A
crescente imprevisibilidade das decisões proferidas por juízes e tribunais vem
alimentando uma visível descrença no Poder Judiciário.
Esse
fato traz de volta uma velha questão: o Direito, afinal, é uma ciência ou
simples técnica retórica? A resposta a essa pergunta tem suscitado acaloradas
discussões ao longo de várias gerações de juristas.
Tal
debate não se colocava ao tempo dos antigos romanos. O Direito, para eles,
tinha cunho objetivo e eminentemente prático, empregado como instrumento para
consolidar a paz social, inclusive nos vastos territórios que conquistaram.
Após
a queda do Império Romano, a jurisprudência latina incorporou os usos e
costumes dos chamados "povos bárbaros", dando origem a um sistema
híbrido, que mesclava leis escritas e práticas ancestrais, o qual perdurou por
toda a Idade Média.
Com
a prevalência dos ideais iluministas, surgiram as primeiras Constituições,
concebidas para enquadrar o poder político, e também as grandes codificações,
destinadas a racionalizar a intrincada legislação que sobreviveu à época
medieval. Na crença de que esses novos textos esgotavam todo o Direito,
exigiu-se dos juízes que fossem aplicados literalmente, sendo-lhes vedada
qualquer interpretação.
O
aprofundamento da Revolução Industrial fez com que as sociedades se tornassem
mais complexas e dinâmicas, ficando logo evidente que os diplomas legais
recém-editados não logravam abarcar a totalidade do Direito. Como era de
esperar, passaram a apresentar inúmeras lacunas, que tiveram de ser preenchidas
mediante o emprego da analogia e de outros expedientes.
Várias
escolas de hermenêutica, então, se sucederam. Algumas tentaram resgatar a
imperatividade das leis escritas, a exemplo da positivista, cujo maior expoente
foi o austríaco Hans Kelsen (1881-1973).
Outras,
de índole relativista, ao contrário, buscaram ampliar a criatividade dos
juristas, como aquela chefiada pelo alemão Theodor Viehweg (1907-1988).
Viehweg
repudiava o tradicional método interpretativo, consistente em subsumir fatos a
normas previamente selecionadas, segundo um raciocínio lógico-formal. É que ele
concebia o Direito como uma tópica, cujo significado somente poderia ser
desvendado caso a caso, por meio de uma argumentação pontual. Críticos não
tardaram a concluir que tal concepção, levada a extremos, geraria enorme
insegurança.
Parece
que hoje alguns magistrados, sobretudo os da área penal, voltaram a considerar
o Direito uma mera tópica, da qual é possível extrair qualquer resultado. E o
fazem pela adoção desabrida de teorias estrangeiras, em especial germânicas e
anglo-saxônicas, quase sempre incompatíveis com nossa tradição pretoriana, que
extrai o Direito essencialmente de fontes formais.
Chegou
a hora de colocarmos um paradeiro nessa indesejável relativização do Direito, a
qual tem levado a uma crescente aleatoriedade dos pronunciamentos judiciais,
retornando-se a um positivismo jurídico moderado, a começar pelo estrito
respeito às garantias constitucionais, em especial da presunção de inocência,
do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, com os meios e
recursos a ela inerentes.
Ricardo Lewandowski é ministro
do Supremo Tribunal Federal e professor titular de Teoria do Estado da
Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.
Revista Consultor
Jurídico
*Artigo
originalmente publicado na edição desta terça-feira (10/4) do jornal Folha de
S.Paulo, com o título "Direito como tópica"
https://www.conjur.com.br/2018-abr-10/lewandowski-chegou-hora-acabar-relativizacao-juridica
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