Os
conflitos que atravessam, hoje, o nosso Sistema de Justiça, não são apenas
incidentes na ordem jurídica. Nem apenas um ponto fora da sua curva política. Opino
que sejam originários, na verdade, de um novo modo de produzir o Direito como
“exceção”. De uma parte, porque esta dispensa a norma escrita, que a instala
-seja qual for a sua origem- e de outra, porque dispensa a força das armas para
inaugurá-la. Este novo modo de instalação da “exceção”, porém, promove a
perversão dos princípios constitucionais de tal forma que cria um Sistema
Jurídico paralelo, cuja origem é um falso corpo “Constituinte”: a “opinião
pública”, produzida e induzida pelos meios de comunicação hegemônicos.
A
dissolução forçada das formas democráticas de exercício dos governos na
república moderna, sempre opuseram -para instalar a exceção- normas contra
normas, de tal forma que rapidamente se contrastam “democracia x ditadura”, de
maneira frontal. A força que gera as atuais dissoluções da ordem pela exceção,
todavia, estão vindo de jogos manipulatórios (alheios e paralelos à força
normativa do Estado) que capturam -por inteiro- a ordem vigente. Por esta forma
a ruptura passa a ser um acúmulo, não um corte institucional num tempo
concentrado.
O
“Decreto para a Proteção do Povo e do Estado”, promulgado imediatamente após o
incêndio do Reichstag (fev.1933) que declarou o Estado de Emergência na
Alemanha, foi marco de referência para destruição do seu Estado Constitucional.
Foi quando as metástases do nazismo se disseminaram, não só no corpo da
sociedade civil, mas igualmente nas entranhas da vida moral e institucional do
Estado. O sentido estratégico deste Decreto já estava contido nas clássicas
formulações de Carl Schmitt, teórico nazista da “exceção”, que se rejubilava –
desde 1922 – afirmando que “uma vez declarado o estado de emergência, é claro
que a autoridade constituída do Estado segue existindo, enquanto que o Direito
retrocede.”
Tal
decreto era destinado a promover a “caça aos comunistas” e socialdemocratas de
esquerda, que resistiam bravamente à ascensão de Hitler. Rapidamente, todavia,
foi apanhado pelos funcionários de Polícia e do Sistema de Justiça, como uma
“luz verde”, para o cometimento de todo o tipo de violência contra católicos,
protestantes, intelectuais da academia, juristas, democratas em geral –
quaisquer pessoas do povo – que se opusessem à sua fúria totalitária. Aquele
marco formal da “exceção” na Alemanha à época, hoje é sucedido pela construção
de uma jurisdição sem forma jurídica, pela norma criada em “movimento”,
puramente partir da política e de forças de coerção externas à Constituição,
sem norma escrita. Moro comanda o Direito.
Neste
processo, o momento coercitivo do Estado é admitido pelos Tribunais como
legítimo, mesmo fora da regra escrita, ao sabor do projeto político hegemônico:
pela força do controle da opinião, não pelo consenso constituinte formal. É uma
dogmática que vem dos impulsos abstratos da política (não do concretamente
estipulado na norma escrita) que tem como fonte da sua publicidade – exigível
para qualquer norma válida – a própria produção da informação manipulada. Esta
informação é a notícia de uma nova regra, já no seu processo de aplicação. Ela
diria assim, se fosse escrita: “o combate à corrupção não tem regras”.
No
contexto do decreto referido, infectado ideologicamente contra os judeus e
comunistas, predominantemente, a chaga do ódio racial e de classe se ampliava
rapidamente a partir da regra, que abria a “exceção” de forma clara, a qual o
Estado dava vazão e força. Hoje, a coerção política faz a regra fora do
Parlamento e ela é cada vez menos formal e mais imprevista.
A
Corte da Província de Hagen – na Alemanha da “exceção”, apreciando a extensão
daquele Decreto do Reich – numa decisão corajosa para o ambiente da época-
absolveu um grupo de católicos que promoviam atividades públicas e coletivas,
desportivas e de lazer, cuja decisão -amparada na convicção dos membros da
Corte- não via no movimento, ao contrário do Governador da Região, nenhum
atentado promovido pelos jovens católicos contra o Estado de Emergência
declarado.
A
Corte Suprema Provincial, todavia, anulou a decisão da Corte originária, com o
argumento de que atividades daquela natureza “representavam uma promoção
potencial dos objetivos comunistas e de apoio as suas metas”, podendo -desta
forma- tornar-se um estímulo aos comunistas, aos simpatizantes do comunismo ou
às pessoas que carecem de filiação política”, forjando a aparência que “o
estado nacionalista não teria o apoio do povo.” (Sentença de 12.07,1935, citada
em “Los Juristas del Horror”, Ingo Muller, Libreria Jurídica Alvaro Nora,
pg.73). A desculpa hoje para descartar o Direito é a corrupção.
Esta
decisão, apreciadora da regra escrita, levava a “exceção” ao seu momento mais
completo e fazia “retroceder” o Direito na totalidade do Estado e na unificação
da sociedade, através de uma disciplina coercitiva. E o fazia, tanto do ponto
vista formal como do material, porque admitia a anulação da Constituição, fazia
a regra exceder as suas próprias finalidades e assim instaurar o fim extremo da
presunção da inocência e da igualdade perante a lei.
O
ato primário da “exceção” atual, no Brasil, não foi uma norma formal, um Decreto,
uma Lei ou mesmo uma Portaria, mas foi a bem sucedida decisão do Juiz Moro, de
instituir uma jurisdição nacional de Primeira Instância, que sugeriria uma
conexão, formal e material (entre fatos diversos em regiões e cidades diversas)
que pudessem a sugerir uma grande rede de corrupção, que teria -no seu centro-
o Presidente Lula. Como isso foi aceito, num certo momento, pela maioria da
sociedade e como isso foi admitido pelos Tribunais Superiores, quase sem
divergências, é um enigma difícil de resolver. Não foi apenas o medo da mídia
oligopólica, o que é humano, embora condenável como covardia.
A
resposta pode ser tentada, depois desta decisão recente do Supremo, que
tornaria nula -em qualquer país constitucionalizado e decente- a condenação que
levou o Presidente Lula ao cárcere. Trata-se de verificar a natureza das
mudanças que a sociedade classes sofreu, nas últimas décadas, que certamente
mudaram as suas formas de produzir o Direito, no momento em que a democracia
política e o respeito à Constituição democrática passou a ser problemático para
a acumulação capitalista.
A
concepção de Baumann sobre “liquidez” e o princípio da descartabilidade da
sociedade atual, no qual as pessoas formam a sua consciência na mediação pelas
redes, mais o fetichismo – criado pela identidade dos seres humanos com a sua
capacidade de consumir, não de produzir- talvez explique algo: uma
subjetividade assim moldada, sem o contraste democrático tradicional entre
classes orgânicas, como no capitalismo clássico, não tem sujeitos visíveis, que
sejam -ao mesmo tempo- opostos e contratantes. A opinião passa a se formar,
então, pelas relações difusas e horizontais da aparência de igualdade no
mercado, não pelos conflitos verticalizados entre as classes, no espaço público
democrático. Aí a “exceção” se reproduz, como direito degradado, para dar
aparência de ordem, na anarquia do mercado, bem como instituir a hierarquia
verdadeira, na desordem entre as classes.
Por
este motivo, o “modo de vida” fluído e sem rumos políticos-morais sólidos -da
sociedade em redes de comunicação e dominação- é um espaço fácil para inocular
o ódio, ou mesmo uma indiferença “defensiva” contra o outro. Um sistema
paralelo -uma constituição real nova, diria Lassale- estrutura-se ao lado da
constituição formal e a subsume. Formata assim o “novo” como barbárie, a
estabilidade como resignação e a morte da democracia como melancolia social.
* Tarso Genro foi Governador do Estado do Rio Grande do Sul,
prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça, Ministro da Educação e Ministro
das Relações Institucionais do Brasil.
https://www.sul21.com.br/colunas/tarso-genro/2018/04/o-reichstag-processual-de-moro-como-inicio-da-excecao/
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