Na
peça A Vida de Galileu, Bertolt Brecht concebe uma cena em que o cientista
toscano fracassa em convencer seus interlocutores (um filósofo, um matemático e
o grão-duque de Florença) a dar uma espiadela pelo telescópio e observar as
luas de Júpiter, o que comprovaria sua tese de que o sistema ptolomaico não era
completo. Eles preferem agarrar-se às suas velhas crenças[1]. Pois, sobre a
presunção da inocência, parece que não adianta também oferecer o telescópio jurídico
para o Movimento que Defende a Prisão Automática em Segunda Instância –
MDEPASEG (dou esse epíteto para não precisar escrever todo o nome). Preferem
não arriscar. Querem ficar com suas crenças punitivistas.
Apesar
disso, vou insistir e tentar mostrar que a tese deles é ptolomaica, e não
completa. Faltou dizer algumas coisas. Vamos lá:
UM. É
induvidoso que a tese central do MDEPASEG está perfectibilizada na Súmula 122
do TRF-4, verbis: "Encerrada a jurisdição criminal de segundo grau, deve
ter início a execução da pena imposta ao réu, independentemente da eventual
interposição de recurso especial ou extraordinário". Vejam: deve ter
início. É obrigatório ter início! E é isso que jornalistas, jornaleiros e juristas
em geral falam todos os dias. É isso que as pessoas respondem quando
questionadas em enquete.
DOIS. O
que não está dito nos manifestos e artigos assinados (consta que o procurador
Dallagnol está em jejum e orando)[2] pelos adeptos desse “movimento” é que há
apenas dois votos favoráveis a essa tese: Roberto Barroso (p.61 da MC ADC 44) e
Luiz Fux (idem, p.65). Ocorre que nem o ministro Edson Fachin, nosso
conservador tardio e que parece estar fazendo trajetória ao avesso do apóstolo
Paulo (Saulo, Saulo, por que me persegues?), votou nesse sentido (mesmo assim,
equivocado, como mostrarei, porque seu voto esqueceu o artigo 283 do CPP).
Portanto, dos 11 ministros, só dois sufragam — stricto sensu — a tese defendida
pelo MDEPASEG, tese também apoiada pela mídia, além de advogados que dizem que
“só no Brasil é que é assim” (sic).
TRÊS. Os
adeptos da prisão automática deveriam olhar no telescópio para ver que,
vingando a tese, qualquer autoridade com foro privilegiado, como juízes,
promotores, deputados, quando condenados em grau único, esgotada estará a
matéria de fato e terão que cumprir a pena. Pau que bate em Chico baterá em
Francisco. Ou será que, para autoridades, a matéria de fato não esgotará em
instância única? Um juiz condenado pelo tribunal (seu foro por prerrogativa),
esgotada também estará a matéria de fato. Logo...
QUATRO.
Olhando pelo telescópio galileico, verão que o Direito Administrativo
sancionador também esgota a matéria de fato. Afinal, por que só o Direito Penal
esgota a matéria de fato? Logo, se um juiz perde o cargo, terá que ser
exonerado — e não só suspenso — imediatamente, independentemente de recurso ao
STJ ou STF. Ou nesses casos a matéria de fato não está esgotada? Por mim, não.
Mas pela tese do MDEPASEG, sim.
CINCO.
Olhando de novo pela luneta epistêmica, perceberão que, vingando a tese
sufragada na Súmula 122 do TRF (e também pelo STJ) — que conforma o fulcro da
tese dos que estão fazendo manifesto para pressionar o STF —, basta que o
legislador aumente, no futuro, penas de crimes que hoje não dão azo à prisão e
bingo. Afinal, a tese não é condenação de segundo grau é igual à prisão? Assim,
se endurecerem as penas e alterarem o dispositivo que fala da substituição de
penas, Chicos e Franciscos facilmente irão parar nos ergástulos, mesmo que haja
nulidade de provas, inversão do ônus probatório, escutas clandestinas “de
boa-fé” (afinal, prova é crença, diz-se já por aí) etc.
SEIS.
Gostaria que olhassem no telescópio para ver como seria a soma da prisão
automática de segundo grau com o pacote anticorrupção que fala em supressão de
HC, prova ilícita de boa-fé e quejandos.
SETE.
Olhando com mais cuidado e sem fanatismo, os adeptos da prisão em segundo grau
veriam que nós, defensores da constitucionalidade do artigo 283 do CPP (nossa
sigla poderia ser MDC283), jamais falamos que prisões estão proibidas. Tendo os
requisitos da preventiva, deve a pessoa responder ao processo presa. Isso não
mudou nem mesmo em 2009.
OITO.
Portanto, é falso afirmarem que a constitucionalidade do artigo 283 libertará
milhares de condenados. Isso é tão verdadeiro como dizer que só-no-Brasil é que
o réu pode responder em liberdade até o julgamento definitivo de seu processo.
É piada afirmar que, dos 194, só o Brasil é exceção. É um disparate.
NOVE.
Vingando a tese de que a condenação de segundo grau gera diretamente a prisão
(segundo dois ministros, o acórdão do segundo grau já é a própria
fundamentação), o sistema prisional — já julgado como estando em Estado de
Coisa Inconstitucional — aumentará consideravelmente. Ao que eu saiba, desde o
ECI o sistema só tem piorado. Logo, o que o próprio STF tem a dizer sobre isso,
se olhar pela luneta de Galileu?
DEZ.
Olhando pelo justelescópio, todos verão que o sistema jurídico sofrerá um
retrocesso e o sistema prisional entrará em colapso, além de sufragar prisões
de pessoas sem antecedentes e/ou que foram condenados por prova ilícita ou
probabilismos e teses exóticas que começam a vicejar nesse neopunitivismo
turbo-3.0. Ou seja, mesmo que não vingue a tese querida pelo MDPASEG e vingue a
do ministro Edson Fachin nas ADCs 43 e 44 (de que a prisão é regra, salvo se
houver efeito suspensivo do recurso) — e, portanto, sejamos derrotados na
defesa da constitucionalidade espelhada do artigo 283 do CPP —, ainda assim
estaremos em grave retrocesso. Isso porque — e a resposta é simples —
condicionar a liberdade depois da decisão de segundo grau ao que quer o
ministro Fachin é ignorar o que os ministros Barroso (STF) e Schietti (STJ)
escreveram para justificar a prisão automática em segundo grau: que menos de 1%
dos recursos criminais obtém êxito no STJ. Isto é, como diria o matemático e
estatístico Conselheiro Acácio, no STJ, segundo os ministros, mais de 99% dos
recursos são indeferidos. Acácio esclarece mais uma vez: isto quer dizer que a
tese do ministro Fachin, no fundo, materialmente se equivale à automaticidade
da prisão. Sem tirar nem pôr.
Solução urgente:
efetivar o acesso à Justiça. Por que ninguém pensou em aumentar o número de
ministros do STJ de 33 para 330? Infelizmente, prefere-se fazer jurisprudência
defensiva. E, pior, usá-la para justificar a prisão em segundo grau. Engraçado.
É uma tese autofágica ou autoimplosiva. O STJ, com apenas uma dezena de
ministros para julgar matéria criminal para um país de mais de 200 milhões de
pessoas, nega quase 100% dos recursos. Em vez de melhorar o acesso, impede-se o
recurso. Essa tese parece a do paradoxo do queijo suíço: o melhor queijo é o
suíço; que é melhor porque tem furos; mais furos, melhor queijo; mais furos,
menos queijo; menos queijo, melhor queijo. Moral da história: o queijo ideal é
o não queijo. No Brasil, o sistema ideal é zero de possibilidade de recurso.
CONCLUSÃO.
Eis o telescópio à disposição para observar as luas de Júpiter. Só não vê quem
não quer. Imaginem alguém (i) cuja denúncia é recebida por in dubio pro
societate (denúncia, por exemplo, oferecida pelo promotor de Goiás que
acompanha mandado de prisão vestido de militar, com roupa camuflada e tudo),
(ii) é sentenciado por um juiz que diz que devemos ter medo do Judiciário, cuja
decisão ignora a tese de que houve prova ilícita e que, (iii) em segundo grau,
cai em um órgão fracionário daqueles que os advogados apelidam de Câmara de
Gás. Vingando a tese da prisão direta (como consta da Súmula 122), vai direto para
a prisão. Escapando do filtro do 1% de que falaram os ministros Barroso e
Schietti, constata-se, três anos depois, que a prova era ilícita. A vida do réu
já estará desgraçada pelo sistema em ECI. E assim por diante. Um juiz faz
inimizades na comarca. Armam contra ele. Julgamento do TJ; condenado. Vai
cumprir pena direto. Mesmo que consiga provar, depois, a armação.
Por
isso, ofereço a luneta democrática. A luneta garantidora. Deem uma mirada.
POST
SCRIPTUM: para lembrar: No medievo, a tortura era legalizada. Mas o réu podia
recorrer. Só que o recurso não tinha efeito suspensivo. Executava-se na hora.
Afinal, a matéria de fato (ferro quente no lombo e arrancamento das unhas) já
estava esgotada. Qualquer semelhança... A propósito: falando de medievo, é bom
lembrar que o ex-presidente do STF Cezar Peluso disse que nossas cadeias
eram... O que mesmo? Masmorras medievais. Pois é.
[1]
Inspirado em coluna de Hélio Schwartzman, na Folha de S.Paulo.
[2]
Cá para nós, é escalafobética (para dizer pouco) essa performance
fundamentalista de Deltan Dallagnol jejuando pela prisão automática de segundo
grau. Se Deus existe (e vejam, sou devoto de Nossa Senhora de Lourdes), porque
Ele seria um punitivista como Dallagnol? Por que Deus, em sua infinita
misericórdia, não seria a favor da possibilidade de alguém — condenado
injustamente — ter a seu favor uma decisão recursal reconhecendo ter havido
prova ilícita (ou a bobagem do probabilismo) no STJ? Ou no STF? Que tipo de
Deus é esse de Dallagnol? Se Deus atendesse ao pedido de Dallagnol, estaria
negando o pedido de milhões de outros cristãos. Isso é como no futebol. Deus
não se mete. Tem mais coisas para fazer. Dallagnol esquece que é agente
político do Estado. E não um torcedor. Deveria incluir Deus fora desse tipo de
comportamento político. Sua performance depõe contra a secularização ínsita a
qualquer democracia. Espero que saiba o que é secularização. Explico: não se
deve misturar religião com Estado (e com o Direito). Isso vale também para o
juiz Bretas, que estaria orando pelas prisões diretas em segundo grau.
Provavelmente, ambos teriam condenado Jesus por organização criminosa (afinal,
eram mais de quatro) com base na delação premiada de Judas.
Lenio Luiz Streck é jurista,
professor de Direito Constitucional e pós-doutor em Direito. Sócio do
escritório Streck e Trindade Advogados Associados
Revista Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-abr-02/streck-presuncao-inocencia-10-pontos-nao-jejuar
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