segunda-feira, 18 de junho de 2018

A TUTELA JURÍDICA DOS ANIMAIS NO DIREITO CIVIL CONTEMPORÂNEO. PARTE 2. Por Fernando Speck de Souza e Rafael Speck de Souza


*Na semana passada, tratamos da evolução histórica da dignidade animal na Idade Antiga e na Idade Medieval. Hoje, concluiremos a parte histórica do estudo com o pensamento moderno.

2.3. Pensamento moderno
O fim da Idade Média, em verdade, representou um retorno ao humanismo grego. Com a modernidade renasce o antropocentrismo, acompanhado da laicização das mentalidades e o desencantamento do mundo; o homem volta a ocupar o centro axiológico do universo moral1.

Ao que tudo indicava, o período da Renascença e o surgimento do pensamento humanista em oposição à escolástica abalariam a visão medieval do universo e derrubariam as ideias anteriores sobre o status dos seres humanos em relação aos outros animais. Todavia, o humanismo renascentista era, afinal, humanismo; e o significado desse termo nada tinha com humanitarismo — a tendência de se agir de modo humanitário. A principal característica do humanismo renascentista foi sua insistência no valor e na dignidade dos seres humanos, bem como no lugar central ocupado por eles no universo (antropocentrismo). Os humanistas da Renascença enfatizaram a singularidade dos humanos, seu livre-arbítrio, seu potencial e sua dignidade, e contrastaram tudo isso com a natureza dos animais inferiores2.

No contexto antropocêntrico renascentista e sem renunciar à inspiração dos principais teóricos da Igreja Católica, Giovanni Pico Della Mirandola (1463–1494), no seu opúsculo sobre a dignidade do homem, ao justificar a ideia da grandeza e superioridade humana em relação aos demais seres, afirmou que, sendo criatura de Deus, ao homem foi outorgada uma natureza indefinida (diversamente dos demais seres, de natureza bem definida e plenamente regulada pelas leis divinas), para que fosse seu próprio árbitro, soberano e artífice, dotado da capacidade de ser e obter aquilo que ele próprio quer e deseja3.

A mais bizarra e dolorosa consequência final — para os animais — das doutrinas cristãs surgiu na primeira metade do século XVII, com o filósofo e matemático francês René Descartes (1596–1650). Em sua filosofia, a doutrina cristã de que os animais não possuem alma imortal adquire a extraordinária consequência de levar à negação de que eles tenham consciência. Segundo Descartes, os animais são meras máquinas, autômatos. Não sentem prazer nem dor. Embora possam guinchar quando cortados por uma faca, ou contorcer-se no esforço de escapar do contato com um ferro quente, isso não significava, para Descartes, que sentissem dor nessas situações. Os animais seriam, portanto, governados pelos mesmos princípios de um relógio4.

Nesse sentido, extrai-se do Discurso do Método, de Descartes:

[...] O que não parecerá de modo algum estranho aos que, sabendo quantos “autômatos”, ou máquinas moventes, a indústria dos homens pode criar, utilizando poucas peças em comparação com a grande quantidade de ossos, músculos, nervos, artérias, veias e todas as outras partes existentes no corpo de cada animal, hão de considerar esse corpo como uma máquina, a qual, tendo sido feita pelas mãos de Deus, é incomparavelmente melhor ordenada do que nenhuma das que podem ser inventadas pelos homens5.

Contemporâneo de Descartes, o jurista e filósofo inglês Thomas Hobbes (1588–1679) sustentava que o homem é o lobo do homem e que somente o Estado e sua ordem é que poderiam pôr fim ao estado natural de barbárie, tornando o ser humano digno de proteção e diferente de todos os outros animais6.

Para Hobbes, a dignidade, numa acepção que remonta em parte ao período clássico, no sentido da dignidade como representando o valor do indivíduo no contexto social, está essencialmente vinculada ao prestígio pessoal e dos cargos exercidos pelos indivíduos, cuidando-se, portanto, de um valor atribuído a alguém, pelo Estado e pelos demais membros da comunidade7.

A concepção secularizada de dignidade humana, tal qual se conhece hoje, inclusive no meio jurídico, fundamentar-se-á nas ideias do filósofo prussiano Immanuel Kant (1724–1804), trazidas em sua obra Fundamentação da Metafísica dos Costumes, datada de 17858.

Immanuel Kant acreditava que os seres humanos ocupam um lugar especial na criação. Desde os tempos remotos, os seres humanos se consideraram essencialmente diferentes das outras criaturas — e não apenas diferentes, mas melhores. Sob esse ponto de vista, os seres humanos têm um valor moral intrínseco ou dignidade que os torna valiosos acima de todo preço. Os outros animais, assim pensava Kant, só têm valor na medida em que servem aos propósitos humanos. Kant condenou o abuso para com os animais; não porque seriam feridos, mas porque deveríamos nos preocupar conosco: aquele que é cruel para com os animais, também se torna insensível no seu trato com os homens9.

Peter Singer lembra que, em suas aulas sobre ética, Kant dizia aos alunos: “Não temos deveres diretos com relação aos animais. Eles não possuem autoconsciência e existem meramente como meios para um fim. Esse fim é o homem”10.

Para Antonio Junqueira de Azevedo, foi justamente esse o erro de Kant: “O de considerar que toda a vida não-humana, a vida em geral, e, em especial, a vida dos animais, era desprezível, sem dignidade, coisa!”11.

Em 1789, mesmo ano em que Kant proferiu as referidas aulas sobre ética, outro filósofo — Jeremy Bentham — conclui seu livro Uma Introdução aos Princípios da Moral e da Legislação, em que dá uma resposta definitiva a Kant: “A questão não é Eles são capazes de raciocinar?, nem São capazes de falar?, mas sim: Eles são capazes de sofrer?”.

Desse modo, será ainda no século XVIII, com os filósofos britânicos David Hume (1711–1776) e Jeremy Bentham (1748–1832), que um corte decisivo nessa influência da racionalidade será feito em prol dos animais. Hume e Bentham deslocarão a moralidade de sua base, calcada na racionalidade, para a do sentimento. Segundo Hume, os animais poderiam estar excluídos da justiça, que seria uma questão de conveniência, mas considerações humanitárias nos obrigariam a tratá-los com brandura12.

Paralelamente às ideias majoritárias que atrelam o conceito de dignidade à racionalidade e ao ser humano, importa reconhecer, nesse mesmo período, a construção de teorias que buscam valorizar a dignidade animal.

Em 1776, em Londres, surge a obra A Dissertation on the Duty of Mercy and the Sinn of Cruelty Against Brute Animals, de Humphry Primatt13 (1735–1776/7), possivelmente a primeira obra a defender a igualdade moral entre humanos e não humanos e a combater o que considerou o preconceito em favor de si mesmo contra seres vivos vulneráveis de outras espécies.

O livro de Primatt iria inspirar o filósofo utilitarista Jeremy Bentham (1748–1832), que elabora uma célebre citação amplamente utilizada pelos defensores animais. Tal citação encontra-se em nota de rodapé de sua obra Uma Introdução aos Princípios Morais e da Legislação, de 1789:

Talvez chegue o dia em que o restante da criação animal venha a adquirir os direitos que jamais poderiam ter-lhe sido negados, a não ser pela mão da tirania. Os franceses já descobriram que o escuro da pele não é razão para que um ser humano seja irremediavelmente abandonado aos caprichos de um torturador. É possível que um dia se reconheça que o número de pernas, a vilosidade da pele ou a terminação do osso sacro são razões igualmente insuficientes para abandonar um ser senciente ao mesmo destino. O que mais deveria traçar a linha intransponível? A faculdade da razão, ou, talvez, a capacidade da linguagem? Mas um cavalo ou um cão adultos são incomparavelmente mais racionais e comunicativos do que um bebê de um dia, de uma semana, ou até mesmo de um mês. Supondo, porém, que as coisas não fossem assim, que importância teria tal fato? O problema não consiste em saber se os animais podem raciocinar; tampouco interessa se falam ou não; o verdadeiro problema é este: podem eles sofrer?14.

A revolução darwiniana, com a publicação da obra A Origem das Espécies, em 1871, provou que as diferenças entre humanos e animais são apenas de grau (de um continuum), e não de categoria (natureza), e que a espécie humana, portanto, não ocupa nenhum local privilegiado na ordem do cosmos. Há uma continuidade entre os humanos e as demais espécies; todavia, esses últimos continuam excluídos da esfera de consideração jurídica ou moral. Estar atrás ou à frente no tempo evolucionário não concede qualquer valor moral específico às espécies, uma vez que não se pode conceder valor moral a fatos científicos que, no máximo, podem ser utilizados como premissas fáticas para argumentos éticos15.

Vale destacar que, em 1892, surge a primeira obra jurídica sobre direitos animais, assim intitulada Animal Rights: considered in relation to social progress, de autoria do indiano radicado na Inglaterra Henry Stephens Salt (1851–1939). Grande ativista pelos direitos humanos e animais, o professor britânico Henry Salt foi o primeiro escritor a defender explicitamente que os animais possuem direitos, não se tratando, meramente, de destinar a eles um tratamento melhor. Salt exercera grande influência sobre Mahatma Gandhi (1869–1948), notadamente em seus postulados sobre defesa animal, desobediência civil e não violência.

Em sua obra, Salt objetiva estabelecer o princípio fundamental dos direitos animais: os animais têm direitos? Certamente, se os seres humanos têm direitos16. Para Salt, se existem “direitos”, por um critério de coerência, estes não poderiam ser concedidos aos humanos e negados aos animais, pois o mesmo senso de justiça e compaixão aplicar-se-ia a ambos os casos. Dor é dor, já dissera Humphry Primatt, seja ela infligida a humanos ou animais17.

Em 1973, o psicólogo britânico Richard D. Ryder (1940–) apresenta o neologismo intitulado especismo, para definir a discriminação habitual que é praticada pelo ser humano contra as outras espécies.

Por sua vez, o filósofo utilitarista Peter Singer (1946–) tomará emprestado o conceito de especismo para desenvolver os argumentos de sua célebre obra Libertação Animal, publicada originalmente em 1973, e expandida em 1975. Tal livro é considerado a pedra de toque que dera origem a um verdadeiro movimento pelos direitos animais por todo o mundo. A obra de Singer, publicada quando ele contava com 27 anos de idade, inicia-se como manifesto pelos direitos animais; e seu argumento é: se os animais são capazes de sentir prazer e dor, assim como os seres humanos, eles possuem interesses que merecem consideração.

Em 1983, o filósofo deontologista Tom Regan (1938–2017) publica o seu livro The case for animal rights, defendendo a ética animal a partir de uma perspectiva da categoria de direitos. Em outras palavras, em vez de argumentar que devemos parar de tratar os animais desse ou daquele modo, por eles sentirem dor e sofrerem, Regan sustenta que todo animal é considerado sujeito-de-uma-vida e possui valor inerente (valor por si mesmo).

***

Na próxima semana, concluiremos nosso estudo abordando as recentes modificações do status jurídico dos animais na legislação estrangeira. Ainda, abordaremos algumas propostas legislativas em curso no Brasil, que visam alterar a categoria jurídica dos animais do atual estado de coisas móveis.

*Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT e UFBA).

1 GORDILHO, Heron José de Santana. Abolicionismo animal cit., p. 23.
2 SINGER, Peter. Libertação animal cit., p. 288-289.
3 SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais cit., p. 34.
4 SINGER, Peter. Libertação animal cit., p. 290-291.
5 DESCARTES, Rene. Discurso do método. Porto Alegre: L&PM, 2006 [1637]. p. 95.
6 MIGLIORE, Alfredo Domingues Barbosa. Personalidade jurídica dos grandes primatas cit., p. 82.
7 HOBBES, Thomas. Leviatã: ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. São Paulo: Martin Claret, 2007 [1651]. p. 71-72.
8 KANT, Immanuel. Crítica da razão pura e outros textos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1974. p. 234.
9 RACHELS, James; RACHELS, Stuart. Os elementos da filosofia moral. Tradução e revisão técnica Delamar José Volpato Dutra. 7. ed. Porto Alegre: AMGH, 2013. p. 146.
10 SINGER, Peter. Libertação animal cit., p. 295-297.
11 AZEVEDO, Antonio Junqueira. Crítica ao personalismo ético da Constituição da República e do Código Civil. Em favor de uma ética biocêntrica. Revista da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, v. 103, p. 115-126, jan.-dez. 2008, p. 116.
12 PAIXÃO, Rita Leal. SCHRAMM, Fermin Roland. Experimentação animal cit., p. 71-72.
13 Pelo que se pode saber, Humphry Primatt deixou escrito somente este livro, The Duty of Mercy, uma pérola em defesa dos animais (FELIPE, Sônia T. Fundamentação ética dos direitos animais. O legado de Humphry Primatt. Revista Brasileira de Direito Animal, v. 1, n. 1, 2006, p. 208. Disponível em: . Acesso em: 15 maio 2016).
14 BENTHAM, Jeremy. Uma introdução aos princípios da moral e da legislação. São Paulo: Abril Cultural, 1974 [1789]. p. 69.
15 GORDILHO, Heron José de Santana. Direito ambiental pós-moderno. Curitiba: Juruá, 2011. p. 129-131.
16 SALT, Henry S. Los derechos de los animales. Madrid: Los Libros de la Catarata, 1999 [1892]. p. 27-29, tradução nossa.
17 SALT, Henry S. Los derechos de los animales cit., p. 44, tradução nossa.

Fernando Speck de Souza é juiz de Direito em Santa Catarina, mestrando em Direito Civil pela Faculdade de Direito da USP e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo.

Rafael Speck de Souza é analista jurídico da Justiça Federal de Santa Catarina, mestre em Direito, Estado e Sociedade pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e membro do Observatório de Justiça Ecológica/UFSC.

Revista Consultor Jurídico,








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