domingo, 27 de maio de 2018

ENSINO JURÍDICO DEVE ASSUMIR COMPROMISSO COM A DEFESA DO ESTADO DE DIREITO. Por Danilo Pereira Lima e Isadora Neves

Muito se fala sobre a crise do ensino jurídico no Brasil. Essa crítica se faz por uma densa e complexa rede de fatores que levam aos principais problemas enfrentados pela Teoria do Direito na atualidade: o perigo das recepções equivocadas, a confusão criada a respeito da definição e aplicação dos princípios e também o problema do enfrentamento à discricionariedade e ao ativismo judicial. Algo que precisa ser compreendido a partir de um olhar mais atento sobre o déficit de cultura democrática dos cursos jurídicos, já que essa situação se impôs por meio de uma longa tradição autoritária que sempre procura organizar o sistema político do país na base do exercício arbitrário e personalista do poder.

E tudo isso vem de longe. Os primeiros bacharéis em Direito, formados pelas faculdades de São Paulo e Olinda, buscavam modernização e civilização completamente desligados dos princípios republicanos de democratização dos direitos. Além disso, em termos acadêmicos, predominava nesses ambientes a baixa produção de conhecimento e a indisciplina entre professores e estudantes. Havia pouquíssimos jurisconsultos entre eles, e suas atividades estavam voltadas principalmente para o periodismo e a militância político-partidária, já que o bacharelismo deveria servir fundamentalmente para a formação dos filhos das elites econômicas que tomariam assento nas estruturas burocráticas do Estado. De fato, o sentido desse modelo de ensino jurídico era pensar o poder a partir de uma perspectiva pouco democrática.

Com o movimento militar que derrubou o Império e proclamou a República (1889), o ensino jurídico continuou atendendo às mesmas expectativas de preparação dos filhos das elites para os principais cargos políticos do Estado. Por outro lado, o processo de modernização do ensino superior, iniciado na década de 1930, em plena ditadura Vargas — quando começaram a ser estabelecidas as primeiras universidades pelo país —, também não foi capaz de apresentar uma perspectiva mais democrática na formação dos juristas. Na verdade, a criação das primeiras universidades estava atrelada a um projeto econômico de modernização autoritária. Diante de um modelo de desenvolvimento social e econômico muitas vezes desligado de qualquer preocupação democrática, o ensino jurídico se colocou à disposição do Estado principalmente para a constituição de seu corpo tecnocrático, assumindo uma preocupação muito maior com a construção das estruturas jurídicas do poder do que com o seu controle.

A rápida proliferação de faculdades de Direito durante a ditadura militar também ocorreu como consequência de um modelo autoritário de modernização do Estado, no sentido de formar os novos quadros técnicos e gerenciais das estruturas de poder estabelecidas após o golpe[1]. Esse modelo de ensino jurídico funcionou muito mais como um grande curso profissionalizante — de tecnocratas formados para servir ao Estado —, do que para a propagação de uma cultura crítica e democrática baseada na velha tradição do constitucionalismo, pela qual a defesa das liberdades e a limitação do poder é condição fundamental para a construção do Estado de Direito. Em vista disso, o bacharel em Direito terminava a graduação numa instituição que tinha como finalidade preparar quadros para melhor servir ao poder, independentemente de como ele funcionasse em relação à sociedade. Era um processo de naturalização do autoritarismo, pelo qual o bacharel acabava absorvido, em grande parte dos casos, pela lógica da banalidade do mal[2].

Infelizmente, o processo de redemocratização, iniciado na década de 1980, não foi suficiente para alterar a situação de grande parte dos cursos jurídicos. Em continuidade à tendência da época da ditadura militar, de preparar pessoas principalmente para ingressar nas estruturas burocráticas do Estado, os cursos jurídicos continuam a propagar um conhecimento baseado muito mais na reprodução das posições dos tribunais do que numa apreciação crítica sobre o que os juízes andam fazendo com o Direito. Uma situação que Lenio Streck vem apontando há muito tempo no trabalho da doutrina, ao destacar que os nossos teóricos do Direito estão mais preocupados em reproduzir as posições dos tribunais do que em fazer uma análise epistemológica séria de todas elas. Algo que justifica sua constante reivindicação de que a doutrina precisa deixar de ser doutrinada pelos tribunais[3].

O silêncio eloquente de grande parte da comunidade jurídica, diante de decisões judiciais que demonstram pouco apreço pelos direitos fundamentais, tem relação com essa condição autoritária do ensino jurídico. Grande parte dos estudantes e professores do Direito não demonstrou qualquer preocupação diante do ataque do STF contra a presunção de inocência. As poucas vozes que ousaram se manifestar contra essa arbitrariedade são definidas por aí como juristas mais garantistas. É como se a defesa de direitos fundamentais — assegurados pela Constituição de 1988 — fosse uma simples questão de escolha entre ser garantista ou ser punitivista, e não uma condição de compromisso com a defesa do Estado de Direito. Uma espécie de relativismo constitucional que funcionou muito bem durante a ditadura militar, época em que o professor Manuel Gonçalves Ferreira Filho ensinava aos seus leitores que “os direitos fundamentais, [...], impõem sérias e rigorosas limitações ao poder estatal. Essas limitações, na verdade, só podem ser respeitadas em período de normalidade, pois nos momentos de crise, embaraçariam de tal modo a ação do governo que este seria presa fácil para os inimigos da ordem”[4]. Se a posição do jurista Ferreira Filho foi muito útil à manutenção do regime de exceção, hoje é preciso destacar que toda forma de relativismo em matéria de direitos fundamentais serve apenas para enfraquecer o Estado de Direito.

Diante dessa situação, o ensino jurídico precisa abandonar a sua condição atual de mero reprodutor do poder e assumir um maior compromisso com a propagação de uma cultura democrática baseada na defesa dos direitos fundamentais. Ao contrário do que ocorre desde a fundação dos primeiros cursos jurídicos no país, com faculdades interessadas primordialmente em formar quadros para o exercício do poder, o atual momento exige que o ensino jurídico apresente um maior compromisso com as conquistas democráticas. As faculdades de Direito não podem continuar permitindo que a Constituição funcione entre alunos e professores como um latifúndio improdutivo[5]. Já passou da hora de o ensino jurídico deixar de servir ao uso arbitrário do poder para atuar em defesa da democracia.

[1] CAMPILONGO, Celso Fernandes; FARIA; José Eduardo. A sociologia jurídica no Brasil. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1991, pp. 9-11.
[2] Essa expressão se remete à obra: ARENDT, Hannah. Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
[3] STRECK, Lenio. Hermenêutica Jurídica e(m) crise: uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 11ª ed., Porto Alegre: Livraria do Advogado, p. 99.
[4] FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Saraiva, 1978, p. 301.
[5] STRECK, Lenio Luis. E que o Texto Constitucional não se transforme em um latifúndio improdutivo: uma crítica à ineficácia do Direito. In: SARLET, Ingo Wolfgang (org.). O Direito Público em Tempos de Crise: estudos em homenagem a Ruy Ruben Ruschel. Livraria do Advogado: Porto Alegre, 1999.

Danilo Pereira Lima é professor de Ciência Política e Teoria Geral do Estado, doutor em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Isadora Neves é doutoranda em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

Revista Consultor Jurídico


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