Metuktire na constituinte de 1988 iniciou uma nova fase de visibilidade aos povos originários no Brasil garantindo e legitimando o direito a demarcação de suas terras, uma virada recente na história do país e que atualmente sofre tantos assédios e tentativas de sabotagem pelo atual governo.

São tantos os episódios compartilhados na entrevista que para realizar esta introdução sem entregar o conteúdo das próximas páginas, que com certeza são melhores de serem acessados pelas palavras do Ailton, precisei tirar as sandálias e tocar os pés no chão para buscar a terra e escrever algo que fizesse sentido em dizer sem ser redundante ou repetitiva aos tantos textos que o apresentam brilhantemente. Com os pés sobre o taco do chão do apartamento sinto o calor da madeira; ex-árvores vindas de um território distante; neste momento apenas vibram com o intenso movimento diurno da padaria do térreo do edifício; abaixo dela metros de cimento da fundação do prédio, e só depois de tanto material e histórias sobrepostas suponho que enfim chegaria à terra.

São percepções que podem parecer banais, mas a cada vez que sou hipnotizada pela fala do Ailton me pego questionando e investigando cada centímetro ao meu redor. Ao contrário do que pareça, saio dessas profundas viagens tentando enxergar o indivíduo coletivo no cotidiano da cidade, ou desconstruir as fronteiras e tentar sentir o território com a profundidade interpretativa de Krenak. A desconexão não é mitológica ou particular como pode parecer em um primeiro contato com os textos do professor e escritor Krenak; é material, palpável assim como a distancia entre nossos corpos e a terra, proporcionada pelo cimento e os quilômetros ocultos da história do processo de fabricação do próprio piso de taco do apartamento. São distâncias cotidianas do nosso mundo urbano, de produção e de intensos processos de desconexão e omissão de histórias. A conexão visível e invisível entre o território e  seus habitantes perpassa por conceitos importantes para captar a perspectiva de Ailton sobre  mundo e cidadão, e ainda sobre  o sentido de “estar em aldeia”. Percepções distantes da realidade das cidades, mas que podem, da mesma forma, ressoar a seu modo com espontaneidade e vigor nas das periferias urbanas e suas potências.

A potência é uma chave central entre as duas personalidades em diálogo: Jailson Sousa e Silva e Ailton Krenak, entrevistador e entrevistado. Não por acaso, a potência reverbera nesta entrevista por diversos níveis, não apenas nos conceitos elaborados por Ailton, mas está integralmente em sua personalidade e no interesse múltiplo do interlocutor pelo passado e presente dos povos indígenas no Brasil, o que leva esta entrevista `a lugares incomuns de reflexão tanto para Krenak e Jailson, quanto por consequência, para o próprio leitor.

A leitura desta entrevista é extensa e profunda e por isso foi dividida em duas partes. A primeira é de tom mais histórico, e apresenta os seguintes blocos temáticos: Trajetórias, Teologia da Libertação, Ditadura Militar e a “Emancipação”.

A segunda parte da entrevista, não se dissocia do contemporâneo. Em seus blocos temáticos, aborda: O Tempo do Mito, Educação, Florestania, Juventude Indígena e Democracia e Globalização”.

Sendo quase impossível dispensar qualquer linha posto o contexto político que vivemos, é fundamental, assim como em um tratamento de homeopatia, exercer a escuta e a aproximação aos povos originários não apenas pelo resgate de uma memória mas sim por uma gradual cura a partir destas fortes vozes que ecoam e recuperam a  história da terra calada pelos nossos cimentos.

[*] Designer e pesquisadora no campo de Arquitetura e Antropologia.

AILTON KRENAK – A POTÊNCIA DO SUJEITO COLETIVO

PARTE I

TRAJETÓRIAS

Jailson Souza Silva: As biografias são referências de percursos construídos em nossas vidas pessoais e socialmente construídas. Podemos começar assim? Fique à vontade.

Ailton Krenak: Acho que biografias têm uma potência de evocar percursos da nossa formação e da nossa vida, da nossa experiência engajada, seja no contexto local, quando você vive numa pequena comunidade, ou quando você consegue extrapolar os limites dessa comunidade onde nos sentimos protegidos pela memória e pela história, mesmo [retirar]que cada um de nós pode experimentar. Extrapolar esses limites da comunidade é uma rara experiência que algumas pessoas realizam conscientemente, de maneira ativa. A maioria de nós, cuspidos desse ambiente confortável, da vida familiar, do convívio no caso de uma comunidade indígena, ou uma dessas comunidades autônomas que vivem nas periferias do social, esse ambiente onde a vida prospera à revelia dos arranjos políticos e em geral. É como se estivéssemos vivendo em isolamento do mundo planejado, onde acontecem muitas invenções.

São invenções que a história social não captura. Acho que durante muito tempo essas vidas foram experiências invisíveis, de gente maravilhosa que deu conta de criar os filhos, de formar uma comunidade, de proteger um território, de construir um sentimento de territorialidade onde aquele complexo de trocas, de famílias, de camaradagem vai se dando e os meninos crescem nesses ambientes com uma potência, uma capacidade, uma liberdade tão maravilhosa. Esse mundo acaba se constituindo como uma biosfera; lugar onde aquelas vidas chegam a cem anos, até mais, são sábios, pessoas com trajetórias ricas, mas que não conectam com as realidades complexas do mundo global que tomamos consciência mais tarde. No meu caso a gente foi cuspido do nosso território muito cedo, porque vivíamos num contexto de comunidades que já eram dadas como integradas ou desaparecidas, comunidades indígenas. Era como se fosse o resto dos índios que sobreviveram à colonização do Rio Doce, mas que ainda tinham modelos de organização que implicavam o acesso comum às coisas. Ter acesso comum a água, ao rio, ao lugar onde você podia buscar comida, acesso de sociabilidade que envolvia a vida de muitas pessoas. Esses coletivos, é isso [retirar] que chamam de comunidade. Eu acho que quando nomeiam esses coletivos de comunidades esvaziam um pouco da potência que eles têm, e plasma uma situação idealizada de comunidade – não conseguem problematizar a vida dessas pessoas.

Sacar uma biografia de um ambiente desses é uma maneira de iluminar todo esse ambiente e projetar sentido na vida de todo mundo; nossos avós, tios, pais, dos nossos irmãos, dos colegas de infância. É uma nave. É uma constelação de seres que estão viajando e transitando no mundo, não no da economia e das mercadorias, mas no mundo das vidas mesmo, dos seres que vivem e experimentam constante insegurança. É como se essas mentalidades, essas pessoas precisassem ter um mundo dilatado para poderem experimentar sua potência de seres criadores. Pessoas que cresceram escutando histórias profundas que reportam eventos que não estão na literatura, nas narrativas oficiais, e que atravessam do plano da realidade cotidiana para um plano mítico das narrativas e contos. É também um lugar da oralidade, onde o saber, o conhecimento, seu veículo é a transmissão de pessoa para pessoa. É o mais velho contando uma história, ou um mais novo que teve uma experiência que pode compartilhar com o coletivo que ele pertence e isso vai integrando um sentido da vida, enriquecendo a experiência da vida de cada sujeito, mas constituindo um sujeito coletivo.

“É o mais velho contando uma história, ou um mais novo que teve uma experiência que pode compartilhar com o coletivo que ele pertence e isso vai integrando um sentido da vida, enriquecendo a experiência da vida de cada sujeito, mas constituindo um sujeito coletivo.”

Essa percepção do sujeito coletivo surge muito cedo para nós. Eu devia ter uns 17 anos de idade quando eu, meus pais, irmãos e um tio, alguns primos mais novos, fomos todos engolfados numa caravana, saindo do nosso lugar de origem, para buscar outro pouso, outro lugar para continuarmos vivendo. E não problematizava muito como ia ser esse outro lugar, era um lugar que pudesse reproduzir a experiência coletiva, de continuar vivendo juntos.

Nós saímos do Rio Doce para o mundo. Vamos imaginar que tinha um endereço que fosse o Paraná. Esse grupo que saiu do Rio Doce já na segunda metade da década de 1960, em 1966, 1967, tinha experimentado a dissolução dos coletivos que vivíamos, pela violência que estava chegando lá com a ocupação daquele território, com disputa de terra, conflitos fundiários agudos e uma negação permanente do direito de a gente ser e de ter uma experiência de viver coletivos. Nossos vizinhos tinham sítios, inclusive aqueles que tomaram a terra dos índios tinham pequenas propriedades. Era uma família, pessoas, indivíduos que eram donos daqueles sítios. A maneira de existir coletivamente não cabia mais naquele lugar, e ficou inviável para a gente como coletivo naquele lugar. Os que estavam resistindo, eram à custa da própria vida; tinha gente sendo assassinada, porque não cabiam mais naquele lugar. Tivemos que buscar outro lugar.

Sou da geração do exílio do nosso povo, de quando muitas pessoas saíram e foram para Goiás, São Paulo, Espírito Santo, Mato Grosso. É como se fosse uma fuga meio sem destino, para um exílio que você não sabia quanto tempo ia durar, mas eu acho que no fundo todo mundo tinha uma esperança de poder voltar – meio parecido com essa coisa dos nordestinos que vêm para o Rio e São Paulo, mas como se fosse: “vou ali e volto já”. Às vezes esse “volto já” não acontece e caímos no grande oceano dos acontecimentos da vida. Quando vi na saída de São Paulo, onde nos instalamos, para tentar sobreviver mesmo, sem nenhuma referência no meio dos paulistas e dos outros migrantes que estavam ali, começamos a sentir um incômodo muito grande de se colocar como sujeito naquele contexto.

Eu olhava em volta de mim, coincidiu um pouco de ser no tempo da ditadura [militar], e as pessoas tinham diferentes graus de conhecimento, de entendimento do que estávamos vivendo. Com essa idade eu já comecei a olhar em volta e perceber que tinha um ativismo de trabalhadores, gente simples e pobre mesmo, se balançando de um lado para o outro para tentar fazer se compreender, ser respeitado e visto. Ainda não tinha uma ideia muito definida dessa coisa de direitos que venham de algum lugar, os chamados direitos humanos, mas um incômodo muito grande dessa coisa da invisibilidade. Se você vive uma experiência de comunidade, a ideia de pessoa é fortemente constituída, como personalidade mesmo, com perspectivas próprias, interagindo com outros iguais. Esse sentimento de interagir com outros iguais é fundamental para sermos uma pessoa equilibrada. Você não fica o tempo inteiro tendo que fazer ajuste para se relacionar, você fica à vontade numa comunidade. Cada um é cada um, não tem padrão – as pessoas não se surpreendem se você tem uma ou outra escolha.

“Se você vive uma experiência de comunidade, a ideia de pessoa é fortemente constituída, como personalidade mesmo, com perspectivas próprias, interagindo com outros iguais. Esse sentimento de interagir com outros iguais é fundamental para sermos uma pessoa equilibrada.”

Agora quando você cai num campo minado do exílio, você tem que todo dia atualizar sua memória; o que você está fazendo e querendo ali.

Foi quando comecei a perceber que tinha os guaranis ali em São Paulo no planalto, tinha uns lá do litoral que eu não conhecia e só vim conhecer uns anos depois. Mas ali por meados da década de 70, eu já via a movimentação dos guaranis tentando sobreviver em volta de São Paulo, sendo enxotados.

Jailson de Souza e Silva: Da represa né?

Ailton Krenak: É, a Billings. Aquele pessoal que está em Parelheiros, no Jaraguá, eles sofrendo todo tipo… o mesmo despejo que sofremos no Rio Doce, eles sofriam lá também. Comecei a frequentar e visitar os parentes, perceber a movimentação que eles estavam fazendo, estar presente em alguma dessas situações, mas ainda me sentindo exiliado. Ficava sempre me sentindo que estava fora de casa.

Percebi que eu podia ter algum tipo de presença mais ativa naquela circulação que estavam fazendo, como para tirar alguém que  explorava palmito da serra na área que caçavam e coletavam, mas agora tinha um particular tomando conta, e assim virava uma disputa por terra.

Começamos a ver que tinha uma via de reivindicação disso com o Estado, com o Município. Começamos a inventariar e daqui a pouco já estamos batendo na porta da Funai em Brasília. Batendo nas portas e reclamando, aquilo que depois vem configurado como direitos para nós.

É interessante como essa coisa da ideia de um direito, a percepção de que tem alguma coisa que é direito e podemos constituir aquele direito, que não precisamos esperar que ele se apresente para nós, mas vamos em busca dele – isso já me mobilizava desde cedo.

Com pouca ferramenta para interagir e interferir, mas com muita angústia e expectativa de conseguirmos abrir caminhos, comecei a participar de iniciativas que reconfiguravam aqueles coletivos, quando você começa a atuar em uma ou outra comunidade, mesmo que seja uma dispersa naqueles bairros pobres, que estão lá batalhando para ter uma pinguela em cima do rego de água, porque quando chove, inunda tudo.

“espera aí, mas que terra é essa, que lugar é esse, que comunidade é essa que constituímos aqui?”.

Então, você tem que reivindicar o quê?

Uma passagem. Desde essas pequenas questões até você começar a olhar em volta de você e pensar: “espera aí, mas que terra é essa, que lugar é esse, que comunidade é essa que constituímos aqui?”. E vai despertando tantas inquietações, vai alertando sua potência de sujeito que ainda nem atina com essa ideia de cidadão, porque essa ideia é muito sofisticada. A maioria das pessoas que se movimentam em suas vidas para largar o espaço de existência não despertam porque já têm uma ideia do que é ser cidadão, isso é um sentimento natural de buscar ar para respirar, de conviver, de poder fazer uma festa, dar comida, compartilhar as coisas. A minha formação coincidiu muito quando essa coisa da cultura brasileira, quando nós todos estávamos sendo incorporados nessa coisa de mercado. As famílias que viviam na roça de repente estavam tendo que aprender a contar dinheiro, a entrar num armazém e comprar, a saber fazer conta e pagar depois, a medir o tamanho das coisas. A partir do imaginário, é projetar uma cartografia dos mundos, dos lugares onde transitávamos.

É de um oceano desse que meu caminho de ativista foi se clareando. Eu olhei essa coisa toda e pensei, nossa, estou numa sinuca que posso buscar um trabalho numa fábrica e desaparecer num túnel dessas fábricas. Ir para o SENAI, virar um torneiro mecânico, um ferramenteiro ou passar a vida inteira como ajudante de fábrica, porque tem muita gente que viveu desse jeito, teve origem na roça e depois se modernizou virando operário, trabalhador.

O que é interessante é que alguma coisa em mim me informava que eu não era um sujeito daquele mundo do trabalho, daquele mundo do engajamento dessa coisa de vender meu trabalho em troca de alguma coisa que eu quisesse ali – uma escola, uma casa, um carro, um bem.

É o que move muito a vida das pessoas mais enxotadas de seus lugares de origem. Qualquer um no seu lugar de origem está totalmente encaixado, se ele viver 60 ou 80 anos vivendo numa casa de farinha moendo e fazendo rapadura, está realizado. A criação dele, o universo de invenção e criação dele é pleno. Mas quando ele é arrancado desse lugar e jogado num outro ponto qualquer, ele tem que se realocar. Esse desterrado agora vai ter que reinventar ele e seu mundo. Eu acho que eu tinha uma ânsia, uma vontade de que essa realocação não fosse só do indivíduo, da minha pessoa, mas que arrastasse comigo minha parentalha, as pessoas que tinham expressão e sentido na minha memória afetiva, nas minhas relações familiares e tudo. Eu não queria arrumar uma saída para mim. Acho que foi daí que eu atinei que tinha sentido fazermos uma luta mais aberta, que é quando comecei a ver que tinha os xavantes, os guaranis, os caingangues, que tinham outras famílias também expulsadas de sua terra…

[…] e que nosso lugar não era no desterro.

Todo mundo ali tinha um lugar, e aí começamos a pensar onde era nossos lugares. O embrião disso que veio a ser o movimento indígena, que ajudei a pensar, digamos, a projetar. Ele nasceu de pessoas que tinham mais ou menos minha idade, que ia desde o Mário Juruna, que é um pouco mais velho, Álvaro Tucano, o Marcos Tereno e um coletivo de outros jovens indígenas que estavam estudando em Brasília. Eles inclusive esboçaram uma ideia duma organização de estudantes, uma UNINDE – União de Jovens Indígenas Estudantes. O esboço deles era aquela coisa dos estudantes.

Jailson: O substantivo era o estudante e o adjetivo era o índio?

Ailton Krenak: É. Mas quando eu, o Álvaro Tucano, que foi exilado lá do Alto Rio Negro pelos salesianos, pela ordem religiosa que tinha lá e excomungou ele, mandando para fora, porque ele tinha ido junto com o Mário Juruna no Tribunal Bertrand Russel denunciar a ditadura, o genocídio indígena, quando ele voltou ao Brasil, os padres não deixaram ele voltar para Rio Negro. Ele formou junto comigo e outros parentes, igual o Ângelo Kretan, Nelson Xangrê e alguns dos nossos parentes guaranis ali do planalto paulista, do interior de São Paulo, onde tem reservas indígenas, e começamos a olhar e a ser olhados por aqueles movimentos de pastorais da terra, a indígena, que veio a ser o CIMI – Conselho Indigenista Missionário. Naquelas comunidades de base o ambiente que fomos cultivando nossas alianças.

TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO

Jaílson: A teologia da libertação foi um espaço de diálogo para vocês?

Ailton Krenak: Não tenho dúvida que foi, porque eles criavam um fluxo, abriam possibilidade de você estar andando e ir nos encontros comunitários. Eu me lembro que uma das primeiras vezes que tive um veículo para portar minha voz, foi uma campanha daquelas da fraternidade, quando ainda estávamos naquela…

Jaílson: Isso aconteceu no final da década 1970?

Ailton Krenak: Final da década de 70, começo de 80, que eu já estava engajado nesses debates. Teve uma campanha da fraternidade que tinha como tema “pão para o mundo” acho, ou pão é vida, que abordava a coisa da fome.

A gente vivia em comunidades de fome. Hoje se você falar que tínhamos comunidades que passavam fome, com gente morrendo de fome, é bem capaz de alguém falar: “não, isso foi no começo do século XX”. Não, foi no final do século XX. É por isso que tem o Betinho[1]. Eu ainda não sabia dele, das campanhas. Foi mais adiante que as campanhas do Betinho se firmaram. Mas lá atrás já tinha o diagnóstico da fome barbarizando com a vida de milhares de pessoas. Então acho que foi numa dessas campanhas do pão para a vida, ou do pão é vida, de repartir o pão, que usaram uma fala minha e veicularam minha imagem, e viralizou. Desde o Nordeste, na Amazônia, para todo lado onde chegava um panfleto da Prelazia, ou uma imagem na TV, aquele rapazinho aparecia falando alguma coisa. E aquilo foi ampliando minha perspectiva de com quem eu podia falar, e comecei a ter noção de que podia falar com outras praias e pessoas, que eu podia falar além daqueles desabrigados das periferias das grandes cidades, como São Paulo, o Rio de Janeiro mesmo, Curitiba. Eu também podia falar com o pessoal que estava na floresta, com meus parentes imaginários em algum lugar da floresta. E começamos a mandar uma fala, como se estivesse mandando para outro planeta. Mandar uma fala para os parentes que estavam dentro da floresta. Indo nos encontros, fazendo essa comunicação à distância, fazendo fita cassete com mensagens para mandar às aldeias, a gente estava acreditando que tinha alguém do outro lado que podia entender o que estávamos falando.

Eu acho que esse foi o primeiro ambiente de sustentação de uma ideia de movimento social ampliado, onde o povo indígena era o protagonista. Onde a gente não era mais quem esperava o prato de socorro, ou o agasalho, a ajuda. Era alguém que assumia uma iniciativa de começar a debater a realidade que estávamos vivendo.

DITADURA MILITAR E A “EMANCIPAÇÃO”

Ailton Krenak: Foi muito curioso, porque foi nessa época que o estado resolveu que eles iam emancipar os índios. Foi no final da década de 70, a emancipação foi no governo Geisel.Eles decidiram que iam fazer a campanha da emancipação em [19]76. Eles lançaram o lema da emancipação, uma reforma do estado, com a questão da terra, dos direitos civis mesmo. Digamos que era o período de maior desgaste dessas relações, quando o Estado decidiu dizer que aquela gente que pensava que era índio, não era mais. Aquela violência do Estado abrangente que atingia desde os Ianomâmis, os Xavantes, os Ticunas, os Guaranis, até os índios urbanos e periféricos todos, foi a primeira oportunidade de coalisão indígena que tivemos. O Estado atacou, e houve uma coalisão.

“Aquela violência do Estado abrangente que atingia desde os Ianomâmis, os Xavantes, os Ticunas, os Guaranis, até os índios urbanos e periféricos todos, foi a primeira oportunidade de coalisão indígena que tivemos.”

De repente você tinha no mesmo protesto gente como o Daniel Cabixi, que vinha lá do Mato Grosso, o Aniceto Celestino, que eram lideranças xavantes que nem português dominavam ainda, apesar de terem uma fala bem marcada porque eram alunos salesianos, eram catequistas de salesianos e falavam aquele português meio de padre. Mas eles viam como potência e capacidade de animar o debate sobre os direitos indígenas, e aquilo tirou a venda de nossos olhos. Foi quando  Marçal de Souza disse: “o Brasil não foi descoberto, foi invadido”. O índio kaiowá guarani do Mato Grosso do Sul, no fundo de uma fazenda do latifúndio intransponível gritava e esperneava: “o Brasil não foi descoberto, foi invadido”. Falou isso em 76. E aí o pau começou a quebrar, a repressão caiu em cima das aldeias de uma maneira violenta. Nessa época quem dirigia a Fundação Nacional do Índio eram generais, coronéis, que aliás, está na moda agora. A gente tem um general de pijama dirigindo a FUNAI, mas naquele tempo eles eram fardados e armados. E reprimiam mesmo, os comandos militares não davam moleza em nenhuma região do país.

A gente tinha jovens indígenas que estavam em colégios salesianos, que estavam em restos de missões religiosas espalhadas por Goiás, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, no Acre, no Alto Rio Negro. Esses jovens liam, escreviam, e começaram a dar consistência às mensagens que os anciãos e mais velhos falavam, e repercutiam uma fala como essa do Marçal de Souza, que o Brasil não foi descoberto, mas invadido. Olha o enunciado, olha que coisa maravilhosa para dar base à uma coisa que está nascendo. Não estava engatinhando, ele já nasceu em pé dizendo: “o Brasil foi invadido”. Então se ele foi invadido, a nossa tarefa era retomá-lo. E aí começamos a luta pelas demarcações das terras indígenas. Era campanha para demarcação das terras, e campanha pelos direitos indígenas.

O primeiro encontro que fizemos se chamava “Índios, direitos históricos”. Olha a plataforma. Os direitos eram históricos, não por vir.

Estávamos cobrando o que tinha sido tirado. E nesse primeiro encontro tinha gente de 68 etnias, numa época em que os documentos oficiais diziam que no Brasil tinha 120 povos. A gente reuniu 68 de cara. Depois mais tarde eles diziam ter 180. Tem gente que ainda repete até hoje que são 180, tem muito documento oficial que diz que ele tem 180 etnias ou povos, mas esquecem que são 300 e tantos, ou pode ser muito mais do que isso.

Assim como as estatísticas da época diziam que no Brasil tinha em torno de 120, 150 mil indígenas, porque eles contavam das aldeias. Quando falamos aldeias, falamos de diferentes situações de fato, em que esses parentes estavam sendo encurralados e segregados em alguns territórios, e não tinham nenhuma condição de sobrevivência. Com uma administração federal em cima deles controlando mesmo a vida, a ponto de uma pessoa não poder se deslocar daquela aldeia dele para uma outra região sem ter um passe, que o chefe de posto autorizava.

Jailson: Campo de concentração?

Ailton Krenak: É, sem aquele passe você não circulava. E eram considerados não índios os que circulavam sem passe. Se você andava por aí e um chefe de posto não te controlava, você não era mais índio. Além dessa claquete de dizer que quem usa calça jeans, relógio e óculos não são mais índios, eles também tinham essa de que quem circulava sem carteirinha e o vale transporte da FUNAI e do chefe de posto, não era mais índio. “Ele já está emancipado”. Então a emancipação era compulsória. Ao invés de avançar o exercício da cidadania, ao invés de ter uma percepção de que era um avanço no sentido da conquista de novos espaços de expressar cidadania, aquilo era percebido como um dar de mãos para a emancipação. Eu lembro de uma fila enorme no INPS[2], que dobrava a calçada, virava e sumia para outras ruas. Lá no fim daquela fila tinha uns camaradas todos bonitos, parecendo uns lutadores de huka-huka do Xingu. Era o fim da fila do INPS, o fim da fila dos pobres. Era o lugar onde eles iam colocar os “emancipados”. Então a emancipação dos índios era colocar eles no fim daquela fila da pobreza.

A gente teve que lutar contra esse estigma que estava marcado para nosso destino comum, que era de todos os índios irem para o fim da fila dos desapropriados de tudo.

Eu acho que aquela coisa do movimento era uma reação contra essa negação da nossa existência, contra a negação dos nossos direitos históricos e nossa possibilidade de inventar outros jeitos de ser de qualquer maneira, mas que principalmente implicava em respeitar os territórios onde nosso povo ainda conseguia manter a resistência, ficar vivo. Essa coisa que articulava a ideia de direitos humanos com território era meio casada para a maioria desses camaradas da minha idade. E para os mais velhos, isso foi uma revelação. Se para os mais velhos a ideia de um território era mágica, uma ideia fundada no mito, agora tinha um monte de filhos e netos deles dizendo que além daquilo ser informado por nossas narrativas ancestrais, também tinha um correspondente aqui fora no mundo: o direito nós que tínhamos.

Há a descoberta de um mundo aqui fora onde tinha um corpo de representação dessa sociedade, que apesar de ser nossa devoradora, dentro dela tinha instituições que precisávamos conhecer, e de dentro delas podíamos chacoalhar algum balaio para sair lá de dentro as referências do que considerávamos nossos direitos.

O documento mais efetivo que o Estado tinha para dialogar com essa nossa demanda era o Estatuto do Índio, a Lei 6.001. Uma lei feita na ditadura que o considerava uma peça fundamental para que o Estado não esmagasse o resto dos índios, e por isso ele dizia: “calma, se vocês vão quebrar o pau com o Estado, prestem atenção, porque se vocês acabarem com essa Lei 6.001 vocês acabam com a última barreira que ainda delimita um lugar obscuro, mas onde vocês ainda estão reconhecidos. Fora desse lugar vocês estão na massa geral de desapropriados e sem-terra”. Ainda nem tinham essa categoria e segmento identificado. Quer dizer, até para conquistar esse status o pobre tem que ir fundo, tem que ralar na mais desolada condição de cidadão para se erguer como um sem-terra.

“A gente teve que lutar contra esse estigma que estava marcado para nosso destino comum, que era de todos os índios irem para o fim da fila dos desapropriados de tudo.”

Acho que no caso dos povos indígenas a gente beirou essa fronteira do desaparecimento. Quando conseguimos fazer a curva do desaparecimento, conseguimos nos erguer como um movimento social inventivo, extremamente fragilizado pelo próprio contexto histórico em que estava posto, mas que já conseguia estar na história.

É por isso que é possível nomear como contexto histórico. O Estado agarrou nossa perna e nós saímos da cena com a cabeça erguida, esperneando e gritando. Eu acho que o primeiro reconhecimento dessa emergência de direitos veio dos intelectuais, da universidade, tendo figuras que já mencionei, como o Darcy, mas tendo outras pessoas e figuras tão fundamentais quanto ele, que em diferentes lugares do país começaram a puxar os índios para o debate, trazer os mesmos para a cena e para a fala público.

 OS IRMÃOS VILLAS-BÔAS

Jailson: Como os irmãos Villas-Bôas se colocam nisso?

Ailton Krenak: Os irmãos Villas-Bôas eram os capitães do mato do Estado, não queriam que os índios voltassem a ser índios. Para os Villas-Bôas estava muito bom os índios do Xingu; as 17 etnias que eles tinham colocado na arca de Noé eram para ficar lá, os outros o dilúvio tinha que levar. Se não levou, é porque tardou demais. De certa maneira eles achavam que foi um retardamento da modernização do Estado brasileiro, ter deixado que tanta borda e periferia se esgueirasse pelas beiras de rios, igarapés, pés de serra e continuasse resistindo.

Era impensável para os irmãos Villas-Bôas que os Xacriabá pudessem, no final do século XX, ressurgir como uma nação forte e capaz de reivindicar seus direitos no arranjo político social da sua região, e consolidar uma presença como os Xacriabá fazem no norte de Minas Gerais. Ou como os Maxacali fazem, ou mesmo como os Krenak na beira daquele rio em coma, o Rio Doce, com as mineradoras em seu compromisso solidário de acabar com essas montanhas.

“Cada igarapé tem um nome, e esse nome é invocação de outros seres, dos seus parentescos, das narrativas mais antigas que chegam em nossa memória. Isso que dá sentido para chamar a terra de mãe, porque ela não é uma coisa; não é uma gleba, um lote, um terreno, uma fazenda.”

Como dizia Carlos Drummond de Andrade, seguem céleres em sua determinação de empacotar essas montanhas, enfiá-las num navio e mandarem para a puta que pariu. Essa determinação de assolar a paisagem e acabar com quem tem na paisagem um espelho para si, que canta para a montanha e o rio, que dança para a montanha, que dá nome aos rios.

Cada igarapé tem um nome, e esse nome é invocação de outros seres, dos seus parentescos, das narrativas mais antigas que chegam em nossa memória. Isso que dá sentido para chamar a terra de mãe, porque ela não é uma coisa; não é uma gleba, um lote, um terreno, uma fazenda.

Por mais que eles tentem transformar em estoque fundiário, tirar o sentido de vida que a terra tem, essa gente que nasceu na terra, e tem a memória da terra não aceita isso. Esperneia, morre, continua reaparecendo em outros termos, mas continua lutando e berrando, dizendo que aquilo é a mãe terra.

O movimento indígena nasceu com essa consciência de filhos da mãe terra, e com uma capacidade de crítica política ativa, como essa do Marçal de dizer que o Brasil não foi descoberto, mas invadido. Então essas bases conceituais que sustentaram o pensamento da minha geração para pensar o movimento indígena são profundamente formadas por nossa herança cultural; elas não foram uma dica de fora, elas foram uma implicação profunda desses indivíduos com seus coletivos. Talvez por isso que esse movimento, por mais que seja diluído em todos os debates a cada época, seja na crise política ou quando o Brasil está surfando na grana, aparece enfrentando Belo Monte, contestando as barragens e hidrelétricas, os portos, essa infraestrutura do Estado, porque o Estado é o invasor continuado daquele processo que o Marçal de Souza denunciou lá na década de 70. Quer dizer, não tem descoberta, é uma invasão continuada, e o Estado é o principal mobilizador dessa invasão – todo o aparelho do Estado com suas agências. Os irmãos Villas-Bôas que você lembrou, representam, do ponto de vista da história dessa crescente onda que veio dar no movimento indígena, o conservadorismo indigenista, que achava que tinha que ter, assim como tem reservas biológicas, uma para guardar essas heranças culturais daquilo que deu estrato fajuta de índios, negros e brancos como base da formação da civilização tropical brasileira.

[1] Herbert José de Sousa, sociólogo e ativista precursor dos direitos humanos no Brasil.
[2] Instituto Nacional de Previdência Social

http://imja.org.br/revista/materia/a-potencia-do-sujeito-coletivo-parte-i/#_ftn0

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