Nos
últimos anos, as decisões do Supremo Tribunal Federal têm provocado uma
enxurrada de textos. As pesquisas jurídicas no Brasil chegaram próximo da
definição dada por Hart[1] ao pensamento norte-americano sobre a natureza do
Direito “marcada por uma concentração, quase ao ponto de uma obsessão” pelo
problema da decisão judicial e sobre o modo como os juízes raciocinam ou
deveriam raciocinar em casos específicos.
O
professor Lenio Streck, otimista, afirmava acreditar que o constrangimento
epistemológico que estava sendo feito em relação às decisões faria com que os
membros do Tribunal revisassem sua posição, contudo, parece que devemos
reconhecer que eles não são dados a constrangimentos!
Propomos
então uma reflexão sobre a própria natureza da jurisdição constitucional no
Brasil, e da necessidade de discutirmos uma maior abertura democrática no que
se refere ao processo de escolha dos juízes.
Pois
bem, na obra Jurisdição Constitucional, Hans Kelsen[2] ensina que o órgão
incumbido de anular os atos inconstitucionais deve ser distinto do Parlamento,
independente dele e, portanto, de qualquer outra autoridade estatal: esse órgão
deve ser uma jurisdição ou um tribunal constitucional.
Quanto
à composição das Cortes, Kelsen[3] afirma que não se pode propor um modelo
uniforme de Jurisdição Constitucional para todas as Constituições possíveis,
devendo a organização da jurisdição constitucional adaptar-se às peculiaridades
de cada uma. Contudo, indica as seguintes soluções de alcance e valor gerais:
a)
O número de seus membros não poderá ser muito grande, pois deverá deliberar
sobre questões de direito, cumprindo uma missão puramente jurídica de
interpretação da Constituição. Entre as modalidades de recrutamento mais
típicas, não há como advogar sem ressalvas a eleição pura e simples pelo
Parlamento, nem tampouco a nomeação de responsabilidade exclusiva do Chefe do
Estado ou do governo. Talvez se possa conjugá-las, fazendo com que os juízes
sejam eleitos pelo Parlamento em lista elaborada pelo governo, o qual deveria
designar vários candidatos para cada vaga a preencher;
b)
É de suma importância dar, na composição da jurisdição constitucional, o devido
lugar a juristas profissionais. Um procedimento interessante para tal seria
outorgar às Faculdades de Direito ou a uma comissão de que todas participem o
direito de apresentar candidatos para, pelo menos, parte dos cargos ou, ainda,
outorgar ao próprio tribunal o direito de apresentar candidatos para cada vaga,
que seria provida mediante eleição;
c)
É importante excluir da jurisdição constitucional os membros do Parlamento e do
governo, pois são justamente seus atos os que serão controlados por ela. Manter
a jurisprudência do tribunal a salvo de toda influência política será uma
tarefa tão difícil quanto desejável.
De
modo contrário aos ensinamentos do mestre de Viena, a nomeação dos membros do
STF no Brasil se dá por ingerência do presidente da República, por critério
político, depois de aprovada a escolha por maioria absoluta do Senado Federal,
os quais, na maioria das vezes, não cumprem adequadamente seu papel. A arguição
dos senadores no Brasil é meramente formal, tanto que na história republicana
brasileira, ao longo de 128 anos (1889 a 2017), o Senado rejeitou apenas cinco
indicações presidenciais para o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal –
todas durante o governo Floriano Peixoto (1891 a 1894).[4]
A
forte influência política no tribunal e a relação pessoal entre a entidade
nomeante e o juiz nomeado acabam por comprometer a independência, a
credibilidade e a legitimidade da justiça constitucional no Brasil, tanto que,
atualmente, há mais de trinta propostas de Emenda Constitucional em trâmite no
Congresso Nacional, buscando modificar o modelo de recrutamento dos ministros
do Supremo Tribunal Federal, as quais gravitam em torno de estabelecer um
mandato com prazo determinado (sete a 12 anos), ou a inclusão de outros atores no
processo de escolha dos ministros, como participação da Câmara dos Deputados,
do Senado Federal, do Conselho Nacional de Justiça, do Ministério Público e da
Ordem dos Advogados do Brasil, entre outros.
Contudo,
nenhuma das propostas em tramitação no Parlamento prevê a possibilidade de
eleições para composição dos tribunais. Nesse ponto, entendemos que o modelo
boliviano apresenta vários aspectos positivos, e a análise dos dois processos
eleitorais que já ocorreram no país vizinho (2011 e 2017) é de extrema
relevância para repensar o modelo brasileiro.
Historicamente,
na Bolívia, o Poder Judicial e a Suprema Corte de Justiça foram instáveis e
fracos. Durante o século XX, o Tribunal Supremo foi reorganizado mais de vinte
vezes e, no período de 1900 a 2009, o Tribunal funcionou sem 53% do total de
seus membros, e entre 1900 e 2008, apenas 8% dos juízes cumpriram seu mandato
no cargo.[5]
Com
a promulgação da Constituição boliviana de 2009, os membros da Suprema Corte de
Justiça, do Tribunal Agroambiental, do Tribunal Constitucional Plurinacional e
do Conselho da Magistratura passaram a ser escolhidos por meio de eleição
direta.
O
capítulo da Constituição boliviana que organiza o Poder Judiciário estabelece,
nas disposições gerais, que o poder de distribuir justiça emana do povo
boliviano e é fundado nos princípios da “independência, imparcialidade,
segurança jurídica, publicidade, probidade, velocidade, gratificação,
pluralismo jurídico, interculturalidade, equidade, serviço à sociedade,
participação cidadã, harmonia social e respeito por direitos” (Art. 178 da
Constituição boliviana).[6]
O
Tribunal Constitucional Plurinacional é composto por sete juízas e juízes
titulares e sete juízas e juízes suplentes, todos eleitos via pleito direto
organizado pelo Tribunal Superior Eleitoral. O principal ator no processo
democrático da Bolívia é o Órgão Eleitoral.
A
Constituição boliviana de 2009, na parte que organiza os poderes, inova
inserindo o Órgão Eleitoral como um quarto poder que atua ao lado dos poderes
Executivo, Legislativo e Judiciário. Com isso o processo eleitoral passa a ser
conduzido pelo poder Eleitoral Plurinacional, que tem a mesma hierarquia
constitucional dos demais poderes para garantir a democracia intercultural na
Bolívia.[7]
O
processo para eleição dos juízes que comporão o Tribunal Constitucional
Plurinacional se inicia na Assembleia Legislativa Plurinacional, que recebe as propostas
dos candidatos e realiza a pré-seleção. Os candidatos podem apresentar-se
individual e diretamente ou ser propostos por meio de organizações da sociedade
civil ou nações indígenas ou por universidades públicas ou privadas,
associações profissionais e instituições civis devidamente reconhecidas.[8]
Para
ser elegível para o Tribunal Constitucional Plurinacional, são necessários,
além dos requisitos gerais estabelecidos para os servidores públicos, ter
completado trinta e cinco anos de idade, possuir diploma de Direito e Registro
Público de Advogado, possuir especialização ou experiência de mais de oito anos
nas disciplinas de Direito Constitucional, Administrativo ou Direitos Humanos.
Na
primeira fase, a Assembleia Legislativa Plurinacional examinará o cumprimento
dos requisitos pelos postulantes e publicará a lista dos habilitados, que irão
para a fase de avaliação que é realizada com a participação do Sistema
Universitário Boliviano. Esta etapa é composta pelas fases de avaliação
curricular, avaliação escrita e entrevista. O sistema de avaliação curricular
inclui as seguintes áreas: especialização (Formação Acadêmica e Produção
Intelectual); experiência profissional (trajetória profissional geral e
trajetória profissional específica) e qualidade da autoridade indígena
campesina.[9]
A
etapa de qualificação do mérito é uma etapa excludente para os participantes. A
soma obtida nesta fase será adicionada com a ponderação do exame escrito para
que eles possam ser qualificados para a entrevista. A Comissão Conjunta
entrevistará cada candidato qualificado para avaliar oralmente seu
conhecimento, desenvolvimento, capacidade de argumentação, análise e
comunicação, conhecimento da área, gestão e propostas.
A
Assembleia Legislativa deve obedecer a dois tipos de cotas para os candidatos:
50% devem ser mulheres e, dentre os pré-selecionados deve haver candidatos
oriundos da justiça comunitária e/ou indicados por organizações indígenas. Os
candidatos ao Tribunal Constitucional Plurinacional disputarão a eleição em
nível regional.
A
apresentação dos candidatos ao eleitorado é feita exclusivamente pelo Órgão
Eleitoral, pois assim como qualquer pessoa, não podem realizar campanha
eleitoral em favor de suas candidaturas, sob pena de desqualificação.
Os
sete candidatos mais votados serão os magistrados titulares do Tribunal
Constitucional Plurinacional, e os sete candidatos seguintes na votação serão
suplentes. Pelo menos dois magistrados serão oriundos do sistema indígena
camponês original, por autoidentificação pessoal. Por fim, os eleitos cumprirão
mandatos de seis anos, sem direito à reeleição.
Trata-se
de um método de escolha único na região e no mundo, mas com um cenário
regional. No passado, na América Latina, o sufrágio para eleger juízes foi
implementado no México na Constituição de 1857, na Nicarágua e em Honduras no
século XIX.[10] No entanto, hoje não existe outro país em que juízes dos
tribunais são eleitos por meio do sufrágio universal.
[1]
Hart, H.L.A. Ensaios sobre teoria do direito e filosofia. Rio de Janeiro:
Elsevier, 2010.
[2]
Kelsen, H.A. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
[3]
Kelsen, H.A. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p.
154.
[4]
Mello Filho, J.C. de. Notas sobre o Supremo Tribunal (Império e República). 4.
ed. Brasília, DF: Supremo Tribunal Federal, 2014. Disponível em:
.
Acesso em: 4 fev. 2018.
[5]
Helmke, G.; Ríos Figueroa, J. Introducción. In: Ríos Figueroa, J.; Helmke, G
(Coord.). Tribunales constitucionales en América Latina. México: Suprema Corte
de Justicia de la Nación, 2010. p. 1-46.
[6]
Estado Plurinacional da Bolívia. Constituición Política del Estado
Plurinacional de Bolívia. Disponível em:
. Acesso em: 20 jan. 2018.
[7]
Estado Plurinacional de Bolívia. Órgano Electoral Plurinacional. Lei nº
18/2010. Disponível em:
. Acesso
em: 22 jan. 2018.
[8]
Estado Plurinacional de Bolívia. Órgano Electoral Plurinacional. Reglamento de
Preselección de Candidatas e Candidatos para la Conformación del Tribunal
Constitucional Plurinacional y Tribunal Supremo de Justicia: Art. 11, p. 9.
Disponível em:
. Acesso em: 22 jan. 2018.
[9]
Estado Plurinacional de Bolívia. Órgano Electoral Plurinacional. Reglamento
para las Elecciones de Altas Autoridades del Órgano Judicial y Del Tribunal
Constitucional Plurinacional. 2017. Aprobado mediante Resolución de Sala Plena
TSE-RSP-ADM n° 200/2017 de 24 de mayo 2017. Disponível em:
.
Acesso em: 22 jan. 2018.
[10]
Carey, J. Palace Intrigue: missiles, treason and the rule of law en Bolivia.
Perspectives on Politics, v. 7, n. 2, p. 351-356, 2009.
Tatiane
Alves Macedo é mestre em Direito pela PUC-GO, doutoranda em Direito Público
pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos), professora da Unifimes,
membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos e da Rede para
Constitucionalismo Democrático Latino-americano.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-abr-28/diario-classe-licoes-modelo-boliviano-jurisdicao-constitucional-brasileira
Nenhum comentário:
Postar um comentário