Nos
anos de 1915 a 1917, a Suíça era um pequeno país a desfrutar a paz em meio ao
grande conflito mundial. Por isso mesmo, lá se concentravam milionários que
preferiam não correr riscos com suas fortunas
em meio a espiões e contra espiões de todas as potências beligerantes.
Sem
dúvida lá viviam também colônias de exilados políticos, expulsos de países
autocráticos como a Rússia czarista. Alguns destes viviam “à la larga”, a
maioria, entretanto, muito ao contrário.
Como
a ordem do dia dentre as grandes potências beligerantes era a guerra
imperialista, os exilados estrangeiros cujos focos de atuação fossem a paz e a
revolução proletária, não eram considerado muito relevante pelas autoridades e
tão pouco pelos serviços de inteligência.
Dentre
estes, um especial residia em Zurique. Ele não frequentava hotéis elegantes,
assim como jamais aparecia nos bons cafés de época, tão pouco se expunha a
reuniões abertas de propaganda política. Vivia discretamente na companhia de
sua esposa, hospedado na modesta casa de um sapateiro que alugava quartos na
Spiegelgasse, em frente ao Limmat. Seu quarto ficava no segundo andar da velha
construção com as paredes externas sujas graças à fumaça expelida por uma
fábrica produtora de salsichas vizinha. Se a fumaça pouco incomodava o casal, o
mesmo não se dava com o cheiro que ela trazia.
O
casal possuía como companheiros de refeição outros hóspedes: um padeiro, um
italiano e um ator austríaco. No entanto, mesmo após meses de convivência,
graças a um temperamento retraído, sabia-se quase nada a respeito do casal,
exceto que eram russos, educados, cordiais, com nomes complicados e que
recebiam poucas visitas, quase sempre das mesmas pessoas. Tão somente a esposa
do sapateiro conhecia parcela da verdade: ela sabia que eram refugiados
políticos que viviam pobremente, alimentavam-se de modo frugal e que tinham
muito poucas roupas que, apesar de sempre limpas, e muito batidas.
De
todo modo, talvez não chegasse nem a trinta pessoas na cidade que conheciam o
verdadeiro nome de Vladmir Ilich Ulianov, o Lênin, o homenzinho que residia
modestamente na casa do sapateiro, com sua esposa Nadia Krupskhaia. Nem mesmo
nos círculos socialistas sabia-se muita coisa a respeito do hóspede do
sapateiro, aquele leitor e estudioso fanático; era sabido que ele editara em
Londres um periódico de pequena circulação, pertencente a uma determinada
corrente revolucionária e que circulava de maneira muito restrita entre os
refugiados russos; sabia-se também que antes de deixar São Petersburgo ele fora
o chefe de uma facção do Partido Social Democrata Russo. Além disso, possuía princípios rígidos e
sempre tratava política como algo muito duro e sério, sendo praticamente
impossível conciliar opiniões que fossem contrárias às suas.
Como
todo russo instruído ele adorava música e literatura. Amigos por quase toda a
vida, o escritor Máximo Gorki um dia foi visita-lo e encontrou sobre sua mesa
de trabalho um exemplar muito manuseado de “Guerra e Paz”. Disse Lênin: “É
Tolstoi, sim. Que colosso, hein? Isso é que é um artista. E sabe o que é o mais
espantoso? Até esse conde aparecer em cena era impossível encontrar um mujique
russo de verdade na literatura!”
Após
o parco jantar, os amigos foram ao quarto do casal escutarem com Krupskaia a
“Appassionata” de Beethoven e Lênin comentou: “Não conheço nada mais glorioso,
eu a ouviria todos os dias. Ela é sobre-humana… sempre penso de que maravilhas
o ser humano é capaz”. E acrescentou: “Mas não posso ouvi-la com muita
frequência, pois afeta os nervos, faz a gente querer dizer bobagens simpáticas
e passar a mão na cabeça das pessoas… Além disso, não se deve passar a mão na
cabeça de ninguém: pode-se levar uma mordida e ficar sem a mão. Temos que,
quando necessário, golpeá-los na cabeça sem nenhuma piedade, embora nosso ideal
seja não usar a força contra ninguém. Ideal infernalmente difícil!”
Lênin,
um homem baixo e um pouco gordo, tinha hábitos de vida absolutamente
disciplinados: regularmente, dia após dia, às nove horas da manhã, caminhava da
casa do sapateiro até a biblioteca pública, onde imergia em livros até o final
do expediente matinal, às doze horas. Às doze retornava à Spiegelgasse, da qual
saía à uma, sendo um dos primeiros a retornar à biblioteca e lá permanecendo lá
até as seis da tarde.
Ao
estudo persistente, sobrevinham as noites, quase sempre preenchidas com
reuniões, que ocorriam em pequenos cafés frequentados por operários e
intelectuais; a elas compareciam grupos, talvez entre dez a quinze pessoas, em
geral mais jovens. Para os atendentes do café, essas reuniões que transcorriam
em um idioma incompreensível e pareciam intermináveis.
Disse
certa vez em uma dessas reuniões restritas, interpretando como sempre a seu
modo os conceitos marxistas: “A destrutibilidade do átomo, a mutabilidade de
todas as formas de matérias e a variabilidade de seu movimento constituem o
baluarte do materialismo dialético, e nas ciências sociais ele se expressa na
luta de classes… Se tomarmos essas ideias como dogmas e agirmos com base nelas,
o triunfo do socialismo será inevitável!”
Na
verdade as raízes das atividades propostas por Lênin desde sempre eram fundar
um partido político preparado para a tomada do poder.
No
dia 15 de março de 1917, havia uma surpresa reservada para o bibliotecário de
Zurique. Pela primeira vez, em anos, o leitor russo não comparecia à biblioteca
assim como jamais a ela retornaria. O que ele não poderia imaginar é que o
leitor fiel, Lênin, acabara de receber a notícia de que irrompera uma revolução
em seu país.
As
notícias lhe caíram como um raio de sol na manhã fria. A princípio, Lênin não
acreditara nas novidades que corriam pela boca dos exilados, mas ocorrera uma
revolução e esta verdade se firmava de modo glorioso à medida que o tempo
passava.
Acontece
que na Rússia, tão logo os reveses militares dissiparam o entusiasmo patriótico
inicial, o desgaste provocado pela guerra tomou conta do país e o regime
czarista mostrou-se incapaz de mobilizar apoio público e mesmo militar, nas
próprias tropas.
Na
verdade, as derrotas russas na Grande Guerra haviam detonado tensões sufocadas
com toda a barbárie em 1905. Em fevereiro de 1917, quando mais de duzentos mil
trabalhadores de São Petersburgo declararam greve geral, o sistema político já
não possuía o Exército como instrumento para reprimi-los. Os recrutas camponeses se negavam a reprimir
os grevistas. Até mesmo muitos dos cossacos haviam passado para o lado dos que
exigiam pão, paz e liberdade.
Enquanto
a família real, sob a influência de Rasputin, tentava arrancar uma paz em
separado com a Alemanha, por outro lado, os donos de terra e os capitalistas
estavam interessados na continuidade da guerra, mas desejavam se livrar da
autocracia que emperrava seus negócios.
Nicolau
II tentou como última jogada dissolver a Duma, mas os deputados se recusaram a
se retirar de cena e nomearam, por sua vez, um Governo Provisório. Logo a seguir,
para fugir a tal pressão, a família real tentou fugir para Moscou, mas o seu
trem terminou aprisionado por ferroviários em greve e o Czar Nicolau II foi
obrigado a renunciar ao trono por telegrama!
Acontece
que a corte, a burocracia e o corpo de oficiais consideravam a séculos a Rússia
domínio privado do Czar. Também entre os camponeses, inúmeros acreditavam na
autoridade forte e indivisível e consideravam a terra como propriedade do
soberano. O Governo de Kerenski, tendo ainda por objetivo uma vitória militar,
ao aceitar a renúncia do Czar, terminou por causar a derrubada de toda a
superestrutura que sustentava 0 estado russo. Logo, tudo desabou, como da noite
para o dia.
Um
comitê de representantes de soldados, operários e camponeses, denominado
Soviete, que havia desaparecido com a repressão de 1905, voltara a se
reorganizar. Agora o poder real dividia-se entre um fraco Governo Provisório,
representando a burguesia e parte dos senhores de terra e o Soviete de São
Petersburgo.
Os
prisioneiros políticos foram libertados e anistiados: o primeiro sinal de
liberdade fazia-se sentir. Afinal, os milhões de mortos tombados na guerra, os
políticos aprisionados, torturados e assassinados pelos Czares talvez não
houvessem, afinal, perecidos em vão.
Lênin
parecia embriagar-se com cada nova que lhe chegava. As notícias significavam
que poderia, junto com tantos outros exilados, voltar à Pátria e empunhar as
bandeiras de novas etapas revolucionárias. Os jornais russos publicavam um
lacônico chamado do escritor socialista Máximo Gorki: “Voltem todos à Pátria!”
Quando
os exilados e, dentre eles Lênin, já preparavam suas malas, chegaram novas
notícias: a revolução que ocorrera e que colocara no poder o Governo
Provisório, já não se escrevia com letras maiúsculas. Estava mais para um motim
palaciano, articulado por diplomatas ingleses e franceses, desejando a
manutenção da Rússia na carnificina da guerra contra a Alemanha, o Império
Austro- Húngaro e seus aliados, “mudando algo para que tudo permanecesse o
mesmo”. Ela nada tinha a ver com os anseios populares de paz, terra e
liberdade, muito pelo contrário.
Logo,
os convites oficiais para o retorno à Pátria não incluíam exilados como Lênin e
seus companheiros, os Bolcheviques do Partido Socialdemocrata. Miliukov, o novo
chefe de governo, dera, inclusive, ordens específicas para a polícia de
fronteira não permitisse a entrada dos Bolcheviques no país.
Enquanto
a jovem águia política, o Bolchevique Lev Trotski, permanecia preso em Halifax,
Plekhanof e outros Mencheviques eram muito bem recebidos pelas autoridades em
São Petersburgo. Miliukov sabia perfeitamente com que tipo de socialistas
poderia contar para o prolongamento da guerra imperialista.
Lênin
sentiu-se desesperar. Após treze anos de autoexílio, precisava, custasse o que
custasse, até mesmo ao preço da própria vida, retornar à Pátria e tomar as
rédeas de um processo revolucionário que poderia conduzir à verdadeira
revolução social, aquela com letras maiúsculas!
Pensou até mesmo em conseguir um passaporte falso sueco e, na alfândega
russa passar-se por surdo-mudo. Desistiu pelo absurdo. Aí procurou um aeroplano
que transpusesse a Áustria e a Alemanha e parasse diretamente em território
russo. Outra insensatez para a realidade aerotransportável da época.
De
todas as possibilidades, a única alternativa que se apresentou com alguma
viabilidade foi a de convencer o governo alemão, inimigo da Rússia na frente de
batalha, a permitir que o grupo de Bolcheviques atravessasse num trem o seu
país. Aqueles que desejavam a paz poderiam liderar a resistência contra a
guerra na Rússia: assim pensou o império alemão. Por outro lado, os Estados
Unidos estavam a ponto de declarar guerra ao Império Austro-Húngaro e à
Alemanha e isso forçava o imperador Guilherme a tentar realizar a paz em
separado com a Rússia.
O
imperador alemão pessoalmente resolveu permitir que Lênin e seu Estado-Maior
atravessassem seu país à bordo de um trem.
Lênin
tomou suas precauções. Afinal, poderia ser tido como um agente inimigo em sua
própria Pátria. Seu partido poderia ser comprometido, assim como própria causa.
Lutou como um leão contra os receios de seus companheiros e desafiando a
história, engolindo alguns de seu preceitos morais, dado que jamais deixara de
denunciar o arqui-reacionarismo do Império de Guilherme, negociou pessoalmente
com o embaixador alemão impondo algumas condições: viajariam em dois vagões de
trem com direitos de extraterritorialidade. Não haveria controle de passaportes
e ninguém sairia ou entraria no trem após o embarque. Cada emigrado pagaria de
seu bolso todas as tarifas e custos.
Em
8 de abril de 1917, o trem lacrado que partiu de Zurique e atravessou a
Alemanha trazia no vagão de segunda classe as mulheres e filhos dos
revolucionários, inclusive Krupskaia,a esposa de Lênin, e Inês Armand,
comunista francesa poliglota, que lhe era extremamente dedicada. No de terceira
classe, viajariam os homens que mudariam a face do mundo.
Após
percorrer o território alemão, o trem chegou à Suécia, onde os exilados foram
festivamente saudados. Famintos, foram alimentados com os melhores pratos que
os operários e intelectuais suecos poderiam prover. Conseguiram até mesmo
coletar algum dinheiro, o que lhe possibilitou a Lênin a troca de suas botas
ferradas por sapatos e a aquisição de uma muda de roupa adequada, com a qual
pudesse se dirigir ao povo russo.
Mais
quilômetros foram percorridos e o trem lacrado chegou à Finlândia, então
território russo. Ao pisar o solo pátrio, antes mesmo de abraçar os soldados e
os operários que o aguardavam, Lênin apossou-se de todos os jornais que poderia
ler. Acima de tudo queria ler o Pravda para constatar se ele mantinha o que via
como a correta linha do internacionalismo proletário. Irou-se, amarrotou-o e
jogou-o ao chão, pois o periódico de seu próprio Partido não estava enérgico o
suficiente, não conclamava o povo, os sovietes de soldados, operários e
camponeses, à luta pelo poder total. Enfim, não expressava exatamente o seu modo
de ver o momento político. Disse à Krupskaia, sua esposa, e aos companheiros
mais próximos que haviam ido recepcioná-lo na primeira estação após a
fronteira: “Já era tempo de voltar. Tenho que tomar o leme e dirigir o barco
para a vitória ou para a destruição”.
O
trem aproximou-se de Helsinque na noite de 16 de abril e Lênin ainda temia por
sua prisão. Mas a praça da estação ferroviária estava tomada por enorme
multidão de soldados de todas as armas e trabalhadores que o aguardavam. Seu
número subia a milhares de homens e mulheres acotovelados na praça e apertados
em todas as ruas transversais. Quando o líder assomou à porta de seu vagão, a
uma só voz todos se puseram a cantar o hino de “A Internacional”.
Dirigindo-se
ao comitê que o cercava, Lênin fez de imediato pouco caso dos planos de reforma
agrária e outras medidas legais propostas pelo Soviete, e afirmou que os
próprios camponeses deveriam se organizar e se apossar da terra sem intervenção
governamental. Que nas cidades, os operários armados deviam assumir o controle
das fábricas.
Repreendeu
severamente os próprios Bolcheviques, dentre eles Stalin e Kamenev, que o
recepcionavam. “A revolução proletária é iminente, não se deve dar o menor
apoio ao Governo Provisório… Não precisamos de nenhuma república parlamentar.
Não necessitamos de nenhuma república burguesa. Não precisamos de nenhum
governo além do Soviete dos delegados de trabalhadores, soldados e camponeses.”
Ao
sair da estação ferroviária, um oficial aproximou-se e bateu-lhe continência.
Lênin, surpreso, retribuiu-lhe o cumprimento.
O oficial deu ordens e um batalhão de fuzileiros navais perfilou-se à
passagem do líder. De um microfone instalado na estação ouviu-se o hino “A
marselhesa”.
O
homem que até três dias antes era hóspede de um humilde sapateiro suíço foi,
então, erguido por centenas de mãos e
transportado em triunfo até um carro blindado. Da fortaleza de Kronstadt as
luzes dos holofotes se concentravam nele e Lênin fez seu primeiro discurso
público.
“Caros
camaradas, soldados, marinheiros e trabalhadores, tenho o prazer de
congratulá-los pela vitória da revolução russa, saudá-los como a vanguarda do
exército proletário internacional… A guerra do banditismo imperialista é o
começo da guerra civil na Europa… Na Alemanha tudo está fermentando! Não hoje,
mas qualquer dia pode ocorrer o colapso do capitalismo europeu. A revolução
russa que vocês realizaram deu o golpe inicial e inaugurou uma nova era: Viva a
Revolução Proletária Internacional”!
Para
a esposa ele segredou: “Aqueles que não presenciaram a revolução jamais poderão
imaginar a sua beleza solene e grandiosa”.
Sob
a liderança de Lênin e dos Bolcheviques, alguns meses após, em outubro de 1917,
o Governo Provisório seria derrubado, sendo substituído exclusivamente pelos
Sovietes sob a direção do Partido.
A
facilidade com que o Governo Provisório foi derrubado– segundo Lênin foi como
“erguer uma pluma” – convenceu muitos historiadores da “inevitabilidade” da
Revolução. No entanto, o próprio Lênin considerava o desfecho incerto. Em
cartas ao Comitê Central, em setembro e outubro de 1917, ele insistia em que o
sucesso dependia inteiramente da velocidade e da coragem com que a insurreição
armada fosse executada. “Atrasar o levante é morte… tudo está suspenso no ar”.
Mais tarde, Trotsky afirmou que “sem Lênin (e ele próprio) estivéssemos em
Petrogrado, não teria havido Revolução de Outubro”. Ainda conforme o testemunho
de Trostsky, a Revolução de Outubro, em Petrogrado, foi realizada por “no
máximo” 25 mil a 30 mil pessoas, numa cidade com uma guarnição superior a
duzentos mil soldados.
Talvez
a razão mais importante do rápido sucesso da Revolução tenha sido a
militarização da política, tão bem implantado sob a regência de Lênin. Os ativistas
políticos tornaram-se militantes. De fato, nenhum outro Partido antes dos Bolcheviques havia tratado a
política como guerra, no sentido literal da palavra e com objetivo não apenas
de compelir o inimigo a render-se, mas de aniquilá-lo. E esta inovação,
juntamente com o apoio de parcela da população consciente e o desabamento do
império russo, deram-lhes vantagens significativas sobre seus oponentes. E,
provavelmente, a mais profunda Revolução até então conhecida na história da
humanidade pode implantar uma nova estrutura social, num país cujo capitalismo
era extremamente atrasado, o proletariado ainda incipiente e a propriedade
agrícola semi-feudal.
Nenhum comentário:
Postar um comentário