Desde
o ano 1918 até 1930, Gorki esteve em todas as listas de concorrentes ao Prêmio
Nobel de Literatura, sem, injustamente, jamais ter sido agraciado com o mesmo.
Nesses anos tornara-se um legítimo sucessor de Tolstoi e Dostoievski, sendo
então o escritor mais amado de toda a Rússia e de boa parte do mundo europeu.
Aquele
que já nasceu poeta antes mesmo de aprender a escrever corretamente, faleceu
aos 66 anos de uma maneira que até hoje permanece um mistério: tratou-se de
morte natural ou foi assassinato?
Gorki
morreu nos arredores de Moscou, na mesma casa onde doze anos antes morrera
Lênin. O corpo foi sepultado com todas as honras na Praça Vermelha, junto ao
mausoléu do dirigente comunista. O laudo médico acusou: pneumonia.
Dois
anos após, entretanto, a Promotoria de Justiça acusou “agentes de Trotski e
fascistas” de terem envenenado o escritor-símbolo da literatura proletária. Nos
bancos dos réus sentaram Genrikh Iagoda, chefe da polícia secreta diretamente
subordinada a Stalin, Vladimir Kriutchov, secretário de Gorki e agente de
polícia, e vários médicos do Kremlin. Todos confessaram publicamente seus
crimes, incluindo o assassinato de um filho de Gorki, e foram fuzilados.
Gorki,
o amargo, pseudônimo de Máximo Peschow, nasceu na extrema pobreza, em 1868.
Órfão, ainda criança, o menino teve de deixar a casa do avô para ganhar a vida.
Ocupou-se do que havia à mão, de sapateiro e desenhista até lavador de pratos
em navios. Mais tarde, peregrinou até Odessa com uma turma de marginais nômades
em busca de emprego. Trabalhou como estivador, auxiliar de escritório,
jardineiro, cantor de coro, padeiro. Viajou pelo Cáucaso, Crimeia e Ucrânia.
Sofreu a miséria, o frio, a fome e a revolta de um andarilho: este é seu curso
universitário, batizado mais tarde por ele como “Minhas Universidades”.
Dono
de um autodidatismo fantástico e de uma enorme sede de saber, Gorki aderiu
desde cedo a grupos revolucionários clandestinos. Em 1887, desesperado por um
amor não correspondido tentou-se suicidar com um tiro no peito. Não morreu, mas
os pulmões jamais o perdoariam.
Seis
anos mais tarde ganhou fama com a publicação de “Ensaios e Contos” (1898). Em
1902, Gorki foi eleito membro honorário da Academia das Ciências, título que
lhe foi imediatamente retirado pelo czar Nicolau II, que via nele um
revolucionário. Gorki não se abalou, contou com a solidariedade de Tchecov, e
dedicou-se a escrever peças de teatro que o colocaram entre os grandes
dramaturgos do princípio do século XX.
Dois
anos após, perseguido pelo czarismo, o escritor emigrou para o estrangeiro.
Primeiro foi para os Estados Unidos, onde teve sua permanência dificultada pelo
embaixador russo. Gorki tentava levantar fundos para a futura revolução, mas
Randolph Hearst, dono da maior cadeia de jornais americanos, tratou de
dificultar-lhe os passos acusando-o de imoralidade pública, pois Gorki era
casado pela terceira vez!
O
escritor encontra um refúgio com sua mulher, Maria Budberg, em Staten Island,
onde escreve o romance “Mãe” (1907), considerado a obra precursora do “realismo
socialista”, e uma importante peça teatral, “Os Inimigos”.
Logo
a seguir decide viver no sul da Itália, onde o clima ameno era melhor para o
tratamento de seus pulmões. Foi em Sorrento que se consolidou a amizade de toda
uma vida entre ele e Lênin.
Toda
a obra de Gorki tem como cenário o submundo russo, lugar social no qual o autor
registra com vigor e emoção os personagens que integravam as classes excluídas:
operários, vagabundos, prostitutas, homens e mulheres do povo, como descreve em “Ralé”, aqueles que ele
intitula provocativamente de “ex-homens”. Ora, o autor conhecia aquele universo
por dentro, sua biografia era a de um verdadeiro desvalido; Gorki vivenciara o
êxodo e a exclusão. Talvez por isso mesmo, Gorki conseguiu alcançar o que havia
de mais profundo na alma do povo russo. Daí o caráter autêntico que ganhou sua
obra como o criador da chamada literatura proletária, e que rapidamente se
espalhou pelo mundo inteiro e permaneceu como referencial literário até os anos
70/80 do século passado.
Acontece
que existe em Gorki a força do natural e a beleza do espontâneo, o que legitima
seu trabalho artístico. Há também a transfiguração da realidade, o surrealismo
da fuga ao legítimo, que é uma espécie de fôlego para a alma em seu
enquadramento numa dura realidade.
Podemos
traçar um interessante contraste entre ele e os principais autores russos. De
um lado a metafísica da dor, do crime e do castigo de Dostoiévski ; de outro, a
caridade do agnóstico-cristão-anarquista Tolstói. Pois Gorki conseguiu opor uma
alegria de viver, substituindo a exaltação do sofrimento por uma raiva
instintiva e uma violência ideologicamente justificada. A luta social de Gorki
não é sofrimento metafísico, mas o conflito desperto por situações de
injustiças e de sobrevivência num meio social excludente e violento, com
conteúdo político e formatação panfletária.
A
luta social ganha com Gorki a dimensão coletiva da visão social em sua
totalidade. A seus olhos incorruptíveis deveu a humanidade o que existiu de
mais verídico no mundo russo, um povo com suas peculiaridades, mas tão próximo
a todos os explorados e oprimidos do planeta.
Tanto
a obra teatral quanto a literária de Máximo Gorki pode ser relacionada ao
naturalismo, tanto na expressão, quanto na forma de sua narrativa, onde
encontramos o anseio de transformação da realidade social e política. E o que
tanto a vida quanto a obra de Górki demonstram é uma verdadeira saga pela
transformação do mundo!
Em
1913, tendo sido anistiado, regressou à Rússia, onde se envolveu em intensa
atividade política, jornalística e literária. Dirigiu um jornal mensal,
Liétopis (Crônica), e sempre atuou alinhado com Lênin e os bolcheviques, tendo
sido um dos líderes na preparação da revolução que abalaria o mundo. Quando
esta triunfa, em 1917, Gorki é um de seus ícones.
Gorki
desde a vitória da Revolução assumiu como obrigação defender a
intelectualidade, os escritores, artistas e os cientistas. Não por acaso,
muitos que se consideravam de alguma forma perseguidos a ele apelavam. Conseguiu com que Lênin o nomeasse para um
cargo que o tornasse responsável por aqueles. Depois disso ele passou a assoberbar
o líder com petições sobre petições.
A
relação entre Gorki e Lênin ameaça se deteriorar quando Gorki intervém contra a
execução de social-revolucionários condenados à morte. Lênin, sob pressão do
amigo, negou a execução da sentença. “Ele era capaz, nos extremos, de ter uma
atitude mais apaziguadora.”
Gorki,
em seguida, fundou a Revista Besseda (Conversações), para a divulgação do
socialismo fora das fronteiras russas. Entretanto, sua venda foi proibida
internamente e nenhum escritor teve permissão para com ela colaborar.
Gorki
aconselhou por palavras e por escrito a que Lênin, após a rebelião dos
marinheiros de Kronstadt, a não repetir as medidas tirânicas que a Revolução
havia teoricamente abolido; após o massacre dos rebeldes realizado pelo
Exército Vermelho sob a liderança de Trotski, Máximo Gorki decidiu-se pelo auto
exílio. Em 1921, oficialmente adoece dos pulmões, e parte para Sorrento, Itália,
onde permanecerá até 1933. Ali escreve “Meus dias com Lênin”, publicado logo
após a morte do líder.
Em
1923, a URSS instituiu uma comissão comandada por Spieranski e Krupskaia, a
esposa de Lênin, que produziu um guia de obras antiliterárias e contrárias à
Revolução, que deveriam ser banidas das bibliotecas. Nela figuravam obras de
Platão, Kant, Schopenhauer, Ruskin, Nietzsche, Leskov e até mesmo de Tolstoi,
assim como obras da rica teologia russa. Em artigo publicado no Pravda, Gorki
se posicionou contra a proibição de livros. Sabe-se que ficou furioso com o
engavetamento das obras históricas teológicas.
Retornou
à U.R.S.S. em 1928, para a comemoração dos dez anos da Revolução de Outubro,
que coincidiam com o seu sexagésimo ano de vida. Obteve a autorização de Stefan
Zweig para a edição em russo de suas obras completas. Conseguiu também, a duras
penas, obter autorização para a instalação de Biblioteca do Poeta, que permitiu
a divulgação de poesias não canônicas como as de Pasternak, de Marina Tzvietaiena
e de Ana Akhamatova.
Decide
empreender dez mil quilômetros e retornar ao sul da Itália, onde contava com
todo o apoio de uma antiga aristocrata russa progressista. Entretanto, em 1933,
com o nazismo se apossando do poder na Alemanha e a Itália fascista ampliando a
repressão política e devido à forte insistência de Stalin, assim como ao pedido
de diversos escritores russos que clamavam por sua proteção junto ao poder
central, o escritor decidiu regressar definitivamente à URSS, sendo
apoteoticamente recebido. Recebeu regalias que ele próprio dispensava. Foi por
Stalin instalado no centro da vida cultural soviética.
Como
testemunho de que nem tudo é linear na vida, principalmente nos terríveis anos
de 1930, Gorki de apoiador crítico transformou-se em propagandista do Estado
Soviético. Em 1936, visitou o primeiro campo de trabalhos forçados nas ilhas
Solovetski e as obras de construção do desastroso canal de Belomor, onde
trabalharam e morreram milhares dos chamados “contrarrevolucionários”. Gorki
viu esses gulags como “centros de reabilitação da vanguarda proletária”.
No
início dos anos 30, começou a discriminação, a vigilância e a detenção massiva
dos homossexuais, entre eles personalidades do mundo literário, artistas e
músicos. A defesa decidida da homossexualidade, levada a cabo por parte de
velhos revolucionários, como Clara Zetkin, não foi suficiente para frear a
situação. Os detidos podiam ser condenados a vários anos de prisão e ao exílio
na Sibéria.
Um
dos literatos que tratou com mais brutalidade a questão homossexual foi Máximo
Gorki, que em seu artigo “Humanismo proletário” argumentou: “Nos países
fascistas, a homossexualidade, açoite da juventude, floresce sem o menor
castigo; no país onde o proletariado alcançou o poder social, a
homossexualidade tem sido declarada delito social e deve ser severamente castigada.
Na Alemanha já existe um lema que diz: ’Erradicando os homossexuais, desaparece
o fascismo’”.
Concomitantemente
com o I Congresso dos Escritores Socialistas realizado em 1934, que decretou a
obrigatoriedade do “realismo socialista”, Gorki em “Filhos do Sol”, fez a
denúncia da facção da intelectualidade russa que não se alinhava aos cânones
revolucionários.
No
livro “Meus dias com Lênin”, que sofreu modificações consideráveis após sua
morte, o texto original terminava da seguinte maneira: “No final de contas, o
que acaba vencendo é o que há de honesto e direito naquilo que o homem faz,
aquilo sem o qual ele não seria um homem”.
Outro
trecho suprimido e que somente veio à luz nos anos 70, foi um diálogo entre
Gorki e Lênin por aquele retratado: “Com frequência eu conversava com Lênin
sobre a crueldade das táticas revolucionárias e da vida sob a Revolução”.
“O
que você queria? Perguntava ele atônito e irritado. Será possível ter
considerações humanitárias numa luta como essa, de ferocidade inaudita?”
Respondia Lênin. “Por quais critérios se mede a quantidade de socos necessária
e desnecessária numa luta?”, ele me perguntou após uma discussão áspera.
Respondi-lhe poeticamente: “O que significa isto?”
“Uma
vez perguntei-lhe: é impressão minha ou você realmente tem pena das pessoas?”
Lênin: “Dos inteligentes tenho pena. Há poucas pessoas inteligentes entre nós,
mas temos uma inteligência preguiçosa. Como povo, somos de um modo geral,
talentosos. O russo inteligente é quase sempre judeu, ou tem um pouco de sangue
judeu.”
Afinal,
duas décadas após a morte de Máximo Gorki, outro poeta comunista, Bertolt
Brecht, diria: “Quem é você? Afunde na lama, beije o carniceiro, mas mude o
mundo, o mundo precisa mudar”. Idêntico espírito da frase de Gorki, espírito de
seu tempo histórico: ”Conduziremos a humanidade à felicidade, mesmo que seja à
força”.
http://proust.net.br/blog/?p=1326
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