O
uso da palavra “golpe” para designar os acontecimentos políticos de 2016, no
Brasil, tornou-se motivo de disputa. Trata-se de algo recorrente: como “golpe”
possui conotação negativa, remetendo a uma ação que foge às regras e é
desenhada para pegar o oponente desavisado. Na maior parte dos contextos,
“golpe” remete a um ato de deslealdade. Nenhum agente político a reivindica
para si. “Golpista” é, sempre, o outro. As forças que derrubaram o presidente
João Goulart por meio de um levante militar não admitiam ter desferido um
golpe; enquanto estiveram no poder, o nome oficial daquela ação foi “Revolução
de 1964”. E assim por diante.
Isso
não quer dizer, porém, que a palavra “golpe” seja oca, despida de qualquer
significado para além de seu uso interessado na controvérsia política. Com o
passar do tempo, uma compreensão razoavelmente consensual do processo histórico
recente há de se decantar. Não por imposição do dono do poder no momento, não
por portaria ministerial, mas pelo debate no campo científico, tal como ocorreu
com a derrubada de Jango em 1964.
A
grande maioria dos cientistas sociais respeitáveis – isto é, que são levados a
sério por seus pares – sustenta que ocorreu, em 2016, uma ruptura ilegal da
ordem liberal-democrática então vigente no Brasil. Mas é necessário reconhecer
que, até por conta da ofensiva intensa e por vezes agressiva do governo e de
seus apoiadores para impedir que se fale em “golpe”, o debate ainda está vivo.
Tenta-se impor o uso de impeachment como termo “neutro”, mas – como costuma
acontecer – a neutralidade tem lado. Ao tomar a forma pela essência, o uso de
impeachment, sem qualquer outra qualificação, representa uma efetiva negação da
existência de um golpe.
Para
que o debate avance, é preciso construir um conceito de golpe político que não
seja arbitrário – isto é, que seja sensível à especificidade das
circunstâncias, mas também esteja fundado no uso historicamente estabelecido da
expressão. Afinal, como dizia Wittgenstein, o significado de uma palavra se
busca no seu uso. Um conceito assim nos permitirá diferenciar as situações
concretas. Mais ainda, creio que, construído de forma rigorosa, este conceito
permitirá a caracterização do impedimento da presidente Dilma Rousseff, em
2016, como “golpe”, no sentido que a (boa) ciência política deve dar à palavra.
Há
dois argumentos mobilizados pelos opositores da definição do impeachment de
2016 como golpe, que devem ser analisados previamente, a fim de desbastar o
terreno e poder avançar numa definição. Primeiro, o fato de que rituais legais
foram obedecidos. Uma denúncia foi apresentada ao presidente da Câmara dos
Deputados, a denúncia foi acatada, formou-se uma comissão que decidiu dar
seguimento ao processo, o plenário da Câmara aprovou e encaminhou ao Senado
etc. A cada passo, falaram representantes da defesa e da acusação. O Supremo
Tribunal Federal, guardião da Constituição, deu seu beneplácito a tudo. Do que
reclamar, então?
Ocorre
que a lei não se esgota na formalidade. Se um cidadão é considerado culpado de
um crime, por um juiz ou um tribunal de júri, sem que exista nenhuma evidência
contra ele e sem que provas de sua inocência sejam levadas em conta, não vamos
dizer que a lei foi obedecida. Também o golpe de 1964 quis se revestir de
respeito a legalidade: por exemplo, convocou o Congresso para declarar a
vacância da Presidência da República. É necessário investigar, portanto, a
substância do processo contra Dilma, cujo ponto de partida foi a chantagem de
Eduardo Cunha. Não vou aprofundar a questão do crime de responsabilidade. A
grande maioria dos juristas sérios apontou a inexistência de crime de
responsabilidade nos fatos relatados na denúncia; para uma análise aprofundada
e desapaixonada, indico, entre muitos outros possíveis, o texto de Marcelo
Labanca Corrêa de Araújo e Flavio José Roman publicado no portal jurídico Jota;
vale a pena consultar, ainda, o artigo do cientista político Frederico de
Almeida, especialista na atuação do Poder Judiciário, em outro portal jurídico,
o Justificando.
As
alegadas “pedaladas fiscais” não provêm fundamento suficiente, seja porque não
consistem em atos de responsabilidade pessoal direta do chefe do Poder
Executivo, seja porque não constituem crime contra a lei orçamentária, tal como
tipificado no capítulo 5 da lei 1.079/1950, que regula o processo de
impeachment no país e as possibilidades para que ele seja desencadeado. A
“pedalada” pode ter sido um pecadilho, segundo aqueles que acreditam que a
manobra era necessária para manter o financiamento dos programas sociais, como
queria o governo, ou uma contravenção mais grave, de acordo com a visão mais
alinhada com o regime de terror contábil que a Lei de Responsabilidade Fiscal
estabeleceu como marca da boa administração pública. Mas crime certamente não
foi.
Ninguém
nega que ações fiscais similares às então imputadas como crime foram realizadas
por todo os presidentes desde Fernando Henrique Cardoso, sempre com aprovação
do Poder Legislativo. Continuaram sendo praticadas por Michel Temer. Foram e
são praticadas por vários governadores estaduais. O afastamento de Dilma
Rousseff, em desacordo ao tratamento dado em casos similares, violou os
princípios da impessoalidade da lei e da isonomia.
Em
suma, no mínimo havia margem de dúvida suficiente para que se evitasse uma
medida tão drástica quanto a deposição de uma governante eleita pelo voto
popular. A maior parte dos parlamentares, na verdade, desprezou a acusação na
hora de condenar a presidente, falando em “conjunto da obra” e alegando que era
um “julgamento político” (como se isso significasse que os elementos
comprobatórios pudessem ser desprezados, quando na verdade significa que as
consequências políticas devem ser pesadas em adição às provas). Há pouca margem
para duvidar que o que ocorreu foi a busca de um pretexto para retirar do cargo
a presidente.
O
segundo argumento contra a caracterização da deposição de Dilma como golpe é a
ausência de um momento militar, aquele em que as forças armadas tomam a frente
do processo e substituem o governo por um ato indisfarçado de violência. Mas há
muitos casos, aqui mesmo perto de nós, em que a presença das forças armadas foi
bem menos evidente. Os dois exemplos mais óbvios foram a deposição dos
presidentes Manuel Zelaya, de Honduras, em 2009, e de Fernando Lugo, do
Paraguai, em 2012. Lembro também do “autogolpe” de Alberto Fujimori, no Peru,
em 1992, mas lá a participação militar foi mais visível. Fala-se, em relação a
estes processos, e em relação ao Brasil também, de “golpe de novo tipo” ou
“golpe brando”.
Creio,
no entanto, que o que esses golpes de novo tipo fazem é limpar o conceito de
golpe de seu qualificativo implícito (“militar”), isto é, permitem que
entendamos que o golpe militar, por mais frequente que seja ou tenha sido, é
apenas um subtipo de uma categoria mais ampla, o golpe, tout court. A presença
das forças armadas é esperada pelo fato de que elas dispõem dos meios
privilegiados para produzir uma intervenção disruptiva na ordem política, que
são os meios da violência física, e pelo fato de que, caso a legalidade conte
com sua lealdade e com a disposição de que elas sejam acionadas, os golpes de
outro tipo dificilmente prosperarão.
Há
situações, porém, em que as forças armadas se abstêm de uma intervenção direta,
por fatores diversos e não necessariamente excludentes. Um deles pode ser uma
determinada compreensão profissional de sua “neutralidade política”, impedindo
uma ação mais determinada em favor da legalidade. Outro é o entendimento, por
parte de setores simpáticos à derrubada ilegal do governo, de que sua presença
faria ampliar a rejeição à empreitada golpista e mesmo alienaria alguns de seus
participantes – como tende a ocorrer em países que têm fresca a memória de
ditaduras saídas de golpes militares, o que é o caso do Brasil. Nestas
situações, está aberta a possibilidade de um golpe não-militar, em que as
forças armadas se mantêm passivas ou apenas manifestam uma inclinação discreta
em favor dos golpistas.
É
importante lembrar que a linguagem corrente, que não esgota o conceito, mas se
relaciona com ele, trabalha com dois sentidos paralelos. O golpe remete à
violência física, como um golpe de caratê, mas também a um ardil, ao uso da
astúcia, como, por exemplo, quando falamos do “golpe do bilhete premiado”. Isso
é importante exatamente para lembrar que o golpe tout court não exige a
presença da violência física. Mas o golpe político, que é o que nos interessa,
como é definido?
Há
uma literatura já de séculos para discutir golpe – e eu aqui me inspiro
fortemente nos trabalhos de dois colegas, o prof. Alvaro Bianchi, da Unicamp, e
o prof. Renato Perissinotto, da UFPR, que, no contexto mesmo do golpe de 2016,
tiveram o trabalho de recuperar essa discussão. Com uma abordagem diferente, o
trabalho do linguista Sírio Possenti, professor da Unicamp, também foi muito
útil.
No
século XVII, Gabriel Naudé, um maquiaveliano francês, definia o golpe de Estado
como uma ação arrojada e extraordinária, que o príncipe executa quando está em
situação desesperada, “contrariamente à lei comum, sem manter qualquer forma de
ordem ou justiça, colocando de lado o interesse particular em benefício do bem
público”. Vejam que Naudé apresenta uma definição bastante positiva de golpe de
Estado, vinculando-o à promoção do bem comum. Se esta fosse a definição
dominante, Temer hoje estaria batendo no peito e dizendo, com orgulho, “sou
golpista” – e estaria, creio eu, bastante errado.
Temos
que entender o contexto intelectual em que o autor se movia. Naudé associava o
bem público ao bem do Estado (a “razão de Estado”) e sobrepunha o príncipe ao
Estado. Portanto, uma aplicação aos dias de hoje, em que essas percepções se
encontram vencidas, certamente é anacrônica. Mas podemos reter dois elementos
desta definição seiscentista. O primeiro é que o conceito não inclui o recurso
à violência física. Os exemplos que o próprio autor dá em geral incluem
carnificinas, o que é natural, uma vez que a política feita entre as elites, no
século XVII, era muito mais marcada pela violência aberta do que hoje, mas o
conceito não contempla este aspecto.
O
segundo elemento a reter da definição de Naudé é que o golpe é uma ação fora
das regras, contrária à lei, desferida por quem já dispõe de poder. Por isso,
podemos pensar num golpe de Estado praticado pelos militares, pelo parlamento,
pelo judiciário, mesmo por um presidente ou um rei que buscam ampliar seu poder
(como Luís Bonaparte em 1851 ou Pedro I em 1824), mas não por camponeses pobres
ou sem-teto.
Eu
me detive um pouco nesse ponto de partida, mas não tenho intenção de fazer um
percurso muito longo. Passo diretamente à obra talvez mais famosa desta
literatura, o livro Técnica do golpe de Estado, escrito em 1931 pelo italiano Curzio
Malaparte, que era militante do Partido Fascista e deixou de sê-lo por causa
desta obra. Malaparte define o golpe de Estado como sendo simplesmente a tomada
do poder pela força. Golpe de Estado e revolução são englobados numa mesma
definição.
Como
observou Bianchi, a literatura posterior não segue este caminho e distingue as
duas ideias. Acompanho o texto do professor da Unicamp e aponto, como exemplo
seguinte, o livro de Edward Luttwak, um especialista em questões militares que
serviu ao Departamento de Estado dos Estados Unidos. Seu livro de 1969, Coup
d’etat: a practical handbook, distingue três tipos de mudança extralegal no
poder: a conspiração palaciana, cujo centro é o próprio governante; o golpe de
Estado, em que funcionários do Estado se colocam contra a liderança política; e
a insurreição popular.
Embora
a definição em si seja mais ampla, o próprio Luttwak a restringe indicando o
protagonismo das forças militares no golpe de Estado. Essa percepção era
dominante sua época. Por exemplo, Alan Wells, que nos anos 1970 escreveu sobre
golpes em países africanos, disse que golpe é “a captura pela força (forceful
seizure) da maquinaria de governo do Estado” e que são os militares que “devem
agir para provocar um golpe de estado”. No entanto, há aqui também um efeito de
contexto, já que, como bem apontou Perissinotto, é “uma definição bastante
adequada para descrever as derrubadas de governo na África subsaariana nos anos
1960”, mas não necessariamente para outros tempos e lugares.
Vou
trazer a discussão para a América Latina, que é mais próxima de nós. Sofremos,
nos anos 1960 e 1970, uma série de golpes de Estado. Embora a participação de
civis tenha sido importante (no caso do Uruguai, por exemplo, o presidente Juan
María Bordaberry, um civil, foi quem deflagrou o golpe em 1973), é impossível
negar o protagonismo dos militares. A grande maioria dos regimes nascidos dos
golpes se alinhava à direita, mas houve também o golpe de 1968 no Peru, que
levou ao poder o general Velasco Alvarado, com um programa socialista.
Nos
anos 1980, vivemos a era das “transições democráticas”, endossadas por muitos
dos grupos que haviam apoiado a ruptura política pró-autoritária anos antes.
Creio que a experiência recente das ditaduras chefiadas pelas forças armadas
ajuda a explicar porque o elemento militar não se encontra à frente dos golpes
contemporâneos. Há a memória de que as forças armadas, uma vez que empalmam o
poder, podem contrariar os interesses de seus antigos aliados. Em 1964, por
exemplo, muitos políticos que apoiaram a derrubada de Jango imaginavam que os
militares manteriam as eleições presidenciais do ano seguinte e eles poderiam
disputar (sem os candidatos de esquerda, todos presos, exilados e com direitos
cassados) – e deu no que deu.
E
há o entendimento de que uma fachada, mesmo que mínima, de respeito à
democracia e às leis vigentes reduz os custos de dominação. É por isso que
Carlos Barbé, no Dicionário de política organizado por Norberto Bobbio, Niccola
Mateucci e Gianfranco Pasquino, indica que nosso entendimento de golpe de
Estado precisa ser ajustado ao constitucionalismo moderno; o golpe tem como
momento central a substituição do governo, em desacordo com as regras
constitucionais, por integrantes do Estado. Seu agente, portanto, não precisa
estar vinculado às forças armadas.
Eu
me alinho, assim, à definição operacional sucinta que Bianchi oferece: “golpe
de estado é uma mudança institucional promovida sob a direção de uma fração do
aparelho de Estado que utiliza para tal de medidas e recursos excepcionais que
não fazem parte das regras usuais do jogo político”. Seu sujeito pode ser uma
ou outra parte do Estado ou então uma coalizão delas; seus meios podem incluir,
para voltar às categorias de Maquiavel, a força ou a astúcia, podem ser
abertamente ilegais ou então torcer a lei de maneira a descaracterizá-la por
completo.
Com
essa definição em mãos, é possível encontrar mais uma evidência crucial de que
passamos por um golpe de 2016: o comportamento do novo governo, após a
deposição de Dilma Rousseff. Antes era denunciado e no atual momento está
amplamente demonstrado que não se tratou de uma intervenção pontual, destinada
a retirar uma governante indesejada por alguns, o que já constituiria uma
ilegalidade, mas foi o momento fundador de um amplo realinhamento das forças
políticas e de implantação de um projeto político que, submetido às regras até
então vigentes, havia sido repetidas vezes derrotado nas urnas.
Este
é um elemento que me parece extremamente importante. A ruptura de 2016 facultou
a implantação de um projeto que não conseguira sucesso seguindo as regras
imperantes do jogo político. Portanto, mesmo que se afirme que é duvidosa a
ilegalidade do afastamento da presidente (tese da qual discordo), ou seja, que
o impeachment não foi golpe, fica claro que ao menos o impeachment foi usado
para se desferir um golpe.
Dizer
que foi um golpe não é uma forma de desqualificar o atual governo. Como falei,
seria possível atribuir um sentido positivo ao golpe, bater no peito e dizer
“sim, eu golpeei a Constituição, mas foi para o bem de todos”. Entender que foi
um golpe, não a mera substituição de uma presidente, é fundamental para
compreender a natureza, a profundidade e a abrangência das transformações em
curso no país.
Muitos
que falam em golpe não entendem isso. Um dos fatores de confusão foi o
comportamento de alguns setores derrotados com o golpe, inclusive dentro do
próprio PT, que denunciavam o golpe e ao mesmo tempo agiam como se fosse
possível reconstituir no curto prazo a ordem política fraturada ou mesmo como
se o jogo pudesse continuar a ser jogado como antes – por exemplo, no episódio
das negociações para a montagem das mesas da Câmara e do Senado. Mesmo agora a
ficha não caiu completamente para todos, como mostram algumas das movimentações
sobre alianças eleitorais ou então a continuidade da crença de que basta obter
a maioria na competição eleitoral para ter a palavra final sobre as disputas em
curso.
Não
foi só uma mudança em quem ocupa a presidência. É uma mudança profunda, que se
pretende definitiva, imposta unilateralmente e em desrespeito à lei por grupos
de dentro do Estado, nas regras do jogo político. Em uma palavra: é mesmo um
golpe.
Este texto é um resumo
da primeira aula da disciplina “Tópicos especiais em Cência Política 4: O golpe
de 2016 e o futuro da democracia no Brasil”, do curso de bacharelado em Ciência
Política da Universidade de Brasília.
https://www.diariodocentrodomundo.com.br/nao-foi-so-mudanca-em-quem-ocupa-presidencia-resumo-da-1a-aula-do-curso-sobre-o-golpe-na-unb/
Nenhum comentário:
Postar um comentário