Em
ano de eleição, a prisão de uma das maiores lideranças populares do mundo
resultante de um processo sem provas e com um tipo de tramitação inédita
evidencia um novo modelo de estado de exceção que reinventou sua forma de calar
vozes divergentes. Fórum explica como e por quê.
7
de abril de 2018. Nesta data o Brasil viu, pela primeira vez, um líder político
se entregar à prisão nos braços do povo. O Sindicato dos Metalúrgicos do ABC em
São Bernardo do Campo (SP) foi cercado por milhares de pessoas poucas horas
depois que o juiz Sérgio Moro emitiu um mandado de prisão contra Luiz Inácio
Lula da Silva e, o local onde onde se forjou politicamente o primeiro operário
a se tornar presidente da República, mais de 40 anos depois, se tornou também o
local onde pela primeira vez, após a consolidação da democracia, os brasileiros
tentaram impedir a prisão de um líder.
Antes
mesmo de Lula se entregar, ao longo do controverso e veloz processo que se
encampou contra ele, palavras de ordem dentro do Partido dos Trabalhadores e da
militância popular pelo país já davam conta de construir uma narrativa que Lula
preso seria um preso político. E que eleição sem Lula é fraude.
Para
além das paixões e narrativas partidárias, o fato é o processo que começou com
uma matéria de jornal e avançou, sem provas, com base em depoimentos, delações
e “convicções” e resultou na prisão do líder em pesquisas de intenção de voto
em pleno ano eleitoral evidencia que o encarceramento de Lula não deve ser
tratado ou entendido como mais uma prisão comum de um político.
Para
entender o que faz da prisão de Lula uma prisão política, Fórum procurou
especialistas de diferentes áreas: uma advogado, uma cientista política, um
jornalista e um militante político que foi preso durante a ditadura militar.
O que é uma prisão política?
De
acordo com uma definição adotada pelo Conselho da Europa em outubro de 2012, um
preso político é “uma pessoa que é aprisionada por causa de suas crenças e
atividades políticas”. Posto isso, a prisão de Lula, líder em todas as
pesquisas de intenção de voto, em ano eleitoral, já aponta para o
encarceramento não só daquele que supostamente praticou crime de corrupção, mas
que ameaça o sistema vigente por divergir com sua atuação e posicionamento
político.
É
o que explicou, em entrevista à Fórum, a cientista política Roseli Coelho.
“Preso político é aquele que diverge do poder instituído, do poder público
constituído. É aquele que diverge, que discorda, é uma prisão que resulta da
opinião diferente, da divergência. Agora, nós não podemos ser ingênuos de achar
que é uma mera discordância de opinião diferente. Está preso aquele que pensa
diferente, que tem uma opinião diferente da opinião do poder instituído e que
expressa isso de alguma maneira – se alguém tem uma opinião diferente e fica
quietinho na cozinha de sua casa, não acontece nada. Ele é preso político
porque ele pensa diferente, diverge e expressa isso de alguma maneira.”
Esse
“expressar de alguma maneira” citado por Roseli Coelho está ligado ao fato de
que a prisão de Lula é política não só por ter sido motivada por sua postura
divergente ao sistema posto, mas por sua postura ser incorporada por um clamor
popular que representa algum tipo de ameaça. Somente a opinião divergente, sem
expressão, não representa perigo e, portanto, não resulta em prisão política.
“Ele
diverge por um lado e por outro lado ele tem, digamos, os meios materiais para
expressar essa divergência. Ele é dirigente de um partido político de massa, um
partido político democrático, popular e de massa. Essas são as três
características principais do PT. E como tal ele encampa e expressa sua
divergência. E o poder político instituído, que não é apenas o Executivo, mas
também o Judiciário e Legislativo, não concorda com isso. Ele foi preso por
conta dessa divergência, e por ter desafiado nesse sentido de expressar sua
divergência”, diz a professora da Fundação Escola de Sociologia e Política de
São Paulo (FESPSP). “Ele é, portanto, um preso político”, completa.
É
o que pensa também Ivan Seixas. Aos 15 anos de idade, em 1971, Ivan, que era um
jovem que entrou na luta armada em plena ditadura militar, foi preso e
torturado pelas forças repressoras, que assassinaram seu pai Joaquim Alencar de
Seixas. Hoje, 47 anos depois, um dos presos políticos da época em que mais se
praticou prisões políticas no país não tem dúvidas de que prisão de Lula,
apesar do contexto diferente, também é política.
“Lula,
basicamente, foi condenado para não ser candidato. Porque ele tem popularidade.
Então, em uma situação dessas não dá para achar que juridicamente é isso ou
aquilo. É política. É uma questão política e ponto”, sacramenta.
Legalidade de fachada
Boa
parte da mídia tradicional, do judiciário e da direita política procura
derrubar a narrativa de que a prisão de Lula carrega um caráter político sob o
argumento de que o ex-presidente foi julgado por duas instâncias, teve direito
à ampla defesa e recursos. Ou seja, por essa linha de raciocínio, a prisão de
Lula seria legal por ter seguido, teoricamente, os ritos constitucionais.
À
Fórum, no entanto, o advogado Marco Aurélio Carvalho, que é especialista em
Direito Penal, explica que os ritos constitucionais não anulam o caráter
político de uma prisão.
“Não
há nenhuma dúvida de que é uma prisão política. O fato dela ter sido
‘legitimada’ por um conjunto de regras que estão previstas no nosso ordenamento
jurídico não tira dela a dimensão política que ela tem. Pelo contrário, até
reafirma. Porque o conjunto de regras foram, de forma absolutamente descarada,
manipuladas para obter o resultado subentendido, que era a retirada de Lula do
processo eleitoral. Não tenho a menor dúvida, é uma prisão política, sim, que
respeitou determinados ritos, que procuraram acreditá-la. Mas fizeram
exatamente o oposto. Acabaram excepcionando a prisão e dando para ela a
dimensão política que indiscutivelmente ela tem”, sustenta.
Para
exemplificar que os ritos não necessariamente anulam o caráter político do
processo e da prisão, Marco Aurélio citou alguns aspectos da tramitação – para
além da falta de provas escancarada com documentações apresentadas pela defesa
de Lula – que denotam a particularidade deste caso em específico.
“O
andamento dessa questão, por si só, já revela realmente do que estamos falando.
Tivemos uma condenação absolutamente fora do padrão em termos de tramitação.
Ela foi muito mais rápida do que a média alta das tramitações que são apuradas
na Justiça do Paraná. Foi a toque de caixa, foi a chamada justiça penal do
inimigo. Deram um aspecto de legitimidade mas descumpriram regras básicas do
ordenamento jurídico, tratado com uma celeridade nunca antes vista na história
desse país”, explica.
Na
mesma linha vai o jornalista Dennis de Oliveira, que é coordenador do curso do
CELACC (Centro de Estudos Latino Americanos de Cultura e Comunicação), da
Escola de Comunicação e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
“É
uma prisão política porque o próprio procedimento jurídico, desde o golpe
contra Dilma, até mesmo a operação Lava Jato, vão deixando cada vez mais claro
que o objetivo é criminalizar a esquerda, os movimentos sociais, o PT,
principalmente, e mais ainda o Lula, que é a grande liderança. Então, basta analisar
como foi o processo: primeiro o julgamento dele em primeira instância, que foi
uma condenação feita sem provas, apesar de toda a documentação apresentada pelo
presidente Lula e seus advogados. O próprio inquérito, o interrogatório a que
ele foi submetido, demonstrou toda uma predisposição do juiz Sérgio Moro e do
judiciário como um todo em condená-lo. Na segunda instância, os
desembargadores, além de marcarem em tempo recorde o julgamento do recurso,
ainda aumentam a pena com o objetivo nítido de reduzir a prescrição, e depois
no Supremo Tribunal Federal vemos as manobras de Cármen Lúcia e a pressão sobre
a Rosa Weber para mudar seu voto, que levou à confirmação da condenação. E
finalmente, a última etapa, o tempo recorde: menos de 24 horas depois de o STF
ter votado contra o habeas corpus o juiz Sérgio Moro já decreta a prisão. Tudo
isso mostra um cenário, um procedimento jurídico adequado ao calendário
eleitoral que tem objetivo de afastar o Lula da concorrência à presidência”,
explica Dennis.
Estado de Exceção com
roupagem democrática
O
senso comum tende a associar prisões políticas a regimes ditatoriais, lutas
armadas ou grandes revoltas contra estados autoritários, como aconteceu no
Brasil durante o regime militar. Essa visão cai como uma luva àqueles que
sustentam que não há caráter político na prisão de Lula, que essa seria uma
narrativa petista, já que vivemos em um teórico Estado Democrático de Direito.
Se estamos em uma democracia, logo, seria incoerente falar em prisão política.
O
mundo, no entanto, mudou e em um país como o Brasil, apesar de algumas
manifestações de militares aventando uma intervenção das Forças Armadas, não
seria inteligente para aqueles que detém o poder utilizar do mesmo modus
operandi da ditadura militar para calar vozes divergentes ao sistema. Para
anular essas ameaças ao establishment, então, criou-se um novo modelo de Estado
de Exceção, que se ampara na suposta legitimidade constitucional, interpretada
de acordo com os interesses deste próprio establishment. O advogado Marco
Aurélio explica:
“A
gente percebe, analisando a história no mundo, que os regimes de exceção agora
estão dando uma conformação institucional, com legitimação, ao Estado de
Exceção. Não mais a legitimação pela força, pela violência, mas a legitimação
pelo processo, manipulada pelo próprio processo. Estamos em um novo momento no
mundo, que culminou com os chamados golpes constitucionais. São manipulações
institucionais para o atingimento de fins meramente eleitorais. Existe uma nova
sistemática para obter os mesmos resultados que historicamente sempre foram
pretendidos pelos grupos que se alternavam e ainda se alternam no poder. É uma
forma de se perpetuarem, de imporem a agenda deles, mas sem grandes
consequências. Estão fazendo isso de forma mais amena. O mundo, pelas atuais
circunstâncias, não aceitaria mais o tipo de violência que esses golpes
constitucionais em regra acabam infligindo. São novos métodos, eles repensaram
essa questão do mérito do processo, e hoje a violência se dá pela manipulação
descarada dos comandos normativos”.
Ivan
Seixas ainda vai além. O ex-preso político, que acompanhou enquanto perseguido
a ascensão e a queda da ditadura militar no Brasil, acredita que o país vive
não só um novo tipo de Estado de Exceção como um novo tipo de ditadura: a
ditadura do judiciário.
“Tecnicamente
a gente já vive sob uma ditadura do judiciário, em que são cometidas essas
coisas arbitrárias. Na democracia liberal, os três poderes têm que ter iguais
poderes e trabalharem harmonicamente. Quando um deles suplanta os outros, como
foi o caso de 1964, em que o Executivo foi assaltado pelas Forças Armadas, que
suplantou o legislativo e o judiciário, instaurou-se uma ditadura. Agora, você
tem o Judiciário subjugando o Legislativo e o Executivo. Então, se o Executivo
fizer alguma coisa e o Judiciário decidir que não pode fazer, acabou”, pontua
Ivan.
E
não é a primeira vez na história que uma ditadura ou um estado autoritário se
sustenta no bojo constitucional. Marco Aurélio lembra que a manipulação das leis
e dos ritos deu bases de legitimidade, à época, a um dos capítulos mais cruéis
da história da humanidade, que foi o regime nazista.
“Temos
que lembrar que no regime nazista Hitler consultou o alto comando do partido
nazista e juristas para saber se para implementar tudo aquilo que ele queria
precisaria eventualmente mudar alguma regra. Os juristas alemães, então,
disseram que bastava mudar a interpretação que se dá à essas regras. Algo como
‘nós já temos uma Constituição que justifica tudo que queremos fazer, basta a
gente manipular de acordo com o que queremos’. E é o que está se dando agora no
Brasil”, lembra.
Ivan
Seixas, na condição de uma vítima da ditadura, não se engana: “Em 1964 também
tinha uma fachada de legalidade. Não havia um único ditador, teoricamente havia
uma eleição do presidente, dos governadores, dos prefeitos de capital, mas era
tudo uma fachada, porque quem escolhia o ditador era o Exército, que submetia
às Força Armadas, que dava seu aval e apresentava no Legislativo, que elegia
falsamente o presidente. Hoje nós temos uma fachada de legalidade. A diferença
é que não existe mais uma ditadura centralizada”, analisa.
Para
Dennis de Oliveira, a fachada de legalidade vigente no país se dá pelo fato de
que a “democracia” brasileira herdou uma série de mecanismos autoritários que
vão do passado escravocrata ao próprio regime militar instituído em 1964. Esse
Estado de Exceção que se manifesta na prisão de Lula, de acordo com o
jornalista, já é aplicado historicamente contra lideranças de movimentos
sociais e nas periferias. “Lula é um preso político mas eu posso citar Rafael
Braga, que também é um preso político”, lembra Dennis. O jornalista pondera,
contudo, que não cabe usar o Estado de Exceção nas periferias para dizer que
Lula não sofre uma prisão política, como se ele pertencesse a uma classe
política que não sofre as arbitrariedades constantes da população periférica. Lula,
na análise de Dennis, foge ao establishment.
“Quando
você pega os comentários de pessoas que criticam que seja uma prisão política,
falam que o Lula teve condições de recurso e de julgamento que a maioria da
população não tem. Que muita gente é presa em segunda instância, coisa e tal.
Só que é interessante. O que está por trás dessa narrativa que aparentemente é
razoável, é que Lula não poderia estar participando desse universo da esfera da
representação política, por ser nordestino, um trabalhador. Então, há os que
comparam a figura do Lula a outras figuras políticas, como Aécio Neves, Temer,
Alckmin, que estão tendo todos os direitos de provas, toda a morosidade
judiciária ao seu favor. Como se o Lula não fizesse parte desse universo da
representação. Não. Na verdade, o Lula tem que ser igualado à maior parte da
população que sofre com essas condições”, pontua.
Na
disputa de narrativas em torno do caso de Lula, a esquerda encampou uma
estratégia para denunciar o caráter político de sua prisão que consiste em
compará-lo a outras figuras populares que foram julgadas e presas com a
legitimidade da lei e que hoje são tidos como heróis. Os paralelos foram feitos
com figuras que vão de Jesus Cristo a Tiradentes, de Martin Luther King a
Nelson Mandela, entre outros.
Naturalmente,
a direita que apoia a prisão do ex-presidente se apressou em desconstruir as
comparações, “endeusando” os outros líderes populares e reduzindo Lula a um
político comum que foi preso por ser “ladrão”.
Para
os especialistas ouvidos por Fórum, no entanto, as comparações entre Lula e
outros líderes mundiais que sofreram prisões políticas é, sim, plausível,
independentemente dos contextos completamente diferentes.
“As
comparações entre presos políticos como Mandela ou Luther King são plausíveis,
não há dúvidas. Claro que não é exatamente igual, esses dois casos [Mandela e
Luther King], por exemplo, demonstram que são lideranças políticas que tinham
propostas que contrariavam o status quo, e a forma de rejeição a essas
propostas foi a prisão de seus líderes. E isso está ainda mais perto de Lula
pois, além de serem propostas que contrariavam o status quo, eram propostas que
tinham o apoio popular. O Nelson Mandela, por exemplo, assim que foi solto,
ganhou com uma tranquila vantagem nas eleições, porque ele mobilizava uma parte
da população. No caso de Luther King também. As marchas de milhares de pessoas,
não só de negros, mas que defendiam os direitos civis mostram isso. Então, como
não é possível derrotar essas lideranças pelas vias democráticas, o
establishment lança mão dos mecanismos de interdição dessas figuras via decisão
judiciária”, explica Dennis de Oliveira.
A
professora Roseli Coelho concorda. “Eu acho que a trajetória do Lula está cada
vez mais parecida com a história do Mandela. Há anos Lula fez uma comparação
com Mandela e a imprensa criticou, o chamou de pretensioso. ‘Magina, comparar
com Mandela?!’, diziam. Ele não se comparou exatamente, mas mencionou em
algumas ocasiões. Eu, como observadora da política brasileira, posso dizer que
a trajetória do Lula o torna, agora com esses acontecimentos, muito parecido
com o Mandela. O Mandela ficou preso por 23 anos, era mais jovem também, mas as
situações são muito parecidas. Mandela ousou. E Lula ousou a distribuir renda
para a população mais pobre, Lula ousou, em um momento de globalização, de
apagamento das soberanias nacionais, em ser nacionalista. E as políticas dos
governos petistas contrariaram muitos interesses. Portanto, eu acho, sim, que a
sua trajetória está cada vez mais parecida com a de Nelson Mandela.”
Foto: Ricardo
Stuckert
Por Ivan
Longo
https://www.revistaforum.com.br/nao-ha-relativismos-lula-e-um-preso-politico/
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