O
termo alemão Zeitgeist é hoje usado em diferentes línguas para designar o clima
cultural, intelectual e moral de uma dada época, literalmente, o espírito do
tempo. Na idade moderna, dada a persistência da ideia do progresso, uma das
maiores dificuldades em captar o espírito de uma dada época reside em
identificar as continuidades com épocas anteriores, quase sempre disfarçadas de
descontinuidades, inovações, rupturas. O que permanece de períodos anteriores é
sempre metamorfoseado em algo que simultaneamente o denuncia e dissimula e, por
isso, permanece sempre como algo diferente do que foi sem deixar de ser o
mesmo. As categorias que usamos para caracterizar uma dada época são demasiado
toscas para captar esta complexidade, porque elas próprias são parte do mesmo
espírito do tempo que supostamente devem caracterizar a partir de fora. Correm
sempre o risco de serem anacrónicas, pelo peso da inércia, ou utópicas, pela
leveza da antecipação.
Tenho
defendido que vivemos em sociedades capitalistas, coloniais e patriarcais, por
referência aos três principais modos de dominação da era moderna: capitalismo,
colonialismo e patriarcado ou, mais precisamente, hetero-patriarcado. Nenhuma
destas categorias é tão controversa quanto a de colonialismo. Fomos todos tão
socializados na ideia de que as lutas de libertação anticolonial do século XX
puseram fim ao colonialismo que é quase uma heresia pensar que afinal o
colonialismo não acabou, apenas mudou de forma ou de roupagem, e que a nossa
dificuldade é a de a nomear adequadamente. É certo que os analistas e os
políticos mais avisados tiveram a percepção aguda desta complexidade, mas as
suas vozes não foram suficientemente fortes para pôr em causa a ideia
convencional de que o colonialismo propriamente dito acabara, com excepção de
alguns poucos casos (o Sahara Ocidental, a colónia hispano-marroquina que
continua subjugando o povo saharaui e a ocupação da Palestina por Israel).
Entre essas vozes, saliento Pablo Gonzalez Casanova e o seu conceito de
colonialismo interno para caracterizar a permanência de estruturas de poder
colonial nas sociedades que emergiram no século XIX das lutas de independência
nas Américas. E o líder africano, Kwame Nkrumah, primeiro Presidente da
República do Gana, com o seu conceito de neocolonialismo para caracterizar o
domínio que as antigas potências coloniais continuavam a deter sobre as suas
antigas colónias.
O
que terminou com os processos de independência do século XX foi uma forma
específica de colonialismo, e não o colonialismo como modo de dominação. A
forma que terminou foi o que se pode designar por colonialismo histórico
caracterizado pela ocupação territorial estrangeira. Mas o modo de dominação
colonial continuou sob outras formas. O colonialismo como modo de dominação
assente na degradação ontológica das populações dominadas por razões
etno-raciais está hoje tão vigente e violento como no passado. Às populações e
aos corpos racializados não é reconhecida a mesma dignidade humana que é
atribuída aos que os dominam. São populações e corpos que, pese embora todas as
declarações universais dos direitos humanos, são existencialmente considerados
sub-humanos, seres inferiores na escala do ser, facilmente descartáveis. Foram
concebidos como parte da paisagem das terras “descobertas” pelos
conquistadores, terras que, apesar de habitadas por populações indígenas, foram
consideradas como terras de ninguém. Foram também considerados como objectos de
propriedade individual, de que é prova histórica a escravatura. E continuam
hoje a ser populações e corpos vítimas do racismo, da xenofobia, da expulsão
das suas terras para abrir caminho aos megaprojectos mineiros e agro-industriais
e à especulação imobiliária, da violência policial e das milícias
paramilitares, do tráfico de pessoas e de órgãos, do trabalho escravo designado
eufemisticamente como “trabalho análogo ao trabalho escravo”, da conversão das
suas comunidades de rios cristalinos e florestas idílicas em infernos tóxicos
de degradação ambiental. Vivem em zonas de sacrifício, a cada momento em risco
de se transformarem em zonas de não-ser.
As
novas formas de colonialismo são mais insidiosas porque ocorrem no âmago de
relações sociais dominadas pelas ideologias do anti-racismo, dos direitos
humanos universais, da igualdade de todos perante a lei. O colonialismo
insidioso é gasoso e evanescente, tão invasivo quanto evasivo, em suma,
ardiloso. Mas nem por isso engana ou minora o sofrimento de quem é dele vítima
na sua vida quotidiana. Floresce em apartheids sociais não institucionais mesmo
que sistemáticos. Ocorre nas ruas e nas casas, nas prisões e nas universidades,
nos supermercados e nas esquadras de polícia. Disfarça-se facilmente de outras
formas de dominação tais como diferenças de classe e de sexo ou sexualidade.
Verdadeiramente só é captável em close-ups, instantâneos do dia-a-dia. Em
alguns deles, o colonialismo insidioso surge como saudade do colonialismo, como
se fosse uma espécie em extinção que tem de ser protegida e multiplicada. Eis
alguns desses instantâneos.
Primeiro.
Um dos últimos números de 2017 da revista científica Third World Quarterly,
dedicada aos estudos pós-coloniais, incluía um artigo de autoria de Bruce
Gilley, da Universidade Estadual de Portland, intitulado “Em defesa do
colonialismo”. Eis o resumo do artigo: “Nos últimos cem anos, o colonialismo
ocidental tem sido muito maltratado. É chegada a hora de contestar esta
ortodoxia. Considerando realisticamente os respectivos conceitos, o
colonialismo ocidental foi, em regra, tanto objectivamente benéfico como
subjectivamente legítimo na maior parte dos lugares onde ocorreu. Em geral, os
países que abraçaram a sua herança colonial tiveram mais êxito do que aqueles
que a desprezaram. A ideologia anticolonial impôs graves prejuízos aos povos a
ela sujeitos e continua a impedir, em muitos lugares, um desenvolvimento
sustentado e um encontro produtivo com a modernidade. Há três formas de Estados
fracos e frágeis recuperarem hoje o colonialismo: reclamando modos coloniais de
governação; recolonizando certas áreas; e criando novas colónias ocidentais.” O
artigo causou uma indignação geral e 15 membros do conselho editorial da
revista demitiram-se. O autor acabou por retirar o artigo da versão electrónica
da revista; mas permaneceu na versão impressa. Foi um sinal dos tempos? Afinal,
o artigo fora sujeito a revisão anónima por pares. A controvérsia mostrou que a
defesa do colonialismo estava longe de ser um acto isolado de um autor
tresloucado.
Segundo.
O Wall Street Journal de 22 de Março passado publicou uma reportagem intitulada
“A procura de sémen americano disparou no Brasil”. Segundo a jornalista, a
importação de sémen americano por mulheres solteiras e casais de lésbicas
brasileiras ricas aumentou extraordinariamente nos últimos sete anos e os
perfis dos doadores seleccionados mostram a preferência por crianças brancas e
com olhos azuis. E acrescenta: “A preferência por dadores brancos reflecte uma
persistente preocupação com a raça num país em que a classe social e a cor da
pele coincidem com grande rigor. Mais de 50% dos brasileiros são negros ou
mestiços, uma herança que resultou de o Brasil ter importado dez vezes mais
escravos africanos do que os Estados Unidos. Os descendentes de colonos e
imigrantes brancos… controlam a maior parte do poder político e da riqueza do
país. Numa sociedade tão racialmente dividida, ter descendência de pele clara é
visto muitas vezes como um modo de providenciar às crianças melhores
perspectivas, seja um salário mais elevado ou um tratamento policial mais
justo.”
Terceiro.
Em 24 de Março passado, o mais influente jornal da Africa do Sul, Mail &
Guardian, publicou uma reportagem intitulada “Genocídio branco: como a grande
mentira se espalhou para os Estados Unidos e outros países”. Segundo o
jornalista, “O Suidlanders, um grupo sul-africano de extrema-direita, tem vindo
a estabelecer contacto com outros grupos extremistas nos Estados Unidos e na
Austrália, fabricando uma teoria da conspiração sobre genocídio branco com o
objectivo de conseguir apoio internacional para sul-africanos brancos. O grupo,
que se autodescreve como ‘uma iniciativa-plano de emergência’ para preparar uma
minoria sul-africana de cristãos protestantes para uma suposta revolução
violenta, tem-se relacionado com vários grupos extremistas (alt-right) e seus
influentes contactos mediáticos nos Estados Unidos para erguer uma oposição
global à alegada perseguição a brancos na África do Sul… O ministro australiano
dos Assuntos Internos disse ao Daily Telegraph que estava a considerar vistos
rápidos para agricultores sul-africanos brancos, os quais precisavam de ‘fugir
de circunstâncias atrozes’ para ‘um país civilizado’. Segundo o ministro, os
ditos agricultores ‘merecem atenção especial’ por causa de ocupação de terras e
violência… Tem também sido prestada mais atenção a agricultores sul-africanos
brancos na Europa, onde políticos da extrema-direita com contactos directos com
a extrema-direita (alt-right) nos Estados Unidos têm solicitado ao Parlamento
Europeu que intervenha na África do Sul. Agentes políticos contra os refugiados
no Reino Unido estão igualmente ligados à causa.”
A
grande armadilha do colonialismo insidioso é dar a impressão de um regresso,
quando o que regressa nunca deixou de estar.
https://www.geledes.org.br/o-colonialismo-insidioso-por-boaventura-sousa-santos/
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