A
Constituição garante a presunção da inocência: “Ninguém será considerado
culpado até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória”. A clareza
não admite interpretações, como disse o ministro Celso de Mello. Desde 2009,
era pacífico no Supremo Tribunal Federal que a execução da pena só se daria
quando esgotados todos os recursos.
Em
fevereiro de 2016, sob efeito da estrepitosa operação "lava jato", o
STF, julgando um Habeas Corpus, desafiou a Constituição, admitindo a execução
antecipada da pena. Divergiram a ministra Rosa Weber e os ministros Marco
Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Em novembro de 2016, em outro
julgamento, a questão foi novamente submetida à corte, desta vez restando
vencidos, além dos ministros acima, o ministro Dias Toffoli.
No
mesmo ano, o Conselho Federal da OAB, prevendo os nefastos efeitos daquele
retrocesso sobre o caótico sistema penitenciário, ingressou com ação para
declarar a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, que
trata do princípio do estado de inocência no âmbito infraconstitucional. Há
dois anos essa ação aguarda julgamento.
Tivesse
sido julgada antes do Habeas Corpus do ex-presidente Lula, certamente teríamos
a oportunidade de um debate mais sensato, com a prevalência do respeito às leis
sobre a insana polarização política e a histeria social que vem levando as
pessoas, por falta de informação, a depositar nas prisões a solução para os
males da pátria.
A
preocupação de ministros em atender a anseios sociais não facilita a
compreensão do problema. Quando juízes, cuja função é a de garantir a aplicação
das leis, defendem que a presunção da inocência não se adéqua às atuais
“expectativas sociais”, nós cidadãos deveríamos vaiar, não aplaudir. Trata-se
de discurso de perfil nazifascista, ideologia que definia crime como toda
conduta que ofendesse “o são sentimento do povo”. Que perigo!
Garantir
a presunção da inocência não implicará o fim de operações policiais nem a
soltura de minguados condenados estampados em publicações sensacionalistas. O
respeito a tal princípio também não eternizará ações penais, com risco de
prescrição e consequente impunidade, valendo lembrar que prescrição não existe
para favorecer “bandidos”, mas para garantir o nosso direito de sermos
processados e julgados em tempo razoável.
Quem
atua na Justiça criminal bem sabe que a perpetuação de processos e o excesso de
recursos nem sempre decorrem do exercício da defesa, mas da ineficiência do
Judiciário e da ausência de consciência de muitos de seus membros sobre a nobre
função de garantir o devido processo legal, essa espécie tão mal compreendida,
conquanto indispensável à manutenção de um Estado que se pretende democrático.
*Artigo originalmente
publicado na edição desta segunda-feira (21/5) do jornal O Globo, com o título
"Supremo partido"
Letícia Lins e
Silva é advogada criminal e membro do Instituto dos Advogados Brasileiros
(IAB).
Revista Consultor
Jurídico
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