Há
algo cujo odor vem incomodando narizes mais sensíveis à detecção de
arbitrariedades do poder. Parcela da doutrina, pouco deslumbrada com
progressismos de ocasião, já advertia para o risco de excessos, e hoje em dia
editoriais e artigos publicados em conhecidos periódicos alertam que não se constrói
uma democracia lacerando direitos fundamentais (entre os quais aqueles
inerentes ao devido processo legal) (por todos: Lenio Luiz Streck, em obras e
ensaios jurídicos). Não importa o órgão ou agente estatal, tampouco os
argumentos e as intenções que empregam, não é tolerável a implosão daquilo que
configura o alicerce sobre o qual se devem(riam) projetar o Estado Democrático
de Direito e a sociedade.
O
que está em jogo, sendo erodida paulatinamente, é a estabilidade
constitucional. E o exemplo, por mais bizarro que seja, surge de cima, pois seu
principal algoz é a instituição desenhada sobretudo para protegê-la: o Supremo
Tribunal Federal. É evidente que, em tempos nos quais a legalidade tem seus
limites semânticos evaporando ao sabor dos ideários daqueles que detêm o poder
decisório, o argumento não tem lá muita valia, mas é preciso insistir na
obviedade de que quem estabeleceu a razão de existir do STF foi ninguém menos
que o constituinte originário. O comando está gravado, com clareza invejável, para
conferência e apreensão de qualquer um: “Compete ao Supremo Tribunal Federal,
precipuamente a guarda da Constituição...” (CRFB/88, artigo 102, caput).
Decerto que o advérbio grifado não foi ali plantado, no coração da frase
imperativa, por obra do acaso ou para fins estéticos, senão para assinalar o
papel contramajoritário que deve(ria) distinguir a atuação desse órgão
judicial.
Infelizmente,
tem-se visto o STF curvar-se não ao texto constitucional, e sim ao “sentimento
do povo”, seja lá o que isso possa significar. As bolas da vez: a garantia de
não ser preso antes do trânsito em julgado (HC 152.752, relator ministro Edson
Fachin) e o foro por prerrogativa de função (AP 937, relator ministro Roberto
Barroso). A Carta Constitucional brasileira é daquelas rígidas, porquanto a sua
alteração exige processo legislativo especial, mais dificultoso (votação em
dois turnos, nas duas Casas do Congresso Nacional), e um quórum qualificado
para a aprovação (ao menos três quintos dos integrantes de ambas as Casas Legislativas)
(CRFB/88, artigo 60, parágrafo 2º), lembrando existirem nela prescrições
invioláveis, haja vista a importância que as distingue, de modo que a sua
abolição (ou relativização) é inadmitida mesmo por emenda constitucional. Pois
ao que parece, a cada novo julgamento, o Supremo coloca em xeque essa
concepção, afastando a rigidez característica da Constituição para dotá-la de
uma tamanha flexibilidade que as mudanças das quais é alvo, atingindo até
aquilo que não tolera fraturas, sequer dependem da atuação parlamentar, porque
bastante é a força da autoridade de julgadores supostamente iluminados.
É
a “voz das ruas” sobrepujando inclusive garantias seculares, muitas delas
conquistadas a duras penas, com sangue, suor e lágrimas, revestidas por uma
carapaça normativa que em tese deveria ser suficiente para impedir o seu
extermínio pelos exercentes do poder estatal (CFRB/88, artigo 60, parágrafo
4º). Nunca é demais lembrar, aliás, que no nazismo, nas legislações que
produzia, já se fazia usual referência ao “sentimento do povo” como maneira de
sustentar uma estrutura jurídica absurda, totalitária e racista, cujas
consequências nefastas mancharam para todo o sempre a história da humanidade. É
expressão amorfa, que por isso pode exprimir pretensões múltiplas e até
dissonantes, cujo manuseio serve para a apologia de toda e qualquer bandeira,
boa ou ruim, mas que não deveria integrar o vocabulário de juízes, pois o
compromisso deles é com a lei e com a Constituição, e, por implicação lógica,
com julgamentos referendados pela racionalidade e transparência.
Em
reforço, não se olvide, pois fator agravante do problema, que o atentado à
estabilidade constitucional, com profundos impactos na sociedade, é com
frequência fruto de uma prática isolada por parte dos ministros. O Plenário do
STF não participa de muitas das decisões ali produzidas, e, quando resolve
fazê-lo, eventual modificação fica inviabilizada porque o status quo
experimentou contundente perturbação. Ou, ainda, às vezes nem mesmo uma decisão
é proferida, sendo suficiente a adoção de determinadas manobras capazes de
afetar o comportamento dos atores políticos envolvidos.
Os
recursos dos quais se valem para balizar uma atuação em esquiva à colegialidade
são variados, de índole formal ou não, indo desde o manejo de decisões
liminares monocráticas (que permanecem por meses ou anos sem apreciação do
Plenário) até o exercício de poderes para pedidos de vista e definição de
agendas para julgamentos (timing control).
As
sinalizações públicas sobre decisões futuras em jornais, manifestações em
congressos e entrevistas, não raramente entrecortadas de críticas abertas a
seus colegas, representam outro mecanismo muito comum, embora legalmente
proibido (sobre a temática, consultar o excelente trabalho: ARGUELHES, Diego
Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano. Ministrocracia – O Supremo Tribunal
individual e o processo democrático brasileiro. Revista Novos Estudos. Cebrap,
São Paulo, ano 1, n. 37, p. 13-32, jan./abr., 2018)[1].
Se
a justificação do poder judicial praticado pelo STF encontra problemas
seriíssimos em circunstâncias de afronta à Constituição (supremocracia),
mormente quando barreiras contramajoritárias são ultrajadas por argumentos não
jurídicos, ainda mais preocupante, e injustificável sob a perspectiva da
legitimidade democrática, é verificar tais ocorrências sendo perpetradas pelo
agir individualizado de seus integrantes (ministrocracia).
Já
há análises sociológicas defendendo que alguns ministros da corte suprema
trabalham em respeito a uma agenda política. E para implementá-la é estratégico
atribuir a empreitada ao “sentimento popular de justiça”, espécie de aval para
que magistrados “interpretem” a ordem jurídica a partir de uma miragem
vanguardista. Vale tudo, até decidir contra legem, se esse for o melhor caminho
para se fazer “justiça social” ou atender certos reclamos, pouco importando a
ausência de inconstitucionalidades. No fundo, nada além de uma armadilha
retórica que esfola no osso o Direito em sua autonomia, fazendo dele mera
racionalidade instrumental à mercê de um realismo jurídico à brasileira
subserviente a toda sorte de voluntarismos.
Propositadamente
ou não, sobra o sentimento de que foram esquecidos os motivos que levaram ao
surgimento do constitucionalismo moderno, em especial acerca da importância de
uma Constituição e da própria função de uma corte constitucional. Basta dizer
que se o constitucionalismo do segundo pós-guerra transferiu aos juízes um
papel relevante, liberando-os dos grilhões do exegetismo e da jurisprudência
dos conceitos aos quais estavam submetidos no século XIX, assim foi com o
intuito de fortalecer a autonomia conquistada pelo Direito, jamais para
favorecer ativismos judiciais. Muito pelo contrário, pois a substituição da
discricionariedade de legisladores e/ou doutrinadores pelo voluntarismo de
juízes só faz fragilizar a ordem jurídica, acarretando inseguranças, além de
representar um oximoro para a própria teoria constitucional, que há séculos
concentra esforços em elaborar mecanismos institucionais para o controle do
poder (LIMA, Danilo Pereira. Constituição e Poder. Limites da Política no
Estado de Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2018).
A
pergunta que não quer calar: para que queremos um Supremo Tribunal Federal (ou
11 Supremos”, que legislam sem mandato popular) que insiste em menosprezar a
Constituição e desatender o anseio de viver sob o governo das leis?
*Este texto corresponde ao
editorial da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro) n. 102, ainda no
prelo.
[1]
Confira-se a (preocupante) conclusão a que chegaram Diego Werneck e Leandro
Molhano: “Diante de seus ministros, portanto, o Supremo não parece tão supremo
assim. Mostramos que o STF aloca de maneira individual e descentralizada uma
série de poderes individuais de agenda, de sinalização e mesmo de decisão
formal. A experiência brasileira recente, envolvendo alguns dos mais
importantes conflitos políticos que já chegaram ao STF desde a
redemocratização, sugere que o uso de poderes depende muito mais da virtude
individual do que de mecanismos institucionais de controle. E, enquanto o
plenário não se pronuncia sobre essas ações individuais mais ou menos virtuosas,
ministros solitários mudam o status quo e moldam a política nacional. Esse
cenário está em conflito direto com algumas das categorias que tipicamente
usamos para pensar o papel do STF na democracia brasileira”.
Em
outro trecho do estudo, os pesquisadores exemplificam o fenômeno a partir da
(controversa) liminar proferida pelo ministro Gilmar Mendes, que suspendeu a
nomeação do ex-presidente Lula como ministro de Dilma Roussef: “Nas três
semanas (18 de março a 7 de abril) que se passaram até que ele liberasse a
questão para julgamento, Dilma já havia sido suspensa provisoriamente do cargo,
ficando prejudicada a questão. Por uma liminar monocrática, portanto, um
ministro anulou a nomeação de um ministro de Estado, em um momento crítico para
o destino do governo Dilma. O plenário não se pronunciará sobre questão tão
decisiva para os rumos do país e para o direito constitucional brasileiro —
tudo que temos é a decisão liminar de Gilmar Mendes. Ministro decide
individualmente, e ministro decide individualmente se e quando poderá haver
decisão colegiada sobre sua decisão individual: esse 'loop' entre poder de
agenda e poder de decisão individual tem sido decisivo para entender a atuação
do STF na política brasileira, muito além das situações 'excepcionais' previstas
na legislação” (ARGUELHES, Diego Werneck; RIBEIRO, Leandro Molhano.
Ministrocracia – O Supremo Tribunal individual e o processo democrático
brasileiro. Revista Novos Estudos. Cebrap, São Paulo, ano 1, n. 37, p. 13-32,
jan./abr., 2018).
Lúcio Delfino
é advogado, pós-doutor em Direito (Unisinos) e doutor em Direito (PUC-SP).
Membro-fundador da Associação Brasileira de Direito Processual (ABDPro) e
diretor da Revista Brasileira de Direito Processual (RBDPro).
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-mai-23/lucio-delfino-supremocracia-desamor-constituicao
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