Tenho
escrito muito sobre as esquerdas, o seu passado e o seu futuro.
Tenho
preferência pelas questões de fundo, coloco-me sempre numa perspectiva de médio
e longo prazo e evito entrar nas conjunturas do momento. Neste texto sigo uma
perspectiva diferente: centro-me na análise da conjuntura de alguns países, e é
a partir dela que coloco questões de fundo e me movo para escalas temporais de
médio e longo prazo.
Isto
significa que muito do que está escrito neste texto não terá qualquer
atualidade dentro de meses ou mesmo semanas. A utilidade dele pode estar
precisamente nisso, no facto de proporcionar uma análise retrospectiva da
atualidade política e do modo como ela nos confronta quando não sabemos como se
vai desenrolar. E também pode contribuir para ilustrar a humildade com que as
análises devem ser feitas e a distância crítica com que devem ser recebidas.
Talvez este texto possa ser lido como uma análise não conjuntural da
conjuntura.
À
partida devo tornar claro o que entendo por esquerda. Esquerda é o conjunto de
teorias e práticas transformadoras que, ao longo dos últimos cento e cinquenta
anos, resistiram à expansão do capitalismo e ao tipo de relações econômicas, sociais,
políticas e culturais que ele gera, e que assim procederam na crença da
possibilidade de um futuro pós-capitalista, de uma sociedade alternativa, mais
justa, porque orientada para a satisfação das necessidades reais das
populações, e mais livre, porque centrada na realização das condições do
efetivo exercício da liberdade.
Num
mundo cada vez mais interdependente tenho vindo a insistir na necessidade de
aprendizagens globais. Nenhum país, cultura ou continente pode hoje arrogar-se
o privilégio de ter encontrado a melhor solução para os problemas com que o
mundo se confronta e muito menos o direito de a impor a outros países, culturas
ou continentes. A alternativa está nas aprendizagens globais sem perder de
vista os contextos e as necessidades específicas de cada um. Tenho vindo a
defender as epistemologias do sul como uma das vias para promover tais
aprendizagens e de o fazer a partir das experiências dos grupos sociais que
sofrem nos diferentes países a exclusão e a discriminação causadas pelo capitalismo,
colonialismo e patriarcado. Ora as necessidades e aspirações de tais grupos
sociais devem ser a referência privilegiada das forças de esquerda em todo o
mundo, sendo as aprendizagens globais um instrumento precioso nesse sentido.
Acontece que as forças de esquerda têm uma enorme dificuldade em conhecer as
experiências de outras forças de esquerda noutros países e em se disporem a
aprender com elas. Nem estão interessadas em conhecer profundamente as
realidades políticas doutros países nem tão pouco dão a atenção devida ao
contexto internacional e às forças econômicas e políticas que o dominam. O
desaparecimento analítico das múltiplas faces do imperialismo são prova disso.
Além disso, tendem a ser pouco sensíveis à diversidade cultural e política do mundo.
Que
as forças de esquerda do Norte global (Europa e América do Norte) sejam
eurocêntricas não é novidade para ninguém. O que talvez seja menos conhecido é
que a maior parte das forças de esquerda do Sul Global são igualmente
eurocêntricas nas referências culturais que subjazem às suas análises. Basta
ter em conta as atitudes racistas de muitas forças de esquerda da América
Latina em relação aos povos indígenas e afrodescendentes.
Com
o seu objectivo muito limitado de analisar a conjuntura das forças de esquerda
em alguns países este texto pretende aumentar o inter-conhecimento entre elas e
sugerir possibilidades de se articularem tanto nacional como
internacionalmente.
O
novo interregno
Estamos
num interregno. O mundo que o neoliberalismo criou em 1989 com a queda do Muro
de Berlim terminou com a primeira fase da crise financeira (2008-2011) e ainda
não se definiu o novo mundo que se lhe vai seguir. O mundo pós-1989 teve duas
agendas que tiveram um impacto decisivo nas políticas de esquerda um pouco em
todo o mundo. A agenda explícita foi o fim definitivo do socialismo enquanto
sistema social, económico e político liderado pelo Estado. A agenda implícita
consistiu no fim de qualquer sistema social, económico e político liderado pelo
Estado. Esta agenda implícita foi muito mais importante que a explícita, porque
o socialismo de Estado estava já agonizante e, desde 1978, procurava
reconstruir-se na China enquanto capitalismo de Estado no seguimento das
reformas promovidas por Deng Xiaoping. O efeito mais directo do fim do
socialismo de tipo soviético na esquerda foi o ter desarmado momentaneamente os
partidos comunistas, alguns deles há muito já distanciados da experiência
soviética. A agenda implícita foi a que verdadeiramente contou; por isso, teve
que ocorrer de maneira silenciosa e insidiosa, sem queda de muros.
Na
fase que até então tinha caracterizado o capitalismo dominante, a alternativa
social ao socialismo de tipo soviético eram os direitos económicos e sociais
universais de que beneficiavam sobretudo aqueles que, não tendo privilégios, só
tinham o direito e os direitos para se defenderem do despotismo económico e
político para que tendia o capitalismo sujeito exclusivamente à logica do
mercado. A forma mais avançada desta alternativa tinha sido a social-democracia
europeia do pós-guerra, que aliás no seu começo, no início do século XX, também
se desdobrara numa agenda explícita (socialismo democrático) e numa agenda
implícita (capitalismo com alguma compatibilidade com a democracia e a inclusão
social mínima que ela pressupunha). Depois de 1945, rapidamente se mostrou que
a agenda implícita era a única agenda. Desde então as esquerdas dividiram-se
entre as que continuavam a defender uma solução socialista (mais ou menos
distante do modelo soviético) e as que, por mais que se proclamassem
socialistas, apenas queriam regular o capitalismo e controlar os seus
“excessos”.
Depois
de 1989, e tal como acontecera no início do século, a agenda implícita
continuou durante algum tempo implícita, apesar de ser já a única em vigor.
Foi-se tornando evidente que ambas as esquerdas do período anterior saíram
derrotadas. Por isso se assistiu, depois de 1989, à difusão sem precedentes da
ideia da crise da social-democracia, muitas vezes articulada com a ideia da
impossibilidade ou inviabilidade da social-democracia. A secundá-la, a
ortodoxia neoliberal doutrinava sobre o carácter predador ou, pelo menos,
ineficiente do Estado e da regulação estatal, sem os quais não era possível
garantir a efectividade dos direitos económicos e sociais.
O
desarme da esquerda social democrática durante algum tempo foi disfarçado pela
nova articulação das formas de dominação que vigoram no mundo desde o século
XVII: capitalismo, colonialismo (racismo, monoculturalismo, etc.) e o
patriarcado (sexismo, divisão arbitrária entre trabalho produtivo e trabalho
reprodutivo, ou seja, entre trabalho pago e trabalho não-pago). As
reivindicações sociais orientaram-se para as agendas ditas pós-materiais, os
direitos culturais ou de quarta geração. Estas reivindicações eram genuínas e
denunciavam modos de opressão e de discriminação repugnantes. Mas o modo como
foram orientadas fez crer aos agentes políticos que as mobilizaram (movimentos
sociais, ONGs, novos partidos) que as podiam levar a cabo com êxito sem tocar
no terceiro eixo da dominação, o capitalismo. Houve mesmo uma negligência do
que se foi chamando política de classe (distribuição) em favor das políticas de
raça e sexo (reconhecimento). Essa convicção provou-se fatal no momento em que
o regime pós-1989 caiu. A dominação capitalista, reforçada pela legitimidade
que criou nestes anos, virou-se facilmente contras as conquistas anti-racistas
e anti-sexistas na busca incessante de maior acumulação e exploração. E estas,
desprovidas da vontade anti-capitalista ou separadas das lutas
anti-capitalistas, estão a sentir muitas dificuldades para resistir.
Nestes
anos de interregno resulta evidente que a agenda implícita visava dar total prioridade
ao princípio do mercado na regulação das sociedades modernas em detrimento do
princípio do Estado e da comunidade. No início do século XX o princípio da
comunidade fora secundarizado em favor da rivalidade que então se instalou
entre os princípios do Estado e do mercado. A relação entre ambos foi sempre
muito tensa e contraditória. A social-democracia e os direitos económicos e
sociais significaram momentos de trégua nos conflitos mais agudos entre os dois
princípios. Esses conflitos não eram resultado de meras oposições teóricas.
Resultavam das lutas sociais das classes trabalhadoras que procuravam encontrar
no Estado o refúgio mínimo contra as desigualdades e os despotismos gerados
pelo princípio de mercado. A partir de 1989, o neoliberalismo encontrou o clima
político adequado para impor o princípio do mercado, contrapondo a sua lógica à
lógica do princípio do Estado, entretanto colocado à defesa.
A
globalização neoliberal, a desregulação, a privatização, os tratados de livre
comércio, o papel inflacionado do Banco Mundial e do FMI foram sendo executadas
paulatinamente para erodir o princípio do Estado, quer retirando-o da regulação
social, quer convertendo esta numa outra forma de regulação mercantil. Para
isso, foi necessária uma desvirtuação radical mas silenciosa da democracia.
Esta, que no melhor dos casos fora encarregada de gerir as tensões entre o
princípio do Estado e o princípio do mercado, passou a ser usada para legitimar
a superioridade do princípio do mercado e, no processo, transformar-se ela
própria num mercado (corrupção endémica, lobbies, financiamento de partidos,
etc.). O objectivo era que o Estado passasse de Estado
capitalista-com-contradições a Estado capitalista-sem-contradições. As
contradições passariam a ser exteriorizadas para a sociedade, crises sociais a
serem resolvidas como questões de polícia e não como questões políticas.
A
grande maioria das forças de esquerda aceitaram esta viragem; pouca resistência
lhe ofereceram quando não se tornaram cúmplices activas dela, o que aconteceu
sobretudo na Europa. Na última fase deste período, alguns países da América
Latina protagonizaram uma resistência significativa e tão significativa que não
pode ser neutralizada pela monotonia das relações económicas promovidas pelo
neoliberalismo global, nem resultou apenas dos erros próprios cometidos pelos
governos progressistas. Envolveu a intervenção forte do imperialismo
norte-americano, que na primeira década de 2000 tinha aliviado a pressão sobre
os países latino-americanos por estar profundamente envolvido no Médio Oriente.
Venezuela, Brasil e Argentina são talvez os casos mais emblemáticos desta
situação. O imperialismo norte-americano entretanto mudou de rosto e de
táctica, em vez de impor ditaduras por via da CIA e forças militares, promove e
financia iniciativas de “democracia-amiga-do mercado” através de organizações
não-governamentais libertárias e evangélicas e de desenvolvimento local,
protestos, na medida do possível pacíficos, mas com slogans ofensivos para as
personalidades, os princípios e as políticas de esquerda. Em situações mais
tensas, pode financiar acções violentas que depois, com a cumplicidade dos
media nacionais e internacionais, são atribuídas aos governos hostis, ou seja,
governos hostis aos interesses norte-americanos. Tudo isto tutelado e
financiado pela CIA, a embaixada norte-americana no país e o Departamento de
Estado dos EUA.
Vivemos,
pois, um período de interregno. Não sei se este interregno gera fenómenos
mórbidos como o interregno famosamente analisado por Gramsci. Mas tem
certamente assumido características profundamente dissonantes entre si. Nos
últimos cinco anos, a actividade política em diferentes países e regiões do
mundo adquiriu facetas e traduziu-se em manifestações surpreendentes ou
desconcertantes. Eis uma selecção possível: o agravamento sem precedentes da
desigualdade social; a intensificação da dominação capitalista, colonialista
(racismo, xenofobia, islamofobia) e hetero-patriarcal (sexismo) traduzida no
que chamo fascismo social em sua diferentes formas (fascismo do apartheid
social, fascismo contratual, fascismo territorial, fascismo financeiro,
fascismo da insegurança); a reemergência do colonialismo interno na Europa com
um país dominante, a Alemanha, a aproveitar-se da crise financeira para
transformar os países do sul numa espécie de protetorado informal,
particularmente gritante no caso da Grécia; o golpe judiciário-parlamentar
contra a Presidente Dilma Rousseff, um golpe continuado com o impedimento da
candidatura de Lula da Silva às eleições presidenciais de 2018; a saída
unilateral do Reino Unido da União Europeia; a renúncia às armas por parte da
guerrilha colombiana e o início conturbado do processo de paz; o colapso ou
crise grave do bipartidismo centrista em vários países, da França à Espanha, da
Itália à Alemanha; a emergência de partidos de tipo novo a partir de movimentos
sociais ou mobilizações anti-política, como o Podemos na Espanha, Cinco Stelle
na Itália, AAP na Índia; a constituição de um governo de esquerda em Portugal com
base num entendimento sem precedentes entre diferentes partidos de esquerda; a
eleição presidencial de homens de negócios bilionários com fraca ou nula
experiência política apostados em destruir a protecção social que os Estados
têm garantido às classes sociais mais vulneráveis, sejam eles Macri na
Argentina ou Trump nos EUA; o ressurgimento da extrema-direita na Europa com o
seu tradicional nacionalismo de direita, mas surpreendentemente portadora da
agenda das políticas sociais que tinham sido abandonadas pela
social-democracia, com a ressalva de agora valerem apenas para “nós” e não para
“eles” (imigrantes, refugiados); a infiltração de comportamentos fascizantes em
governos democraticamente eleitos, como, por exemplo, na Índia do BJP e do
presidente Modi, nas Filipinas de Duterte, nos EUA de Trump, na Polónia de
Kaczynski, na Hungria de Orban, na Rússia de Putin, na Turquia de Erdogan, no
México de Peña Nieto; a intensificação do terrorismo jihadista que se proclama
como islâmico; a maior visibilidade de manifestações de identidade nacional, de
povos sem Estado, nacionalismos de direita na Suíça, e na Áustria,
nacionalismos com fortes componentes de esquerda na Espanha (Catalunha mas
também País Basco, Galiza e Andaluzia) e na Nova Zelândia, e nacionalismos dos
povos indígenas das Américas que se recusam a ser encaixados na dicotomia
esquerda/direita; o colapso por uma combinação de erros próprios e
interferência grave do imperialismo norte-americano de governos progressistas
que procuraram combinar desenvolvimento capitalista com a melhoria do nível de
vida das classes populares, no Brasil, Argentina e Venezuela; a agressividade
sem paralelo na gravidade e na impunidade da ocupação da Palestina pelo Estado
colonial de Israel; as profundas transformações internas combinadas com
estabilidade (pelo menos aparente) em países que durante muito tempo
simbolizaram as mais avançadas conquistas das políticas de esquerda, da China
ao Vietname e a Cuba.
O
significado histórico deste interregno
Este
elenco deixa de fora os problemas sociais, económicos e ecológicos que talvez
mais preocupem os democratas em tudo o mundo, tal como não menciona a violência
familiar, urbana, rural ou a proliferação das guerras não-declaradas, embargos
não declarados, o terrorismo e o terrorismo de Estado que estão a destruir
povos inteiros (Palestina, Líbia, Síria, Afeganistão, Iémen) e a convivência
pacífica em geral, a transformação do trabalho numa mercadoria como outra
qualquer, os apelos ao consumismo, ao individualismo e à competitividade sem
limites, ideologias com as quais muitas forças de esquerda têm sido tão
complacentes ou aceitam como algo inevitável, o que dá no mesmo.
Neste
sentido, este elenco é um elenco de sintomas e não de causas. Mesmo assim,
serve-me para mostrar as características histórico-estruturais principais do
interregno em que nos encontramos:
Embora
o capitalismo seja um sistema globalizado desde o seu início o âmbito e as
características internas da globalização têm variado ao longo dos séculos. Para
me reportar exclusivamente ao mundo contemporâneo, podemos dizer que desde 1860
o mundo se encontra num processo particularmente acelerado de interdependência
global, um processo atravessado por contradições internas, como é próprio do
capitalismo, muito desigual e com descontinuidades significativas. O conceito
de interregno visa precisamente dar conta dos processos de ruptura e de
transição. Os períodos de mais intensa globalização tendem a coincidir com
períodos de grande rentabilidade do capital (ligada a grande inovações
tecnológicas) e com a hegemonia inequívoca (sobretudo económica mas também
política e militar) de um país. A estes períodos têm-se seguido períodos de
grande instabilidade política e económica e de crescente rivalidade entre
países centrais.
O
primeiro período de globalização contemporânea ocorreu entre 1860 e 1914. A
Inglaterra foi o país hegemónico e a segunda revolução industrial e o
colonialismo foram suas características principais. A ele se seguiu um período
de mais acentuada rivalidade entre países centrais de que resultaram duas
guerras mundiais em que morreram 78 milhões de pessoas. O segundo período
ocorreu entre 1944 e 1971. Os EUA foram o país hegemónico e as suas
características principais foram a terceira revolução industrial (informática),
a guerra fria e a co-existência de dois modelos de desenvolvimento (o modelos
capitalista e o socialista, ambos com várias versões), o fim do colonialismo,
uma nova fase de imperialismo e neocolonialismo. Seguiu-se um período de
acrescida rivalidade de que resultou o colapso do socialismo soviético e o fim
da guerra fria. A partir de 1989 entrámos num terceiro período de globalização
cuja crise está a dar azo ao interregno em que nos encontramos. Foi um período
de dominação mais multilateral com a União Europeia e a China a disputarem a
hegemonia dos EUA conquistada no período anterior. Caracterizou-se pela quarta
revolução (a micro electronica e crescentemente, a genética e a robotização) e
as suas características mais inovadoras foram, por um lado, submeter pela
primeira vez virtualmente todo o mundo ao mesmo modelo de desenvolvimento
hegemónico (o capitalismo na sua versão neoliberal) e, por outro, transformar a
democracia liberal no único sistema político legítimo e impô-lo em todo o
mundo.
A
fase de interregno em que nos encontramos está relacionada com a evolução mais
recente destas características. Todas as facetas desta fase estão vigentes mas
apresentam sinais de grande desestabilização. Uma maior rivalidade entre duas
potencias imperiais, os EUA e a China, cada um socorrendo-se de satélites
importantes, a UE no caso dos EUA e a Rússia no caso da China; um desequilíbrio
cada vez mais evidente entre o poderio militar dos EUA e o seu poder económico
com novas ameaças de guerra incluindo a guerra nuclear e uma corrida aos
armamentos; a impossibilidade de reverter a globalização dada a profunda
interdependência (bem evidente na crise do processo Brexit) combinada com a
luta por novas condições de comércio dito livre no caso dos EUA; uma crise de rentabilidade
do capital que provoca uma longa depressão (não resolvida depois da crise
financeira de 2008 ainda em curso) e que se manifesta de duas formas
principais: a degradação dos rendimentos salariais nos países centrais e
semi-periféricos, combinada com um ataque global às classes médias (uma
realidade que sociologicamente varia muito de país para país) e uma corrida sem
precedentes aos chamados recursos naturais com as consequências fatais que cria
para as populações camponesas e povos indígenas e para os já precários
equilíbrios ecológicos.
Entre
as características deste interregno duas são particularmente decisivas para as
forças de esquerda e revelam bem a tensão em que se encontram entre a
necessidade cada vez mais urgente de se unirem e as dificuldades novas e sem
precedentes na satisfação sustentada de tal necessidade. Trata-se duas pulsões
contraditórias que vão em sentido contrário e que, em meu entender, só podem
ser geridas através de uma cuidada gestão das escalas de tempo. Vejamos:
1-No
que respeita à universalização da democracia liberal as forças de esquerda
devem partir da seguinte verificação. A democracia liberal nunca teve a
capacidade de se defender dos anti-democratas e fascistas com os mais diversos
disfarces; mas hoje o que mais surpreende não é essa incapacidade, são antes os
processos de incapacitação movidos por uma força transnacional altamente
poderosa e intrinsecamente antidemocrática, o neoliberalismo (capitalismo como
civilização de mercado, de concentração e de ostentação da riqueza), cada vez
mais geminado com o predomínio do capital financeiro global a que tenho chamado
o “fascismo financeiro”, e acompanhado por um cortejo impressionante de
instituições transnacionais, lobistas e meios de comunicação social. Estes novos
(de facto, velhos) inimigos da democracia não a querem substituir pela
ditadura. Em vez disso, buscam descaracterizá-la ao ponto de ela se transformar
na reprodutora mais dócil e na voz mais legitimadora dos seus interesses.
Esta
verificação convoca com urgência a necessidade de as esquerdas se unirem para
salvaguardar o único campo político em que hoje admitem lutar pelo poder, o
campo democrático.
2-
Por sua vez, o ataque generalizado aos rendimentos salariais, às organizações
operárias e às formas de concertação social com a consequente transformação das
reivindicações sociais numa questão de polícia; a crise ambiental cada vez mais
grave e irreversível agravada pela luta desesperada pelo acesso ao petróleo que
envolve a destruição de países como o Iraque, a Síria e a Líbia e amanhã talvez
o Irão e a Venezuela; o recrudescimento, para muitos e muitas surpreendente, do
racismo e do sexismo e hetero-sexismo; todas estas características apontam para
uma condição de irreversível contradição entre capitalismo e democracia mesmo a
democracia de baixa intensidade que a democracia liberal sempre foi.
Ora
sendo certo que as esquerdas estão desde há muito divididas entre as que
acreditam na regeneração do capitalismo, de um capitalismo de rosto humano, e
as esquerdas que estão convencidas que o capitalismo é intrinsecamente
deshumano e por isso irresgatável, não será fácil que imaginar que se unam de
forma sustentada. Penso que uma sabedoria pragmática que saiba distinguir entre
o curto e o longo prazo mas mantê-los os dois no debate pode ajudar a resolver
esta tensão. Este texto está centrado no curto prazo mas procura não perder de
vista o médio e o longo prazo.
As
forças de esquerda perante o novo interregno
O
elenco de fenómenos, na aparência anómalos, que mencionei acima dá conta de que
o movimento dominante de erosão da democracia está a ser contrariado por forças
sociais de sinal político contrário, ainda que frequentemente baseadas nas
mesmas bases sociais de classe. Sob a forma do populismo, novas e velhas forças
de direita e de extrema-direita procuram criar refúgios onde podem defender a
“sua” democracia e os seus direitos dos apetites de estranhos, sejam eles
imigrantes, refugiados ou grupos sociais “inferiores”, assim declarados por via
da raça, etnia, sexo, sexualidade ou religião. Não defendem a ditadura; pelo
contrário, declaram defender a democracia ao salientar o valor moral da vontade
do povo, reservando para si, obviamente, o direito de definir quem faz parte do
“povo”. Como a vontade do povo é um imperativo ético que não se discute, a
suposta defesa da democracia opera por via de práticas autoritárias e
anti-democráticas. É esta a essência do populismo. Falar de populismo de
esquerda é um dos mais perniciosos equívocos de alguma teoria política crítica
dos últimos anos.
Por
sua vez, novas e velhas forças políticas de esquerda propõem-se defender a
democracia contra os limites e perversões da democracia representativa,
liberal. É sobre elas que me debruço neste texto. Tais forças procuram democratizar
a democracia, reforçando-a de modo a poder resistir aos instintos mais
agressivos do neoliberalismo e do capital financeiro. Essa defesa tem assumido
várias formas em diferentes contextos e regiões do mundo. As principais são as
seguintes: emergência de novos partidos de esquerda e por vezes de partidos de
tipo novo, com uma relação com a cidadania ou com movimentos populares
diferente e mais intensa da que tem sido característica dos velhos partidos de
esquerda; rupturas profundas no seio dos velhos partidos de esquerda, quer
quanto a programas quer quanto a lideranças; surgimento de movimentos de
cidadania ou de grupos sociais excluídos, alguns que perduram outros efémeros,
que se colocam fora da lógica da política partidária e, portanto, do marco da
democracia liberal; protestos, marchas, greves em defesa de direitos económicos
e sociais; adopção de processos de articulação entre a democracia
representativa e a democracia participativa no interior dos partidos ou nos
campos de gestão política em que intervêm, nomeadamente a nível municipal;
reivindicação de revisões constitucionais ou de assembleias constituintes
originárias para fortalecer as instituições democráticas e as blindar contra as
acções dos seus inimigos; chamamento à necessidade de romper com as divisões do
passado e procurar articulações entre as diferentes famílias de esquerda de
modo a tornar mais unitária e eficaz a luta contra as forças anti-democráticas.
Deste
elenco é fácil concluir que este período de interregno está a provocar um forte
questionamento das teorias e práticas de esquerda que vigoraram nos últimos
cinquenta anos. O questionamento assume as formas mais diversas mas, apesar
disso, é possível identificar alguns traços comuns.
O
primeiro é que o horizonte emancipatório deixou de ser o socialismo para ser a
democracia, os direitos humanos, a dignidade, o pós-neoliberalismo, o
pós-capitalismo um horizonte simultaneamente mais vago e mais diverso. Acontece
que, trinta anos depois da queda do Muro de Berlim, este horizonte está tão
desacreditado quanto o horizonte socialista. A democracia liberal é hoje em
muitos países uma imposição do imperialismo e os direitos humanos são invocados
apenas para liquidar governos que resistem ao imperialismo.
Em
segundo lugar, o tom das lutas e das reivindicações é, em geral, um tom
defensivo, ou seja, no sentido de defender o que se conquistou, por pouco que
tenha sido, em vez de lutar por reivindicações mais avançadas na confrontação
com a ordem capitalista, colonialista e patriarcal vigente. Em vez das guerras
de movimento e das guerras de posição, como Gramsci caracterizou as principais
estratégias operárias, dominam guerras de trincheira, de linhas vermelhas que
não podem ser ultrapassadas. As forças que não aceitam esta lógica defensiva
correm o risco de arcar com a marginalização e a autonomia, que é tanto maior
quanto mais circunscrita se apresenta no plano territorial ou social.
Terceiro,
porque não foi totalmente proscrita, a democracia obriga a que as forças de
esquerda se posicionem no quadro democrático, por mais que o regime democrático
esteja desacreditado. Esse posicionamento poderia implicar a recusa em
participar no jogo democrático, mas o custo é elevado quer se participe
(nenhuma possibilidade de ganhar) quer não se participe (marginalização). Este
dilema é particularmente sentido em períodos pré-eleitorais.
Entre
as várias estratégias que mencionei acima, a que simultaneamente melhor ilustra
as dificuldades em actuar politicamente em contexto defensivo e em transformar
tais dificuldades em oportunidade para formular projectos alternativos de luta
política são as propostas de articulação ou unidade entre as diferentes forças
de esquerda. Acresce que estas propostas estão a ser discutidas em vários
países onde em 2018 vão realizar-se eleições. Precisamente os processos
eleitorais constituem o máximo teste de viabilidade para este tipo de
propostas. Por todas estas razões, passo a centrar-me nelas, começando por
mencionar um caso concreto a título de ilustração.
Duas
notas prévias. A primeira pode formular-se sob a forma de duas interrogações.
São de esquerda todas as forças políticas que se consideram como tal? A
resposta a esta pergunta não é fácil uma vez que, para além de certos
princípios gerais (identificados nos livros que mencionei na nota 1), a
caracterização de uma dada força política depende dos contextos específicos em
que opera. Por exemplo, o Partido Democrático norte-americano é considerado de
esquerda ou de centro-esquerda nos EUA mas duvido que o seja em qualquer outro
outro país. Historicamente um dos mais acesos debates no seio da esquerda tem
sido precisamente a definição do que se considera ser a esquerda. A segunda
pergunta pode formular-se assim: como distinguir entre forças de esquerda e
políticas de esquerda? Em princípio deveria pensar-se que o que faz uma força
política ser de esquerda é defender e aplicar políticas de esquerda. Sabemos,
no entanto, que a realidade é outra. Por exemplo, considero o partido grego
Syriza um partido de esquerda mas com o mesmo grau de convicção penso que as
políticas que tem vindo a aplicar na Grécia são de direita. Sendo assim, a
segunda interrogação desdobra-se numa terceira: por quanto tempo tempo e com
que consistência se pode manter tal incongruência sem que deixe de ser legítimo
pensar que a força de esquerda em causa deixou de o ser?
A
segundo nota prévia tem a ver com a necessidade de analisar o novo impulso de
articulação ou unidade entre as forças de esquerda à luz de outros impulsos do
passado. O impulso actual deve ser interpretado como sinalizando a vontade de
renovação das forças de esquerda ou o contrário? A verdade é que a renovação da
esquerda tem sido sempre pensada, pelo menos desde 1914, a partir da desunião
das esquerdas. Por seu lado, a unidade tem sido sempre tentada a partir da
sonegação ou mesmo da recusa da renovação da esquerda e a justificação para tal
tem estado sempre ligada ao perigo da ditadura. Será que o impulso de
articulação ou unidade actual, ainda que motivado pelo perigo iminente do colapso
da democracia, pode significar, ao contrário dos anteriores, uma vontade de
renovação?
A
articulação entre forças de esquerda. O caso português
O
governo em funções em Portugal desde o final de 2015 é pioneiro em termos da
articulação entre vários partidos de esquerda, um governo do Partido Socialista
com apoio parlamentar dos dois partidos de esquerda, Bloco de Esquerda e
Partido Comunista Português. É pouco conhecido internacionalmente, não só
porque Portugal é um país pequeno, cujos processos políticos raramente fazem
parte da actualidade política internacional, como e sobretudo por representar
uma solução política que vai contra os interesses dos dois grandes inimigos
globais da democracia que hoje dominam os media — o neoliberalismo e o capital financeiro
global —. Convém recapitular. Desde a Revolução de 25 de Abril de 1974, os
portugueses votaram frequentemente na sua maioria em partidos de esquerda, mas
foram governados por partidos de direita ou pelo Partido Socialista sozinho ou
coligado com partidos de direita. Os partidos de direita apresentavam-se a
eleições sozinhos ou em coligação enquanto os partidos de esquerda, na lógica
de uma longa trajectória histórica, se apresentavam divididos por diferenças
aparentemente inultrapassáveis. O mesmo aconteceu em Outubro de 2015. Só que
nessa ocasião, num gesto de inovação política que ficará nos anais da
democracia europeia, os três partidos de esquerda (Partido Socialista, Bloco de
Esquerda e Partido Comunista Português) resolveram entrar em negociações para
buscarem uma articulação de incidência parlamentar que viabilizasse um governo
de esquerda liderado por um desses partidos, o que teve mais votos, o Partido
Socialista. Com negociações separadas entre este partido e os outros dois,
(tais as desconfianças recíprocas de partida), foi possível chegar a acordos de
governação que viabilizaram um governo de esquerda sem precedentes na Europa
das últimas décadas.
A
inovação destes acordos consistiu em várias premissas: 1) os acordos eram
limitados e pragmáticos, estavam centrados em menores denominadores comuns com
o objectivo de possibilitar uma governação que travasse a continuação das
políticas de empobrecimento dos portugueses que os partidos de direita
neoliberal tinham vindo a aplicar no país; 2) os partidos mantinham ciosamente
a sua identidade programática, as suas bandeiras, e tornavam claro que os
acordos não as punham em risco, porque a resposta à conjuntura política não
exigia que fossem consideradas, e muito menos abandonadas; 3) o governo deveria
ter coerência e, para isso, deveria ser da responsabilidade de um só partido, e
o apoio parlamentar garantiria a sua estabilidade; 4) os acordos seriam celebrados
de boa-fé e seriam acompanhados e verificados regularmente pelas partes. Os
textos dos acordos constituem modelos de contenção política e detalham até ao
pormenor os termos acordados. Basicamente, as medidas acordadas tinham dois
grandes objectivos políticos: parar o empobrecimento dos portugueses, repondo
rendimentos dos trabalhadores e dos pensionistas na base da escala de
rendimentos, e travar as privatizações que, como todas as que ocorrem sobre a
égide do neoliberalismo e do capital financeiro global, são actos de
privataria. Os acordos foram negociados com êxito e o governo tomou posse num
ambiente politicamente hostil, por parte do Presidente da República de então,
da Comissão Europeia e das agências financeiras, todos fiéis servidores da
ortodoxia neoliberal. A pouco e pouco a política executada em cumprimento dos
acordos foi dando resultados, para muitos, surpreendentes, e ao fim de algum
tempo muitos dos detratores do governo tinham de ser vergar perante os números
do crescimento da economia, da descida da taxa de desemprego, da melhoria geral
da imagem do país, finalmente ratificada pelas agências de notação de crédito,
e com os títulos portugueses a passar do nível lixo para o nível investimento.
O significado de tudo isto podia resumir-se no seguinte: realizando políticas
opostas às receitas neoliberais obtêm-se os resultados que tais receitas sempre
anunciam e nunca conseguem e isso é possível sem aumentar o sofrimento e o
empobrecimento dos portugueses. Antes, pelo contrário, reduzindo-os. De uma
maneira muito mais directa, o significado desta inovação política é mostrar que
o neoliberalismo é uma mentira, e que o seu único e verdadeiro objectivo é
acelerar a todo o custo a concentração da riqueza sob a égide do capital
financeiro global.
Obviamente,
a direita neoliberal nacional e internacional está inconformada e tentará pôr
fim a esta solução política, no que tem como aliada, por agora, a direita, que
nunca se reviu nos “excessos” do neoliberalismo e quer voltar ao poder. A forma
mais benevolente do inconformismo surge agora na forma de um aparente elogio, e
que se formula assim: “esta solução política durará toda a presente
legislatura”. Para os mais avisados, isto significa estabilidade a prazo, como
que dizendo às esquerdas (e aos portugueses que nelas se revêm) “era bom mas
acabou-se”. Compete a essas forças e aos portugueses contraporem a este dito o
dito: “queremos mais”, e actuarem em conformidade.
Qual
o significado mais global desta inovação política? Onze teses para articulações
limitadas entre forças políticas de esquerda
Neste
domínio, como em muitos outros, não há lugar para cópias mecânicas de soluções.
As esquerdas podem e devem aprender com as experiências globais, mas têm de
encontrar as soluções que se adequem às suas condições e ao seu contexto. Há,
aliás, factores que são únicos e facilitam soluções que noutros contextos são
inviáveis ou, pelo menos, muito mais difíceis. Darei exemplos adiante. Com
estas cautelas, a experiência portuguesa tem um significado que transcende o
país, qualquer que seja o que venha a suceder no futuro. Esse significado pode
resumir-se no seguinte.
Primeiro,
as articulações entre partidos de esquerda podem ser de vários tipos,
nomeadamente, podem resultar de acordos pré-eleitorais ou acordos pós-eleitorais;
podem envolver participação no governo ou apenas apoio parlamentar. Sempre que
os partidos partem de posições ideológicas muito diferentes, e se não houver
outros factores que recomendem o contrário, é preferível optar por acordos
pós-eleitorais (porque ocorrem depois de medir pesos relativos) e acordos de
incidência parlamentar (porque minimizam os riscos dos parceiros minoritários e
permitem que as divergências sejam mais visíveis e disponham de sistemas de
alerta conhecidos dos cidadãos).
Segundo,
as soluções políticas de risco pressupõem lideranças com visão política e
capacidade para negociar. No caso português, todos os líderes envolvidos têm
essa característica. Aliás, o Primeiro Ministro tinha tentado pontualmente
políticas de articulação de esquerda nos anos em que foi Presidente da Câmara
de Lisboa. Mas a mais consistente a articulação entre forças de esquerda foi
protagonizada por Jorge Sampaio, também do Partido Socialista, enquanto
Presidente da Câmara de Lisboa, e que viria a ser Presidente da República entre
1996 e 2006. E não podemos esquecer que o fundador do Partido Socialista
português, o Dr. Mário Soares, na fase final da sua vida política, tinha
advogado este tipo de políticas, algo que, por exemplo, é difícil imaginar em
Espanha, onde o fundador do PSOE, Felipe Gonzalez, se virou à direita com o
passar dos anos e se manifestou sempre contra quaisquer entendimentos à
esquerda.
Terceiro,
as soluções inovadoras e de risco não podem sair apenas das cabeças dos líderes
políticos. É necessário consultar as “bases” do partido e deixar-se mobilizar
pelas inquietações e aspirações que manifestam.
Quarto,
a articulação entre forças de esquerda só é possível quando é partilhada a
vontade de não articular com outras forças, de direita ou centro-direita. Sem
uma forte identidade de esquerda, o partido ou força de esquerda em que tal
identidade for fraca será sempre um parceiro relutante, disponível para
abandonar a coligação. A ideia de centro é hoje particularmente perigosa para a
esquerda porque, como espectro político, se tem deslocado para a direita por
pressão do neoliberalismo e do capital financeiro. O centro tende a ser
centro-direita, mesmo quando afirma ser centro-esquerda. É crucial distinguir
entre uma política moderada de esquerda e uma política de centro-esquerda. A
primeira pode resultar de um acordo conjuntural entre forças de esquerda,
enquanto a segunda é o resultado de articulações com a direita que pressupõem
cumplicidades maiores que a descaracterizam como política de esquerda.
Neste
domínio, a solução portuguesa oferece-se a uma reflexão mais aprofundada.
Embora constitua uma articulação entre forças de esquerda e eu considere que
configura uma política moderada de esquerda, a verdade é que contém, por acção
ou por omissão, alguns opções que implicam cedências graves aos interesses que
normalmente são defendidos pela direita. Por exemplo, no domínio do direito do
trabalho e da saúde. Tudo leva a crer que o teste à vontade real em garantir a
sustentabilidade da unidade das esquerdas está no que for decidido nestas áreas
no futuro próximo.
Quinto,
não há articulação ou unidade sem programa e sem sistemas de consulta e de
alerta que avaliem regularmente o seu cumprimento. Passar cheques em branco a
um qualquer líder político no seio de uma coligação de esquerda é um convite ao
desastre.
Sexto,
a articulação é tanto mais viável quanto mais partilhado for o diagnóstico de
que estamos num período de lutas defensivas, um período em que a democracia,
mesmo a de baixa intensidade, corre um sério risco de ser duradouramente
sequestrada por forças anti-democráticas e fascizantes. Mesmo que a democracia
não colapse totalmente, a actividade política oposicional das forças de
esquerda no seu conjunto pode correr sérios riscos de ser fortemente limitada,
senão mesmo ilegalizada.
Sétimo,
a disputa eleitoral tem de ter mínima credibilidade. Para isso deve assentar
num sistema eleitoral que garanta a certeza dos processos eleitorais de modo a
que os resultados da disputa eleitoral sejam incertos.
Oitavo,
a vontade de convergir nunca pode neutralizar a possibilidade de divergir.
Consoante os contextos e as condições, pode ser tão fundamental convergir como
divergir. Mesmo durante a vigência das coligações, as diferentes forças de
esquerda devem manter canais de divergência construtiva. Quando ela deixar de
ser construtiva significará que o fim da coligação está próximo.
Nono,
num contexto mediático e comunicacional hostil às políticas de esquerda, num
contexto em que as notícias falsas proliferam, as redes sociais podem potenciar
a intriga e a desconfiança e os soundbites contam mais que conteúdos e
argumentações, é decisivo que haja canais de comunicação constantes e eficazes
entre os parceiros da coligação e que prontamente sejam esclarecidos equívocos.
Décimo,
nunca esquecer os limites dos acordos, quer para não criar expectativas
exageradas, quer para saber avançar para outros acordos ou para romper os
existentes quando as condições permitirem políticas mais avançadas. No caso
português, os detalhados acordos entre os três partidos revelam bem o carácter
defensivo e limitado das políticas acordadas. Na União Europeia as imposições
do neoliberalismo global são veiculadas no dia a dia pela Comissão e pelo Banco
Central Europeu. A resposta dos partidos de esquerda portugueses deve ser
avaliada à luz da violenta resposta destas instituições europeias às políticas
iniciais do partido Syriza na Grécia. A solução portuguesa visou criar um
espaço de manobra mínimo num contexto que prefigurava uma janela de oportunidade.
Recorrendo a uma metáfora, a solução portuguesa permitiu à sociedade portuguesa
respirar. Ora respirar não é o mesmo que florescer; é tão-só o mesmo que
sobreviver.
Décimo-primeiro,
no contexto actual de asfixiante doutrinação neoliberal, a construção e
implementação de alternativas, por mais limitadas, têm, quando realizadas com
êxito, além do impacto concreto e benéfico na vida dos cidadãos, um efeito
simbólico decisivo que consiste em desfazer o mito que os partidos de
esquerda-esquerda só servem para protestar e não sabem negociar e muito menos
assumir as complexas responsabilidades da governação. Este mito foi alimentado
pelas forças conservadoras ao longo de décadas com a cumplicidade dos grandes
media e tem hoje a reforçá-lo o poder disciplinar global que o neoliberalismo
adquiriu nas últimas décadas.
Alguns
cenários incertos para a articulação das forças de esquerda
Em
tempos recentes, a questão da articulação entre forças de esquerda tem sido
discutida em diferentes países e os contextos em que a discussão tem ocorrido
são reveladores dos muitos obstáculos que haveria que ultrapassar para que tal
articulação fosse possível ou desejável. Em alguns casos torna-se mesmo claro
que tais obstáculos são a curto ou médio prazo intransponíveis. As discussões
tendem a ter lugar sobretudo em períodos pré-eleitorais. Não tenho a pretensão
de analisar em detalhe tais discussões. Limitar-me-ei a ilustrar os diferentes
obstáculos e os bloqueios que os diferentes contextos revelam e, à luz deles, o
que teria de mudar para que tal articulação fosse possível e desejável.
Analiso
brevemente quatro desses contextos: Brasil, Colômbia, México e Espanha. Nos
três primeiros países haverá eleições em 2018. Cada um destes países ilustra um
obstáculo específico à construção de coligações que tornem possíveis governos
de esquerda com programas de esquerda. Este exercício pode, aliás, ser feito
com outros países, quer ele ilustre igualmente estes obstáculos quer ilustre
outros obstáculos que, nesse caso, deverão então ser definidos. Se este
exercício necessariamente colectivo for feito num número suficiente grande de
países em diferentes regiões do mundo, será possível ter uma ideia de conjunto
dos obstáculos a ultrapassar e dos caminhos para o fazer. Com essa base seria possível
imaginar uma nova internacional das esquerdas. Obviamente que, em muitos
países, os debates políticos não se formulam como debates entre esquerda e
direita e, noutros, os próprios debates estão proibidos por regimes
autoritários. No primeiro caso, poderiam estar interessadas na nova
internacional forças políticas que lutam democraticamente contra o capitalismo,
o colonialismo e o patriarcado sem se preocuparem com as etiquetas. Os nomes
com que se designam as diferenças são menos importantes que as diferenças em si
e os modos como se debatem. No segundo caso, poderiam estar interessadas na
nova internacional as forças que clandestinamente lutam pela democracia.
Brasil:
a fractura do desgaste da governação e a intervenção do império
O
golpe judiciário-parlamentar da destituição da Presidente Rousseff e a operação
Lava-Jato, com o apoio activo do imperialismo norte-americano, tiveram por
objectivo enfraquecer as forças de esquerda que tinham governado o país nos
últimos treze anos, e conseguiram-no. E conseguiram-no com tanto zelo que o
Brasil está a recuar a muito antes de 2003, quando teve início a primeira
gestão do Presidente Lula da Silva. A caricatura do Brasil real em que o
Congresso se transformou com o actual sistema eleitoral e a cada vez mais
abusiva judicialização da política fazem com que o sistema político brasileiro
tenha entrado em tal desequilíbrio que configura uma situação de bifurcação: os
próximos passos podem reestabelecer a normalidade democrática ou, pelo
contrário, aprofundar de modo irreversível a vertigem fascizante em que se
encontra.
As
principais forças de esquerda partidária no Brasil são o PT (Partido dos
Trabalhadores), PDT (Partido Democrático Trabalhista), PSB (Partido Socialista
Brasileiro), PcdoB ( Partido Comunista do Brasil) e PSOL (Partido Socialismo e
Liberdade). A agressividade com que o governo ilegítimo de Michel Temer tem
vindo a desmantelar os ganhos de inclusão social dos últimos treze anos parece
indicar que só com o rápido regresso da esquerda ao poder é possível estancar
esta vertigem conservadora. Não se pode sequer confiar em que uma força de
centro-direita, com alguma consciência social, possa inverter esse processo e
resgatar alguns dos ganhos de inclusão social recentes. Tal força ou não existe
ou não tem poder político para impor uma tal agenda. Entre muitas outras
questões que a conjuntura brasileira suscita neste momento, menciono a que é
relevante para análise que me proponho neste texto. É possível a esquerda
voltar ao poder Brasil a curto prazo e, se for possível, em que condições é que
tal é desejável? Para que a esquerda regresse ao poder, é necessária unidade ou
a articulação entre vários partidos de esquerda?
Uma
questão prévia à resposta a estas questões é a de saber como vai evoluir o
entendimento entre as diferentes forças de direita. Neste domínio, o que
distingue o Brasil de outros países analisados neste texto é a divisão entre as
diferentes forças de direita. É possível que o seu instinto de poder as leve a
um entendimento a curto prazo. De todo o modo, o que se passar com as forças de
direita terá certamente um impacto nas forças de esquerda. Para responder às
questões da unidade ou articulação entre as diferentes forças de esquerda, o
primeiro factor a ter em conta é que a esquerda, através do PT, esteve no poder
nos últimos treze anos, algo que não aconteceu em nenhum dos outros países. Não
ponho aqui em causa que o PT é um partido de esquerda nem que muitas das
políticas que levou a cabo eram políticas de esquerda. Como sabemos, foi um
governo de aliança com partidos da direita, nomeadamente com o PMDB a que
pertence o actual presidente.
Para
o tema que trato são particularmente relevantes os seguintes factores.
Primeiro, a governação do PT foi contestada por outros partidos de esquerda,
precisamente por ser um governo de alianças com a direita. Segundo, no Brasil é
particularmente importante considerar a força de movimentos populares, não
filiados em nenhum partido de esquerda. Depois da crise política de 2015,
formaram-se duas grandes frentes de movimentos populares, a Frente Brasil
Popular e a Frente Povo sem Medo com sensibilidades de esquerda distintas, a
primeira mais coincidente com o PT, a segunda mais aberta à ideia de alianças
entre diferentes partidos de esquerda. Terceiro, as forças de direita (o
governo ilegítimo, os grandes media, a fracção dominante do poder judiciário e
o imperialismo norte-americano) estão apostadas em impedir por todos os meios
(já vimos que esses meios não têm de ser democráticos) que a esquerda volte ao
poder, pelo menos antes que o processo de contra-reforma esteja consolidado.
Por exemplo, a reforma da previdência parece um objectivo difícil de atingir,
mas isto pode ser uma das ilusões em que os períodos pré-leitorais são férteis.
Para
a direita, o maior obstáculo com que se enfrenta esse desígnio é a candidatura
do ex-presidente Lula, pois está convencida de que não há outros candidatos de
esquerda que possam protagonizar uma candidatura ganhadora. Quarto, as
políticas que os governos do PT levaram a cabo entre 2013 e 2016 permitiram
criar a ilusão de que eram geradoras de uma grande conciliação nacional numa
sociedade atravessada por clivagens profundas de classe, raça e sexo. Isso foi
possível porque o contexto internacional permitiu um crescimento económico que
fez com que 50 milhões de brasileiros ficassem menos pobres sem que os ricos
deixassem de continuar a enriquecer. De facto, nestes anos, a desigualdade
social agravou-se. Quando o contexto internacional mudou (a curva descendente
do ciclo das commodities), este modelo entrou em crise. O modo como ela foi
gerida mostrou tragicamente que não tinha havido conciliação. As classes
dominantes e as forças políticas ao seu serviço apenas tinham elevado as suas
expectativas de enriquecimento durante o período e tiveram poder suficiente
para não as ver frustradas no novo contexto. Num contexto mais adverso para os
seus interesses passaram ao enfrentamento mais radical, a situação presente.
Isto significa que as políticas que foram a marca da governação PT, sobretudo
nos primeiros dez anos, não têm qualquer viabilidade no novo contexto. Aliás,
os últimos anos do governo da Presidenta Dilma Rousseff já foram anos pós-Lula.
Com ou sem o presidente Lula, se a esquerda voltar ao poder, o governo será
caracteristicamente um governo pós-Lula.
Estes
são, em meu entender, os principais factores que nos ajudam a contextualizar a
eventual desejabilidade de articulação entre forças de esquerda (entre partidos
e entre movimentos) e as dificuldades que ela pode enfrentar. Neste momento
identificam-se duas posições. A primeira, defendida pela liderança do PT,
preconiza a unidade de esquerda sob a hegemonia do PT. A segunda, defendida por
outras forças de esquerda e por sectores do PT situados mais à esquerda, a
unidade deve assentar em acordo entre diferentes forças de esquerda sem a
hegemonia de nenhuma delas. Uma variante desta posição defende que as
diferentes forças de esquerda devem num primeiro momento expressar livremente a
sua pluralidade e diversidade (medir forças) e pactuar a unidade ou a
articulação num segundo momento (segundo turno das eleições presidenciais ou
alianças pós-eleitorais no novo Congresso).
A
primeira posição conta com um candidato de luxo, Lula da Silva, que não cessa
de subir nas sondagens. Mas, em Janeiro de 2018, o futuro político dele é
incerto. Por outro lado, esta posição pode, no melhor dos casos, garantir que
uma força de esquerda chegue ao poder, mas não pode garantir que, uma vez no
poder, prossiga uma política de esquerda, ou seja, uma política que, mesmo
moderada, não esteja refém de alianças com a direita que a descaracterizem.
Aliás, dada a estranha natureza do sistema partidário brasileiro, pode ser
possível que uma fracção centro-direita do PMDB se transfira para o PT e se apresente
com o candidato Lula às eleições presidenciais, cativando, por exemplo, a
vice-presidência. Neste caso, uma chapa PT aparentemente homogénea conteria uma
significativa componente de centro-direita.
A
segunda posição tem sido defendida dentro e fora do PT. Dento do PT o mais
importante porta-voz desta posição é Tarso Genro que foi um dos melhores
ministros do governo da Lula da Silva, foi Governador do Estado do Rio Grando
Sul e prefeito de Porto Alegre no período aureo da articulação entre democracia
representativa e democracia participativa (o orçamento participativo). Em
declarações à imprensa em 14 de janeiro afirma: “Defendo que os demais partidos
de esquerda lancem seus candidatos e que Guilherme Boulos e Manuela D’Ávila
[candidata do PCdoB] são novos quadros, importantes para a reconfiguração de
uma nova frente política no futuro, capaz de hegemonizar um governo de
centro-esquerda, de reformismo forte, como está ocorrendo ou tendendo a ocorrer
em alguns países. Não se sabe até onde poderá ir a experiência portuguesa, por
exemplo, e mesmo qual a sua durabilidade, mas se não ousarmos no sentido de
compor uma esquerda plural, criativa e democrática, com um claro programa de
transição de uma economia liberal rentista, para uma economia com altas taxas de
crescimento e novas formas de inclusão social e produtiva, o futuro da esquerda
será cada vez mais incerto e defensivo”. Curiosamente, do meu conhecimento esta
é a primeira vez que um lider político importante do Brasil se refere à
articulação entre as forças de esquerda em Portugal como um caminho a ter em
conta.
Esta
segunda posição é, sem dúvida, a mais promissora, tanto mais que permite dar
visibilidade ao único líder popular e de esquerda, além de Lula da Silva, que o
Brasil conheceu nos últimos quarenta anos. Trata-se de Guilherme Boulos, jovem
líder do MTST e da Frente Povo Sem Medo. Dado o desgaste da governação PT nos
últimos anos e o golpe institucional que veio bloquear o processo democrático,
a segunda posição, ao contrário da primeira, exclui quaisquer alianças com as
forças de direita.
Em
face disto, parece que as esquerdas brasileiras estão condenadas a articular-se
se quiserem chegar ao poder para realizar um programa de esquerda. Para que tal
suceda, pode ser necessário que as esquerdas estejam fora do poder mais tempo
do que se imagina.
Colômbia:
a fractura da luta armada sob a vigilância do império
A
Colômbia é outro país latino-americano onde haverá eleições presidenciais em
2018 e onde a questão da articulação entre forças de esquerda se coloca com
alguma acuidade. Tal como podia acontecer em Portugal e pode acontecer no
Brasil, a falta de unidade pode significar que o país, qualquer que seja o
sentido global do voto dos colombianos, venha a ser governado por uma direita
neoliberal, hostil ao processo de paz e totalmente subserviente aos interesses
continentais do imperialismo norte-americano.
Entre
os factores que podem inviabilizar ou condicionar fortemente a articulação
entre forças de esquerda distingo dois: o processo de paz e a interferência do
imperialismo norte-americano.
O
processo de paz. No momento em que escrevo (Janeiro de 2018), o processo de paz
está numa perturbadora encruzilhada. Depois de referendado pelo Congresso (com
modificações significativas em relação ao que tinha sido acordado em Havana ao
fim de cinco anos de negociações), o acordo entre o Governo e as FARC (Forças
Armadas Revolucionárias da Colômbia) começou a ser aplicado ao longo de 2017, e
o que se pode dizer deste período é que não há muitas esperanças de que ele
seja cumprido. Aliás, a violência paramilitar contra líderes sociais aumentou
ao longo do ano e, neste momento, mais trinta ex-guerilheiros ou seus
familiares foram assassinados, além de mais de uma centena de líderes sociais.
Entretanto, iniciaram-se as negociações de paz entre o Governo e o ELN
(Exército de Libertação Nacional da Colômbia).
O
Acordo de Havana é um documento notável porque nele se identificam em detalhe
as condições para uma paz democrática, ou seja, uma paz assente na eliminação
das causas sociais, económicas e políticas que levaram ao conflito armado. O
acordo era particularmente detalhado sobre a reforma política e a justiça
transicional. Admitia-se que o pós-conflito colombiano surgia num período de
crise do neoliberalismo e que só teria alguma viabilidade de se transformar num
genuíno processo de paz se, contra a corrente, fosse orientado para consolidar
e ampliar a democracia, isto é, conferindo mais intensidade à convivência
democrática de baixa intensidade atualmente vigente. Depois da fársica
narrativa neoliberal – uma farsa tão trágica para a maioria da população
mundial – de que a democracia não tem condições, o pós-conflito só se
transformaria num processo de paz se aceitasse discutir criativa e
participativamente a questão das condições sociais, económicas e culturais da
democracia.
Pode
dizer-se que a paz democrática foi o projecto explícito que orientou as
negociações. Mas subjacente a ele esteve sempre um projecto implícito que
designei por paz neoliberal. Este projecto não pretendia nenhuma reforma
política ou económica e apenas visava o desarme das forças de guerrilha para
garantir o livre acesso à terra e aos territórios por parte do capitalismo
agrário e minerador nacional e estrangeiro. Tudo parece indicar que este
projecto implícito era afinal o único projecto para o Governo colombiano. Por
sua vez, a direita mais conservadora manifestara-se sempre contra as
negociações com a guerrilha, e a sua força ficou demonstrada nos resultados do
referendo sobre o acordo da paz. Durante um ano assistimos a uma crescente
demonização da guerrilha por parte das forças de direita, em certos sectores do
Estado (Fiscalia) e por parte dos principais meios de comunicação. Esta bem
orquestrada demonização visou retirar aos ex-guerrilheiros qualquer
legitimidade para serem vistos pela sociedade como membros de uma organização
política que não foi militarmente derrotada e que, como tal, deve ser bem-vinda
na sociedade pela sua decisão de abandonar as armas e seguir a sua luta pelas
vias políticas legais.
O
imperialismo norte-americano. A Colômbia ocupa uma posição estratégica no
continente. Quando analisamos a história do conflito armado na Colômbia,
torna-se evidente a interferência constante do imperialismo norte-americano, e
sempre no sentido de defender os interesses económicos das suas empresas
(pense-se na tristemente célebre United Fruit Company), os interesses
geoestratégicos do seu domínio continental e, obviamente, os interesses das
oligarquias colombianas suas aliadas, umas mais dóceis que outras.
A
Colômbia foi o único país latino-americano a enviar tropas para combater ao
lado dos norte-americanos na Guerra da Coreia. Foi a Colômbia quem promoveu a
expulsão de Cuba da Organização dos Estados Americanos (OEA) e, mais
recentemente, foi a Colômbia que, na mesma organização, mais acerrimamente
defendeu a expulsão da Venezuela. Sob o pretexto da luta contra o narcotráfico,
o Plan Colombia, assinado por Bill Clinton em Julho de 2000, transformou a
Colômbia no terceiro país do mundo a receber mais ajuda militar dos EUA (depois
de Israel e Egipto) e no país com mais ajuda para treino militar directo pelos
EUA.
Para
os EUA, agora centrados na asfixia do regime bolivariano da Venezuela, é
importante que a Colômbia continue a ser um aliado fiável para os seus
desígnios no continente. É igualmente importante que as empresas multinacionais
norte-americanas tenham finalmente acesso livre aos recursos naturais da
Colômbia, um acesso que até agora foi limitado devido ao conflito armado. Para
os EUA, o fim do conflito armado é a oportunidade para a Colômbia se entregar
finalmente e sem limites ao neoliberalismo. Finalmente, para os EUA, é benéfico
que o conflito armado continue, mesmo que sob outras formas, para que as forças
armadas colombianas, o agente político mais próximo do império, continuem a ter
um papel crucial nos processos políticos internos.
As
forças de esquerda e o contexto eleitoral. A esquerda ou centro-esquerda
colombiana está fragmentada. As forças de esquerda apresentam os seguintes
candidatos: Clara Lopez, Gustavo Petro, Jorge Robledo, Claudia Lopez, talvez
uma candidata de centro-esquerda, Sergio Fajardo, um candidato de centro que
alguns consideram de centro-esquerda, e dois candidatos de direita, Germán
Vargas Lleras, Iván Duque. Humberto de la Calle Lombana, que foi o negociador
do processo de paz por parte do governo, tem sido mencionado como possível
candidato de esquerda. O novo partido das FARC ainda não se definiu em relação
às eleições presidenciais nem propôs um programa que contribuísse para unificar
as esquerdas. Atravessa um complexo processo de consolidação interna, próprio da
transformação de grupo guerrilheiro em partido político.
Nas
actuais condições, corre-se o risco de serem os dois candidatos de direita a
disputar a segunda volta das eleições presidenciais. Qualquer dele, no máximo,
aceita a paz neoliberal. Ivan Duque, o representante da direita mais
reaccionária, ligada ao ex-presidente Alvaro Uribe, será o que mais fielmente
servirá os interesses imperiais.
Tradicionalmente,
a esquerda colombiana tem estado muito fragmentada. No passado, a grande
clivagem foi entre a esquerda reformista (internamente dividida) e a esquerda
revolucionária, adepta de mudanças radicais por via da luta armada (também ela
dividida entre vários grupos armados). Poderia pensar-se que finalmente surgiu
uma oportunidade histórica para a esquerda colombiana se unir, uma vez que esta
clivagem desapareceu. Infelizmente, tal não parece ser o caso porque o modo
como tem sido implementado o processo de paz mostra que a clivagem afinal
continua de uma forma perversa, no estigma social e político com que estão a
ser marcados os ex-guerrilheiros. Em vez de serem bem-vindos por terem
abandonado as armas, são demonizados por todos os crimes que cometeram, como se
os acordos de paz não tivessem ocorrido, como se nenhum crime tivesse sido
cometido contra eles e como se eles fossem criminosos comuns. A direita formula
esse estigma com o slogan de que os ex-guerrilheiros usurparão o campo
democrático para impor o “castro-chavismo”. O pós-conflito está a ser
reconceptualizado como conflito por outros meios só aparentemente mais
democráticos.
As
diferentes forças de esquerda reformistas temem qualquer associação com as
FARC, agora partido político. Ao fazerem-no, correm o risco de se colocar no
campo da paz neoliberal e, portanto, no campo ideológico da direita. De uma
forma ou outra, as forças de esquerda correm o risco de se renderem à lógica
dos que clamam contra o “castro-chavismo”. Se interiorizarem a ideia de que têm
de “lavar” a imagem da esquerda, de a purificar, mesmo que para isso seja
necessário retocá-la com cores de direita, isso será um caminho de desastre.
Para fugir ao “inferno venezuelano”, podem cair na mais diluída versão da
social-democracia europeia. Se não se unirem, as diferentes forças de esquerda
não poderão realizar um programa de esquerda, mesmo que uma delas conquiste o
poder. Tal como aconteceu no passado, pode mesmo acabar por aliar-se com forças
de direita.
Ao
deixar-se armadilhar na opção entre política-como-dantes ou castro-chavismo, as
forças de esquerda auto-excluem-se do campo em que seria possível a unidade com
base num programa unitário de esquerda. Esse campo incluiria temas como os
seguintes: a defesa do processo de paz entendida como paz democrática; a luta
contra a enorme desigualdade social e os fascismos sociais que ela cria; a
defesa dos processos populares de gestão de terras, de formas de economia
solidária, sobretudo nas regiões mais afectadas pelo conflito armado;
democratização da democracia, aprofundando-a e ampliando-a; reforma do Estado
para o blindar contra a privatização das políticas públicas em consequência da
corrupção e do abuso de poder; um distanciamento, mesmo que gradual, em relação
aos desígnios do imperialismo. Para tudo isto seria necessário que o curto
prazo fosse visto como parte do longo prazo, ou seja, seria necessário um
horizonte político e uma visão de país que não se confina aos cálculos
eleitorais do momento.
Os
candidatos e as candidatas têm vindo a salientar a necessidade de buscar
entendimentos e alianças entre as forças de esquerda. Uma das candidatas, Clara
Lopez, em comunicação pública de 11 de Janeiro de 2018, identificava os pontos
de convergência e de divergência entre as diferentes forças de esquerda e
exortava-as a articularem-se e a negociarem uma agenda comum assente nas
convergências, com vista a construir “uma grande coligação progressista”.
Apresentava um roteiro concreto no caminho da convergência:
“1)
Dentro da tradição pluralista das nossas diversas perspectivas políticas e sem
abandonar as diferenças que caracterizam os nossos ideários, acordamos em
convocar, e maneira conjunta, os nossos concidadãos a voltar a sonhar uma
Colômbia em paz, de prosperidade partilhada, livre de corrupção e amiga da
natureza.
2)
Ao submeter-nos a uma consulta interpartidista no próximo mês de Março,
reconhecemos a liberdade de condução da candidatura que triunfe, dentro do
programa aprovado por uma convenção do partido ou movimento dessa candidatura,
com a participação dos outros sectores da consulta e seus aliados, que
conformarão uma coligação que se compromete a governar a Colômbia dentro do
total compromisso com as instituições, a paz, a democracia, o respeito da diferença
e a transformação social”
E
conclui que estaria disposta a aceitar a fórmula de convergência que reunisse
mais consenso. Se tal não fosse possível, seria candidata. Aparentemente, numa
demonstração que o passado pesa mais que o futuro entre as esquerdas
colombianas, haverá três listas de esquerda às próximas eleições legislativas
de Março: a lista da FARC, a lista de Gustavo Petro e Clara Lopez, e a lista do
Polo Democrático liderada por Jorge Robledo. Avizinha-se a derrota, mais uma
vez, e desta vez pode ser fatal para a presença da esquerda no no Congresso.
Impacto desta divisão nas eleições presidenciais que se seguirão dois meses
depois?
México:
a fractura entre a institucionalidade e a extra-institucionlidade
Se
há país onde a democracia liberal está desacreditada, esse país é o México. Há
muitos outros países em que a democracia é de baixíssima intensidade ou mesmo
uma fachada, mas em que isso é amplamente reconhecido. Mas talvez pela sua
história revolucionária e por durante décadas ter sido governado por um só
partido, o PRI (ou PAN, partido de direita, entre 2000 e 2012), o México é um
caso muito específico a este respeito. Combina um exuberante drama democrático,
sobretudo em períodos eleitorais, com o reconhecimento público e notório de irregularidades,
restrições e exclusões que o distanciam do país real. As críticas às práticas
democráticas vigentes são talvez a forma mais genuína de vivência democrática
no México. O drama mais democrático é o drama da falta de democracia. As
recorrentes fraudes eleitorais, a altíssima criminalidade violenta contra
cidadãos inocentes por parte do crime organizado associado a sectores do
Estado, o sistema eleitoral excludente, a farsa da soberania nacional em face
do servilismo em relação aos EUA, o abandono a que são sujeitos os povos
indígenas, e a repressão militar a que são sujeitos sempre que resistem, tudo
isto revela uma democracia de baixíssima intensidade. Apesar de tudo isto, as
instituições constitucionais funcionam com a normalidade própria de um Estado
de excepção normalizado.
Neste
quadro, e para me limitar ao tema que aqui me interessa, o da articulação ou
unidade entre forças de esquerda, a primeira questão é a de saber se há várias
forças de esquerda no México. Faz parte do drama democrático do México que esta
questão seja altamente controversa. Sabe-se que há várias forças de direita com
vários candidatos presidenciais de direita. Sabe-se também que, tal como
acontece noutros países, as forças de direita têm sido capazes de se unir
sempre que se sentem ameaçadas por forças que consideram ser de esquerda. Onde
estão as forças de esquerda?
Há
que fazer uma primeira distinção que, aliás, só alguns aceitam, entre a
esquerda institucional e a esquerda extra-institucional. A esquerda
institucional são os partidos. Há partidos de esquerda no México? O único
partido com presença nacional que se pode considerar de esquerda é o partido
Morena, liderado por Andrés Lopez Obrador (conhecido por AMLO), várias vezes
candidato à presidência da República e que nas eleições de 2012, tal como nas
de 2006, terá sido provavelmente vítima de fraude eleitoral.
Dando
alguma credibilidade ao dito que se ouve frequentemente que o México está muito
longe de Deus e muito próximo dos EUA, convém saber o que pensa o império a
este respeito. E o império não tem dúvidas de que AMLO é o perigoso demagogo de
esquerda, líder de um partido socialista que se recusa a ver os benefícios
enormes que o neoliberalismo trouxe ao país depois do Tratado de Livre
Comércio. Um dos principais porta-vozes do império, o Wall Street Journal, não
tem dúvidas a este respeito e, na edição de 8 de Janeiro de 2018, considera
pouco convincente a posição política mais moderada que AMLO tem vindo a
defender, salientando sobretudo a luta contra a corrupção. Considera chocante
que AMLO tenha proposto em Dezembro passado a amnistia para o crime organizado,
e conclui duvidando que os eleitores mexicanos acreditem na recente moderação
deste “demagogo leftista”.
Concorde-se
ou não com o diagnóstico do império, a verdade é que o império teme a eleição
de AMLO. Como o império não faz este diagnóstico preocupado com o bem-estar dos
mexicanos, mas antes preocupado com a protecção dos seus interesses, e como
considero que esses interesses são contrários aos interesses da grande maioria
dos mexicanos, isso é suficiente para assumir que AMLO representa uma força de
esquerda. Para o argumento que defendo é sobretudo importante saber se ele
poderá levar a cabo um programa de esquerda no caso de ser eleito. Tenho vindo
a defender que só uma ampla unidade entre forças de esquerda pode garantir tal
objectivo. Esta mesma posição tem sido defendida no México, mesmo
reconhecendo-se que, tal como acontece noutros países, as forças de esquerda
têm tido uma forte tendência para polarizar as suas divergências, as quais
muitas vezes expressam mais choques de personalidades do que choques
programáticos. Infelizmente, não parece estar no horizonte de AMLO realizar
articulações com outras forças de esquerda eventualmente existentes. Pelo
contrário, o que se prefigura é, entre outras, uma coligação com um partido
conservador, PES (Partido del Encuentro Social), um partido com forte
componente religiosa evangélica, militantemente oposto à diversidade sexual, à
proteção de minorias sexuais e à descriminalização do aborto. Algumas
feministas têm-se insurgido contra a ideia de que os fins justificam os meios e
que o importante é ganhar as eleições. Aceitam articulações, mas não a cedência
em princípios e conquistas sociais em resultado de duras lutas.
Parece,
pois, poder concluir-se que não se afigura possível, por agora pelo menos, uma
articulação entre forças de esquerda institucionais no México. Mas, como disse
atrás, uma das características mais específicas do drama democrático mexicano é
ele não se poder entender sem a distinção entre esquerda institucional e a
esquerda extra-institucional. Pelo menos desde 1994, a esquerda institucional
mexicana vive assombrada pelo espectro da emergência de uma esquerda insubmissa
e insurrecional, uma esquerda que se coloca fora do sistema das instituições
democráticas precisamente por não as considerar democráticas. Refiro-me ao
movimento zapatista do EZLN e ao seu levantamento em armas em Janeiro daquele
ano. O levantamento que foi armado num breve período inicial de doze dias, em
breve se transformou num vibrante movimento com forte implantação no sul do
México, que progressivamente foi conquistando aderentes em todo o território
mexicano e em diferentes países do mundo. Com grande criatividade discursiva,
em que brilhou o Sub-comandante Marcos, e com múltiplas iniciativas que foram
dando visibilidade crescente ao movimento, os zapatistas têm vindo a defender
uma alternativa anti-capitalista, anti-colonialista e anti-patriarcal, assente
na auto-organização dos grupos sociais oprimidos, uma organização construída de
baixo para cima e governada democraticamente segundo o princípio de “mandar
obedecendo” dos povos indígenas das montanhas de Chiapas. Ao longo dos anos, os
zapatistas assumiram consistentemente esses princípios e foram surpreendendo o
México e o mundo com novas formas de organização comunitária, ancoradas em
princípios ancestrais, com iniciativas transformadoras de governo, de economia,
de formação e de educação. Nesse processo, as mulheres foram assumindo um
protagonismo crescente.
À
medida que foi conquistando adeptos, a postura extra-institucional dos
zapatistas começou a ser vista pela esquerda institucional como uma ameaça. A
sua recusa em apoiar candidatos ou partidos de esquerda nos processos
eleitorais foi considerada pela esquerda como uma postura que favorecia a
direita. Ao longo dos anos, as relações dos zapatistas com as instituições do
Estado mexicano foram complexas e nem sempre de confrontação. Pouco tempo
depois de terem abandonado as armas, os zapatistas entraram em negociações com
o governo com o objectivo de verem reconhecidas as reivindicações dos povos
indígenas. Em Fevereiro de 1996 foram assinados os acordos que ficaram
conhecidos por Acuerdos de San Andrés, por terem sido assinados no povoado San
Andrés Larrainzar de Chiapas. Tais acordos nunca foram cumpridos e isso passou
a constituir para os zapatistas mais uma demonstração da falta de credibilidade
das instituições ditas democráticas.
Em
tempos recentes, uma nova iniciativa dos zapatistas voltou a surpreender os
mexicanos: a decisão de apresentar uma mulher indígena como candidata
independente às próximas eleições presidenciais. Trata-se de Marichuy, que
fundou e dirige a Calli Tecolhocuateca Tochan, “Casa de los Antepasados”, em
Tuxpan, Jalisco. Em 2001 foi uma das mulheres indígenas que, juntamente com a
comandante Esther do EZLN, tomou a palavra no Congresso mexicano. Por
iniciativa dos zapatistas e do Congresso Nacional Indígena, a proposta foi
feita pelo Conselho Indígena de Governo. Em 15 de Outubro de 2017, Marichuy
anunciava oficialmente a sua candidatura. Significava isto que a esquerda
zapatista abandonara a via extra-institucional e passara a adoptar a
institucional? Se isso acontecera, seria a proposta dos zapatistas uma proposta
de esquerda que se podia vir a articular ou coligar com outras forças de
esquerda?
Estas
perguntas faziam sentido na fase inicial da candidatura quando se iniciou o
movimento para recolher o numero de assinaturas exigidas pelo Instituto
Nacional Eleitoral para a apresentação de candidatos independentes. Tal
movimento revelava a seriedade institucional do processo. Os zapatistas
chegaram mesmo a ser acusados de se terem rendido ao “eleitoralismo” que tanto
tinham criticado. A verdade é que o processo de recolha de assinaturas se
iniciou com determinação. Era um esforço gigantesco, já que o número de
assinaturas exigido era elevadíssimo, mais de 800.000 assinaturas. Em breve se
verificou que as regras e exigências, mesmo que feitas de boa-fé, o que foi
questionado, estavam concebidas para um México “oficial”, muito diferente do
México “profundo”, onde a documentação e a infraestrutura técnica (de
fotocopiadoras a telemóveis) ou não existem ou não são facilmente disponíveis.
Deste modo, o processo de recolha de assinaturas transformou-se em mais uma
prova do carácter excludente e discriminatório do sistema eleitoral mexicano.
Depois dos Acuerdos de San Andrés, esta era a segunda vez que as instituições
do Estado mexicano revelavam o seu carácter não confiável, excludente e
discriminatório. Também se deve ter em mente que a recolha das assinaturas pode
estar a ser afectada por duas razões adicionais. Por um lado, as bases sociais
do zapatismo e os seus simpatizantes foram socializadas para se distanciarem
totalmente dos processos eleitorais. A recolha de assinaturas implica para eles
alguma cedência. Por outro lado, alguns que simpatizam com a causa dos povos
indígenas estão interessados em que a posição do candidato de esquerda que
apoiam seja fragilizada pela presença de uma candidatura à sua esquerda.
No
momento em que escrevo, Marichuy continua a sua campanha, como campanha de
denúncia do sistema político e institucional e de sensibilização para as causas
dos “condenados da terra”. Aproveitando um contexto político institucional por
excelência, o contexto eleitoral, Marichuy vai fazendo a pedagogia dos temas e
dos povos que estão excluídos do drama democrático do México. Só por isso, a
candidatura de Marichuy não terá sido um fracasso.
De
tudo se conclui que, por agora, pelo menos, não são possíveis amplos acordos
entre as esquerdas no México. A esquerda institucional vai continuar dividida
como antes e a fractura entre a esquerda institucional e a extra-institucional
apenas se agrava.
Espanha:
a fractura da identidade nacional
Em
Espanha a esquerda-esquerda passou em tempos recentes por um momento
excepcionalmente auspicioso. No embalo do movimento dos indignados (mais
conhecido em Espanha como 15M), aproveitando a insatisfação dos espanhóis com
um governo conservador massivamente corrupto (PP, Partido Popular) e a falência
de uma alternativa por parte do Partido Socialista (PSOE), ele próprio
desgastado por uma governação refém do neoliberalismo, nasceu um novo partido
de esquerda, o Podemos. Surgiu como uma fulguração política em 2014 e teve um
êxito surpreendente nas primeiras eleições a que concorreu, elegendo cinco
deputados no Parlamento Europeu. Para além de ser um novo partido, era um
partido de tipo novo, com uma relação orgânica com o movimento social de que
emergira (o movimento dos indignados). Era também um partido novo por ser muito
jovem toda a sua liderança. Anunciava-se o fim do bipartidismo, que emergiu com
a transição para a democracia consagrada na Constituição de 1978, a alternância
entre o PP e o PSOE, com o antigo Partido Comunista, mais tarde Izquierda
Unida, reduzido a uma existência muito modesta.
Podemos
foi a resposta daqueles e daquelas que no movimento dos indignados defendiam
que o movimento das ruas e das praças devia prolongar-se no plano
institucional, transformando-se em partido. Apesar de adoptar a luta
institucional, Podemos apresentou-se como o partido anti-regime da transição
com o argumento de que esse regime tinha dado origem a uma elite ou casta política
e económica que desde então se expressava politicamente na alternância entre os
dois partidos do regime (PP e PSOE), uma alternância sem alternativa. As
posições iniciais do partido levaram alguns a pensar, erradamente a meu ver,
que se estava perante um novo populismo de esquerda que opunha a casta ao povo.
Dizia-se, aliás, que dicotomia esquerda/direita não captava a novidade e a
riqueza programática e organizacional do partido, que era necessária uma “nova”
maneira de fazer política, oposta à “velha” política. Por se tratar de um
partido novo, as bases organizativas do partido eram frágeis, mas essa
fragilidade era compensada com o entusiasmo dos militantes e simpatizantes.
Os
difíceis caminhos da articulação entre as esquerdas. Nestas condições, não era
de esperar qualquer aproximação ou articulação entre as esquerdas, nomeadamente
com a Izquierda Unida e o PSOE. Aliás, a grande maioria dos adeptos do Podemos
não considerava que o PSOE fosse um partido de esquerda em face das cedências
que os sociais democratas tinham feio ao neoliberalismo da UE. Estávamos em
período de medir forças e esse processo era particularmente decisivo para o
Podemos. As primeiras “medições” não poderiam ser melhores. Nascido em Janeiro
de 2014, as sondagens de opinião no final de 2015 mostravam que Podemos era o
segundo partido nas intenções de voto dos espanhóis, depois do PP e à frente do
PSOE. As primeiras iniciativas de acordo eleitoral entre forças de esquerda
vieram da Izquierda Unida, liderada por outro jovem, Alberto Garzón, depois das
eleições autonómicas de 2015. Eram os primeiros sinais no sentido de unir as
diferentes forças de esquerda com vista a conquistar o poder. Entretanto,
Podemos decidiu, por meio de consulta interna, que quaisquer acordos ou
coligações com outras forças de esquerda deviam conter o nome Podemos. Assim
foram surgindo os primeiros acordos a nível autonómico: “Compromís-Podemos-És
el Moment” na Comunidade Valenciana, “Podemos-En Marea-ANOVA-EU” na Galiza e
“En Comun Podem” na Catalunha. E a nível nacional surgiu a coligação “Unidos
Podemos”, antes das eleições legislativas de Junho de 2016 a que se juntou
também o grupo ecologista Equo.
As
eleições de 2016 foram o primeiro sinal que o trajecto ascendente de Podemos
não era algo irreversível. A campanha de Podemos foi toda orientada para
ultrapassar o PSOE como grande partido de oposição. Esse objectivo ficou longe
de ser obtido, tendo o PSOE obtido 22% dos votos e o Unidos Podemos apenas 13%.
Depois da forte crispação inicial entre Podemos e PSOE, tinha havido algumas
conversações entre os dois partidos no sentido de provocar a queda do governo
conservador, mas nada foi concretizado. Os resultados das eleições foram também
fracos para o PSOE, uma vez que se esperava que capitalizasse no desgaste da
governação do PP. Em face disso, as divisões no interior do partido
agravaram-se e Pedro Sánchez renunciou ao cargo de secretário geral em Outubro
de 2016 depois de ser derrotado num turbulento Comité Federal. Nesse mesmo mês,
o PSOE possibilitava, por meio da abstenção, a investidura do novo governo do
PP, liderado por Mariano Rajoy. A líder regional Susana Dias, discípula
política de Felipe González, voltou a vincar a política centrista do partido e
viabilizou por abstenção a investidura do novo governo do PP. Numa demonstração
de enorme tenacidade política, Pedro Sánchez aproveitou as alterações
estatutárias que previam a eleição directa do secretário-geral em eleições
primárias e voltou a conquistar a liderança do partido no 39 Congresso do PSOE
em Maio de 2017. As relações entre os dois partidos melhoraram
significativamente quando Pedro Sánchez retomou a liderança do partido.
Sob
a sempre presente influência do fundador do partido, Felipe González, uma forte
corrente dentro do PSOE, recusava como matéria de princípio qualquer aliança
com o Podemos e, pelo contrário, defendia o entendimento com os partidos de
direita (como Ciudadanos, um partido de direita liberal nascido na Catalunha e
hoje presente no conjunto do Estado espanhol com o apoio de alguns sectores
importantes dos media e de interesses económicos poderosos), de modo a garantir
a continuação do pacto de governação e da política da alternância que vinha
desde a Transição. Era a reprodução da política convencional da social
democracia europeia construída na Guerra fria e que continuara depois da queda
do Muro de Berlim, política a que, como vimos, o Partido Socialista português
pôs fim no final de 2015. No entanto, o regresso de Pedro Sánchez revelava que
a militância socialista estava dividida a este respeito, alguma por acreditar
que sem uma unidade entre as forças de esquerda esta nunca mais voltaria ao
poder, outra por pensar que sem uma viragem à esquerda que permitisse recuperar
os votos que tinham feito crescer o Podemos o PSOE nunca mais poderia voltar ao
poder.
Estavam
criadas as condições para se reiniciarem as conversações de confluência entre o
PSOE e o Podemos. Da parte do Podemos havia agora uma motivação muito mais
intensa para uma articulação com toda a esquerda. Falava-se da solução
portuguesa, reconhecia-se que as transições democráticas nos dois países tinham
sido diferentes, mas considerava-se que para tentar mudar a política neoliberal
europeia era crucial que a Espanha, a quinta maior economia da UE, passasse a
ter um governo de esquerda. Pedro Sánchez teve vários encontros com o
primeiro-ministro socialista português e consta que discutiram a coligação
portuguesa. Da parte de Unidos Podemos havia contactos, quer com o Bloco de
Esquerda quer com o Partido Comunista Português.
No
novo ciclo de contactos entre o Podemos e o PSOE tratava-se de articular
reformas políticas, construir acordos programáticos e, a prazo, promover um
governo de esquerda que pusesse fim aos anos neoliberais e corruptos da
governação PP. Os sinais facilitadores da confluência estavam dados e vinham de
ambos os lados. O PSOE declarava que o Podemos era “um parceiro preferencial”
ou que o grande objectivo era “um entendimento de esquerda no país”.
A
crise da Catalunha. Estávamos em Junho de 2017. Poucos meses depois, estala a
crise da Catalunha, e as divergências entre os dois partidos em relação à
Catalunha fizeram colapsar as conversações e objectivo dos acordos de
governação. Aliás, o desenrolar da crise mostrou que, apesar de se terem
afastado, os dois partidos foram ambos negativamente afectados pelo modo como
se posicionaram perante a crise.
Para
os que não sabem o que é a crise da Catalunha, eis um breve resumo: A Catalunha
tem uma identidade nacional forte e historicamente enraizada, tal como outras
regiões de Espanha, nomeadamente, o País Basco, a Galiza; essa identidade foi
muito reprimida pela ditadura franquista; depois da transição democrática em
1978 foi reconhecida a identidade catalã e a sua autonomia no âmbito do Estado
espanhol; ao longo das últimas décadas, os catalães lutaram pelas vias
institucionais para que o estatuto de autonomia fosse ampliado; em 2006
aceitaram o novo Estatuto de Autonomía pactuado com o governo central, mas esse
estatuto foi anulado pelo Tribunal Constitucional; desde então, as relações
entre Madrid e Barcelona crisparam-se; entretanto, o partido nacionalista e
conservador que governara durante muito tempo a Catalunha, politicamente muito
próximo do PP, passou a defender a independência como única via para a Catalunha
ver reconhecida a sua identidade e vontade de auto-governo; o objectivo da
independência passou então a ter dois braços políticos, um braço de direita e
um braço de esquerda, sendo que neste último tinham militado republicanos que
nunca se tinham reconhecido na monarquia borbónica (antepassados do actual
rei), que no século XVIII derrotara os independentistas catalães; a 1 de
Outubro o governo catalão realiza um referendo, considerado ilegal pelo Governo
central de Madrid, para conhecer a vontade dos catalães a respeito da
independência; o Governo central tenta travar a realização do referendo pela
via judicial e policial, mas, apesar das intimidações e repressões, o referendo
realiza-se e a maioria dos que expressaram ao seu voto votaram a favor da independência;
poucos dias depois o Governo da Catalunha declara unilateralmente a
independência; o Governo de Madrid reage, acionando o art. 155 da Constituição
que declara o estado de emergência na Catalunha; suspende o governo autonómico,
manda prender os dirigentes políticos e convoca eleições na Catalunha para 21
de Dezembro com o objectivo de eleger um novo governo; o líder do governo
catalão, suspenso pelo Governo central da Madrid, Carles Puigdemont, exila-se
na Bélgica e a partir de Bruxelas procura o apoio dos países europeus para a
causa catalã, apoio que é recusado; as eleições catalãs têm lugar e os partidos
independentistas voltam a ganhar as eleições; tanto o PSOE como o Podemos (que
se apresentou a eleições numa coligação de várias forças de esquerda designada
Catalunya en Comú) saem derrotados nas eleições e a derrota do Podemos é
particularmente preocupante para o partido pelas repercussões que pode ter fora
da Catalunha; a coligação que governara antes a Catalunha (constituída por um
partido de direita, o maior, e dois partidos de esquerda, um de esquerda
moderada e outro de esquerda-esquerda) volta a posicionar-se para governar. No
momento em que escrevo (15 de Janeiro), o futuro político da Catalunha é uma
complexa incógnita.
Por
que razão veio a crise da Catalunha bloquear um acordo entre as esquerdas
considerado fundamental para pôr termo à governação conservadora, um objectivo
partilhado pela maioria dos espanhóis? Afinal, ambos os partidos se
manifestaram contra o referendo unilateralmente decidido pelos catalães e ambos
os partidos defenderam a ideia de um Estado plurinacional com vista à
constituição eventual de um Estado federal ou confederal; ambos os partidos se
manifestaram contra a independência da Catalunha, mas Podemos foi particularmente
enfático em que esse objectivo devia ser construído consensualmente com os
catalães e não assentar em repressões judiciais e policiais. Defendeu o direito
a decidir dos catalães, baseado num referendo pactuado com o conjunto do Estado
espanhol.
Mas
as divergências entre os dois partidos agravaram-se entretanto. A crise da
Catalunha levou o PSOE, ao contrário do Podemos, a recuar na defesa da
plurinacionalidade do Estado espanhol. A plurinacionalidade (a Espanha como
“nação de nações”) tinha sido reconhecida no 39 Congresso do partido que
reelegeu Pedro Sánchez como secretário-geral. Posteriormente, porém, a
plurinacionalidade foi eliminada como eixo central da proposta do partido de
reforma constitucional. Os dois partidos divergiram fortemente no accionar do
artigo 155 da Constituição e na repressão jurídico-judicial em que este se
traduziu. O PSOE manifestou-se a favor da declaração do estado de emergência e,
de facto, acordou com o PP o accionar do dispositivo constitucional. Na
perspectiva do Podemos, com esta decisão, o PSOE voltava a ser um dos partidos
do regime contra o qual surgira o Podemos e, por isso, as negociações entre os
dois partidos deviam ser suspensas. Da parte do PSOE o afastamento foi
correspondente.
As
esquerdas e a identidade nacional. Por que é que a crise da Catalunha pode ser
particularmente negativa para o Podemos? Se nos restringirmos à Catalunha, os
danos não parecem duradouros. A posição da aliança em que se integrava o
Podemos era a posição aparentemente moderada do fortalecimento da autonomia
pelas vias legais e constitucionais. Mas seria essa a posição das bases catalãs
do partido? Estariam todas com o partido quando este afirmava o direito a
decidir e ao mesmo tempo insistia que a independência não era uma boa solução,
nem para a Catalunha nem para Espanha? Defender o direito a decidir não
implicaria o dever de aceitar o que fosse decidido? Porquê insistir tanto na
ilegalidade do referendum quando a esmagadora maioria dos catalães defendia o
direito incondicional de decidir, ainda que estivessem divididos quase pela
metade sobre o objectivo da independência?
Que
havia divergências, isso tornou-se evidente quando o dirigente catalão do
Podemos se declarou a favor de aceitar o resultado das eleições de Dezembro e,
portanto, a independência, e foi prontamente demitido pela direção nacional do
partido. De todo o modo, em contextos de forte polarização é normal que os
partidos que defendem posições mais moderadas sejam punidos pelos eleitores,
mas essa situação não perdura quando a polarização se atenua, o que pode
ocorrer se tivermos em mente que o independentismo não teve uma vitória
esmagadora, antes pelo contrário, e que tanto o extremo da independência como o
extremo do centralismo (o partido conservador Ciudadanos) foram os vencedores
das eleições.
Se
tivermos em consideração a Espanha no seu conjunto, a razão da vulnerabilidade
acrescida do Podemos depois da crise da Catalunha reside em que a identidade
nacional na Espanha não é, ao contrário de outros países, uma bandeira
inequivocamente de direita. É uma bandeira de muitos dos movimentos de cidadãos
e cidadãs de esquerda que se coligaram com o Podemos nas diferentes regiões
autonómicas. Para elas, era importante que Podemos distinguisse entre
legalidade e legitimidade no caso do referendum dos catalães e estivesse
inequivocamente ao lado dos catalães que desafiavam o centralismo conservador
de Madrid para exercer o direito mais básico da democracia, o direito de votar.
Só assim faria sentido que fosse considerada genuína a oposição do partido à
declaração unilateral de independência em resultado do referendo de 1 de
Outubro, uma declaração que, no entanto, foi imediatamente suspensa como sinal
de oferta de diálogo e solicitação de mediação internacional. Ficou a dúvida
nestas bases sobre de que lado estaria Podemos em futuros confrontos de outras
regiões com o centralismo de Madrid.
Terá
a liderança de Podemos sido insensível à complexidade da questão da identidade
nacional em Espanha? As novas lideranças da esquerda-esquerda europeia, não só
na Espanha como noutros países, foram treinadas para desconfiar de todos os
nacionalismos, uma vez que na Europa eles foram sempre conservadores e
estiveram na origem dos maiores crimes. Foram igualmente treinadas para dar
toda a prioridade às políticas de classe, ainda que nos períodos mais recentes
complementadas com políticas anti-patriarcais e anti-raciais. Acresce que na
Catalunha a independência veio a ser empunhada como bandeira por uma direita
que durante décadas tinha sido servil ao Governo central e, enquanto Governo
autonómico, tinha aplicado com zelo as políticas neoliberais contra os trabalhadores
catalães.
Qualquer
destas duas vertentes do treino tem de ser reavaliada nos próximos tempos, não
só em Espanha como em muitos outros países. Para isso, as esquerdas europeias
têm de aprender com o Sul Global. No que respeita ao nacionalismo, este foi nos
contextos coloniais extra-europeus um objectivo politicamente muito mais
complexo. Foi a bandeira dos povos oprimidos entre os quais havia obviamente
diferenças de classe, de etnia e outras. Daí que se tenha distinguido entre o
nacionalismo dos fracos ou oprimidos e o nacionalismo dos fortes ou opressores.
Mas, mesmo na Europa, essa complexidade existiu historicamente. Com referência
à Galiza e às diferentes nações no interior do Estado espanhol, Xosé Manuel
Beiras fala de “nacionalismos periféricos”. A Andaluzia foi talvez o primeiro
território da Europa a ser tratado como colónia depois da mal chamada
Reconquista. As formas coloniais de administração e de concentração de terras
foram experimentadas na Andaluzia antes de serem aplicadas no Novo Mundo, como
têm insistido os estudiosos andaluzes. Daí, o conceito de colonialismo interno
que tanto se pode aplicar em contexto latino-americano como em contexto
europeu. As novas lideranças de esquerda europeia nunca puderam aprender nas
escolas e nas universidades que a história dos seus países incluía colonialismo
interno e que havia vários tipos de nacionalismo tanto no mundo como na própria
Europa.
Por
outro lado, no que respeita à prioridade da política de classe, haverá que
haver no futuro uma profunda reflexão. Tenho defendido que a dominação moderna
é constituída desde o século XVI por três modos principais de dominação: o
capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Desde as suas origens, estes três
modos de dominação sempre actuaram articulados até hoje. As épocas e os
contextos sociais de cada país distinguem-se pelo modo específico de
articulação entre os diferentes modos de dominação que prevalece. O
colonialismo não terminou com o fim do colonialismo histórico. Continua hoje
sob outras formas, como o colonialismo interno, o racismo, a xenofobia e a
islamofobia.
A
luta contra a dominação tem igualmente de ser articulada e contemplar as três
vertentes, mesmo que as ênfases e as urgências obriguem a dar mais prioridade a
uma ou outra. Mas as três têm de estar sempre contempladas pela simples razão
que em certos contextos as lutas assumem versões mutantes. Por exemplo, uma
reivindicação de classe pode afirmar-se sob a forma de reivindicação de
identidade nacional, e vice-versa. Portanto, as forças políticas que têm êxito
são as que estão mais atentas a este carácter mutante das lutas sociais. Penso
que este terá sido o caso da Catalunha. Em Espanha, as identidades nacionais
são transclassistas e não podem ser minimizadas pelas forças de esquerda por
esse facto. Estas têm antes de lutar com as contradições para fazer funcionar o
transclassismo a favor de uma política progressista que fortaleça as posições e
os interesses das classes subalternas, populares. A crise da Catalunha revelou
que a “questão nacional” de Espanha só se resolve com uma ruptura democrática
com o regime actual, o que pressupõe uma nova Constituição.
O
Unidos Podemos está muito a tempo de fazer a reflexão a este respeito e espero
que o mesmo ocorra no PSOE. Se ela tiver lugar, voltará a ser possível pensar
numa unidade entre as forças de esquerda consistente que inclua partidos e
movimentos. Sem ela, as esquerdas espanholas nunca chegarão ao poder com um
programa de esquerda, o que é mau para a Espanha e para a Europa.
Coda
As
questões tratadas neste texto estão presentes noutros contextos ainda que com
outros matizes e outras composições. Entre muitas outras condições que podem
afectar a unidade das esquerdas em contextos pré-eleitorais, identifiquei
algumas, vinculando-as a países específicos, tomando em conta que todas elas
ocorrem num contexto comum, a virulência da governação fascizante neoliberal da
direita conservadora que ilustrei com o caso de Portugal. As condições que
considerei terem um valor explicativo especial em cada país foram: a fractura
do desgaste da governação (Brasil), a fractura da luta armada sob a vigilância
do império (Colômbia), a fractura entre a institucionalidade e a
extra-institucionlidade (México), a fractura da identidade nacional (Espanha).
Tratou-se de identificar condições dominantes bem consciente que para alem
delas estariam presentes outras. Por sua vez qualquer destas condições
analisadas pode estar presente noutros países e contextos e assumindo
configurações diferentes. Por exemplo, a fractura do desgaste da governação
pode estar presente na Itália com o desgaste socio-liberal do Partido
Democrático que em parte está na origem da emergência e crescimento de um
partido anti-sistema a Cinco Stelle de Beppe Grillo. O mesmo se pode dizer da
França depois da desastrosa governação do Partido Socialista liderado por
François Hollande, uma tentativa tardia de se submeter à ordem neoliberal. Ou
do desgaste da longa governação do partido do Congresso na Índia que levou à
criação de outro partido identificado como sendo de esquerda, o AAP (partido do
homem comum), tendo como lema central a luta contra a corrupção. Esse desgaste
acabou por abrir o caminho à conquista do poder pelo BJP, liderado por Modi, um
partido conservador fascizante que combina a subserviência ao credo neoliberal
com a politização do Hinduismo, transformando-o num instrumento de
discriminação contra os muçulmanos. A fractura do desgaste da governação está
também certamente presente em vários paíes africanos, sobretudo tendo em mente
que têm sido submetidos com particular violência às imposições do
neoliberalismo e do capital financeiro. É, por exemplo, o caso ANC na Africa do
Sul. O desgaste da governação tem levado ao surgimento de outras forças
políticas ao mesmo tempo que se agravam as divisões internas no ANC. Em parte
pelas mesmas razões de contexto internacional podemos ainda detectar o efeito
do desgaste da governação em países como Moçambique e Angola onde continuam a
governar os partidos que lideraram as lutas de libertação contra o colonialismo
português.
Por
sua vez a fractura da luta armada condiciona as possibilidades de articulação
entre as forças de esquerda na Turquia ( a questão curda), na Índia (os
naxalitas) e nas Filipinas (as lutas étnicas e muçulmanas). O Sri Lanka foi
durante muito tempo um país politicamente condicionado pela luta armada dos
Tamil. A fractura da institucionalidade/extra-institucionalidade está presente
na Tunisia, na Argentina, no Peru e faz emergir a distinção proposta pelos
zapatistas entre izquierda de abajo e izquerda de arriba. Por último, a
fractura da identidade nacional surge de formas muitos distintas (discriminação
racial, xenofobia, internamento indigno de refugiados, etc) em muitos países da
Europa devido à herança colonial criando multiplos obstáculos às articulações
entre forças de esquerda. São, por exemplo, os casos da Alemanha, Inglaterra e
Holanda. E o mesmo sucede com Bernie Sanders e outras forças de esquerda na
sombra do partido democrático norte-americano, e importância relativa que dão à
discriminação e a violência policial contra a população afro-americana.
Deve
ainda ter-se em mente que por vezes as condições aqui analisadas não afectam
apenas as possibilidades de articulação entre forças de esquerda. Provocam
divisões no interior da mesma força de esquerda, tornando ainda mais difícil
qualquer política de alianças. É o caso do Partido Trabalhista inglês que em
tempos recentes sofreu uma forte convulsão interna de que ainda se não
recuperou plenamente.
Conclusão
Frequentemente,
apelamos para a necessidade de fazer análises concretas de situações concretas,
mas a verdade é que raramente concretizamos. As diferentes forças de esquerda
devem continuar a afirmar a sua diversidade e a analisar a sociedade com uma
visão de médio e longo prazo. O tema abordado neste texto visa responder a um
contexto específico, um contexto em que as forças de esquerda têm de ser
simultaneamente mais humildes e mais ambiciosas. Têm de ser mais humildes,
porque têm de operar num mundo onde o objectivo de construir um sistema
globalmente alternativo ao capitalismo, ao colonialismo e ao patriarcado não
está na agenda política. Esta ausência cria um vazio que por agora só parece
poder ser preenchido por alternativas locais e iniciativas que prefigurem uma
sociedade alternativa. Mas têm de ser mais ambiciosas porque, tal como estão as
coisas, só as esquerdas podem salvar a humanidade dos efeitos mais destrutivos
e do imenso sofrimento humano decorrentes de uma catástrofe social e ambiental,
que não parece estar longe.
Essa
defesa consiste na defesa da dignidade humana e da dignidade da natureza por
via da radicalização da democracia, uma democracia de alta intensidade,
necessariamente pós-liberal. Será um processo histórico longo, caracterizado
por dois princípios-guia: revolucionar a democracia e democratizar a revolução.
Ao ponto a que chegámos no fim da nova (des)ordem neoliberal iniciada em 1989,
é necessário começar com pequenos passos. O contexto é de fascismo social e
político difuso. Mesmo assim, o processo de radicalização enfrenta duas grandes
dificuldades.
A
primeira é que tem de começar com a democracia liberal, mas não pode terminar
nela. Tem de a levar a sério e envolver-se a fundo nela sem se deixar corromper
por ela. Tem de a defender até ao ponto de convencer públicos amplos que a
democracia não pode ser defendida se não adoptar mecanismos e ampliar os campos
democráticos muito para além dos limites da democracia liberal. As esquerdas
sempre se colocaram no avesso da democracia liberal para denunciar os limites,
as mentiras e as exclusões ocultas pelo lado direito desta. Hoje sentem-se
chamadas a actuar no lado direito da democracia liberal, mas sabem que estarão
perdidas no momento em que perderem de vista as realidades do lado avesso.
A
segunda dificuldade consiste em que as esquerdas têm de operar simultaneamente
no curto e no longo prazo, o que vai contra toda a lógica da democracia
liberal, uma lógica que foi demasiado interiorizada por muitas forças de
esquerda. A razão porque se afirma com frequência e com alguma verdade que a
direita identifica melhor os seus interesses do que a esquerda é porque, ao
contrário da esquerda, a direita, tal como o capitalismo, só pode ver e só tem
de ver o curto prazo e no curto prazo é sempre mais fácil identificar ganhos e
perdas.
No
final desta reflexão, talvez seja possível responder a uma intrigante questão:
porque é que os partidos de esquerda, que durante décadas foram muito críticos
de democracia liberal, são hoje os seus melhores e mais genuínos defensores? E
por que o fazem no momento em que a falência da democracia liberal parece
evidente? A resposta é esta. O neoliberalismo e o capital financeiro global são
inimigos da democracia, seja ela de alta ou de baixa intensidade, e as forças
de direita que optarem por seguir os ditames deles terão de optar cada vez mais
por políticas anti-democráticas. Na medida em que a direita se consolidar no
poder, a democracia será descaracterizada a tal ponto que o novo regime
político, ainda sem nome, será uma nova forma de ditadura sob fachada
democrática. Ora as esquerdas sempre estiveram na linha da frente da luta
contra as ditaduras, e a luta anti-fascista foi o objectivo em que mais
facilmente se coligaram. As esquerdas começaram a perceber que a democracia está
a ser sequestrada por forças anti-democráticas e que quando isso ocorre o
fascismo não está longe, se é que não está já entre nós. Esta sensação de
perigo iminente é o que melhor explica a nova vontade de articulação entre as
forças de esquerda.
E
tal como os inimigos da democracia actuam globalmente, será crucial que as
forças de esquerda se articulem não só no plano nacional como também
globalmente. O socialismo como democracia sem fim poderia ser o lema de uma
nova internacional das esquerdas. De todo o modo, a nova internacional, ao
contrário das anteriores, não visaria criar nenhuma organização nem muito menos
definir a linha política correcta. Visaria apenas criar um fórum onde as
esquerdas de todo o mundo pudessem aprender umas com as outras os tipos de
obstáculos que surgem quando se procura articular lutas e juntar forças, em que
contextos essa articulação pode ser desejável e quais os resultados quando tal
articulação ou unidade não ocorre. Neste sentido, é possível acordar no slogan:
Esquerdas
de todo o mundo, uni-vos!
https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Unidade-das-Esquerdas-Quando-Por-que-Como-Para-que-/4/40099
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