A
ação direta de inconstitucionalidade é uma das ações do controle concentrado de
constitucionalidade, também chamado de controle abstrato. O manejo da refira
ação se justifica para expurgar lei ou ato normativo que ingresse no
ordenamento jurídico contendo vício de inconstitucionalidade.
Decretos
emanados pelo Poder Executivo são passíveis de controle de constitucionalidade,
quando o seu conteúdo for normativo autônomo, ou seja, quando o seu teor
derivar diretamente do texto constitucional. É cediço que decretos com conteúdo
meramente administrativos, que regulamentem leis infraconstitucionais, não são
passíveis de controle de constitucionalidade pela via concentrada.
Há
um importante debate a respeito da necessidade de generalidade e abstração do
decreto para que este possa ser objeto de ADI. Decretos de efeitos concretos
não são atacáveis através de ações do controle concentrado. No caso do decreto
que institui a intervenção federal no Rio de Janeiro, o seu conteúdo é
genérico, pois não é possível identificar um destinatário certo, os afetados
pela norma serão todos os cidadãos do estado, turistas, até mesmo pessoas em
trânsito que atravessarem o território durante a vigência da medida.
No
tocante à abstração do ato normativo, esta também é identificável, na medida
que o decreto não prevê ações específicas, pontuais, apenas esclarece de forma
abstrata o âmbito de atuação do interventor, os recursos disponíveis e assinala
o limite temporal de vigência do decreto. A norma teria um efeito concreto caso
trouxesse em seu bojo expressões como: “O interventor ocupará a região, x, y,
z”. Ou seja, caso o texto estabelecesse de forma precisa exatamente o que
poderia ou não ser feito pelo interventor.
Dessa
feita, tem-se que o decreto de intervenção federal no estado do Rio de Janeiro
é passível de controle de constitucionalidade através de ação direita de
inconstitucionalidade, posto que nasceu eivado por vícios formais e materiais
de constitucionalidade.
Sob
o ponto de vista formal, o trâmite exigido para a decretação da intervenção não
foi observado, visto que o chefe do Poder Executivo Federal não ouviu os
conselhos da República e o Conselho de Defesa Nacional, conforme dispõe o texto
constitucional em seus artigos 90, inciso I e 91, parágrafo 1º, inciso II. A
oitiva dos conselhos é obrigatória, embora a doutrina explique que a opinião
deles não é vinculante.
Tal
exigência compõe o sistema de freios e contrapesos da Carta Magna, que tem por
escopo impedir que uma medida tão grave seja tomada assim, de forma atabalhoada
e irrefletida. O Conselho da República, além de diversas autoridades, possui em
sua composição seis cidadãos brasileiros natos. O intuito de viés claramente
democrático do constituinte originário ao estabelecer essa exigência da oitiva
dos conselhos era permitir que a população (por meio desses representantes)
pudesse participar desse importante momento decisório.
Essa
etapa do procedimento para decretação de uma intervenção federal foi
simplesmente ignorada solenemente pelo chefe do Poder Executivo Federal. Pelo
que foi noticiado pela mídia, o presidente apenas se reuniu com alguns
políticos de maior afinidade, de maneira totalmente informal e ao arrepio do
que exige a Constituição, decidindo pela intervenção federal de forma autônoma.
Sob
o ponto de vista do objeto da intervenção, a justificativa apresentada no
decreto figura no rol das hipóteses que autorizam uma intervenção federal,
artigo 34, inciso III da CF: “Pôr termo a grave comprometimento da ordem
pública”. Contudo, importa analisar o contexto, a fim de aferir-se se
materialmente a intervenção se sustenta.
É
relevante compreender o que é e para que serve uma intervenção federal. O
instituto foi importado do Direito anglo-saxão, precisamente da Constituição
norte-americana, e introduzido no Direito brasileiro em nossa Constituição de
1891, se mantendo com poucas alterações ao longo de todas as Cartas Políticas
brasileiras.
Raul
Machado Horta classifica a intervenção federal na área da patogenia
legislativa, isto é, uma intervenção é uma anomalia, uma exceção. O autor
explica que:
“Uma
Intervenção Federal está para a federação assim como o efeito tóxico dos
remédios está para o organismo humano. Muitas vezes, tomam-se remédios tóxicos
para a recuperação de uma enfermidade. Porém, estes tóxicos somente são
empregados para resolver problema mais sério do que sua própria toxicidade.
Logo que a saúde esteja recuperada, desprezam-se os tóxicos, porque senão
haverá efeito contrário a saúde poderá ser prejudicada. A Intervenção federal
está nessa mesma situação. Só pode ser usada para restabelecer situação insana,
patogênica”[1].
A
intervenção federal fragiliza o pacto federativo, posto que a União retira a
autonomia de um ente federado, o estado-membro. Ainda que, no caso à baila,
apenas parcialmente, no tocante à segurança pública. Mas ainda assim existe uma
ruptura da normalidade, colocando o país em uma situação de excepcionalidade,
que traz efeitos importantes, como a proibição da alteração do texto
constitucional.
Assim
sendo, uma medida dessa importância só poderia ser tomada caso fosse imperiosa
a sua necessidade. Um exemplo da adequada utilização dessa medida foi a
decretação da intervenção federal, também no estado do Rio de Janeiro, em 1923,
quando Feliciano Sodré e Raul Fernandes disputaram as eleições para o governo
do estado e ambos foram considerados eleitos e tomaram posse, criando uma
irregularidade institucional insanável. Diante desse quadro, que colocava o
estado em uma situação de total impasse, inviabilizando a sua governabilidade,
justificou-se a intervenção federal, para regularizar o cenário político.
A
intervenção tem esse caráter pontual, assertivo. Não tem o condão de se
substituir ao representante eleito, tomando para si a responsabilidade de sanar
algo que é próprio da administração pública.
Nesse
sentido, é relevante refletir sobre o período estabelecido no decreto, até 31
de dezembro de 2018. Vejamos. A Constituição fala em “pôr termo”, depreende-se
dessa expressão pôr fim ao problema, em um prazo razoável. Se a União precisará
de um ano para resolver o problema, ela revela possuir a mesma deficiência que
o estado-membro para solucionar a questão. O que torna sem sentido a
intervenção.
Analisando-se
o que a Carta Magna diz em relação ao Estado de defesa e ao Estado de sítio,
que se tratam de espécies mais gravosas de intervenção (lato senso) da União em
outros entes federativos, visto que servem à manutenção da ordem em uma
situação de grave instabilidade ou calamidades de grandes proporções, existe um
prazo estabelecido para que a União consiga resolver o conflito.
O
decreto do Estado de defesa ou de sítio não pode ter um prazo superior a 30
dias, podendo ser prorrogado apenas uma vez, no caso do Estado de defesa.
Comparando-se as situações, algo mais grave precisa ser resolvido em um prazo
mais curto.
De
maneira que não soa lógico ou razoável a União intervir no estado do Rio de
Janeiro durante um ano. Até porque a razão da recente intervenção na verdade se
fundamenta em supostamente sanar um problema que não se trata de uma situação
excepcional, mas, sim, de algo que faz parte do cotidiano da cidade. Resolver
os problemas atinentes à segurança pública é da responsabilidade do
representante eleito para o cargo de chefe do Poder Executivo estadual. O
problema na segurança pública no estado do Rio de Janeiro já existia quando o
então governador foi eleito. Se ele não se sentia habilitado para resolvê-lo,
não deveria ter se candidatado.
É
fato notório que a situação de calamidade na segurança pública do Rio de
Janeiro já existe há muito tempo. Não se tem notícia de nenhum agravamento
substancial ou mesmo algum episódio significativo de distúrbio que ensejasse
uma ação dessa magnitude.
Já
existiam algumas ações em parceria entre o governo estadual do Rio de Janeiro e
o governo federal, por meio das Missões de Garantia da Lei e da Ordem dentro de
comunidades e outros locais pontuais. Sendo essa a medida mais adequada para
ajustar o problema da segurança pública — o auxílio mútuo —, não a intervenção
federal.
Ainda
no tocante à análise do aspecto da inconstitucionalidade material, resta
evidente o desvio de finalidade da medida, analisando-se a declaração do
presidente no sentido de que fará cessar a intervenção para a votação da
reforma da Previdência, posto que os trâmites da proposta de emenda
constitucional são vedados ao longo da vigência da intervenção federal, no
termos do artigo 60, parágrafo 1º da CF.
Ora,
ou bem a situação é de tal gravidade que torna a intervenção federal
indispensável e, portanto, não pode ser interrompida por interesses outros; ou,
se ela pode ser cessada, a intervenção é desnecessária e se revela
flagrantemente inconstitucional, tanto pelos vícios formais aventados, como
materialmente inconstitucional, por se demonstrar descabida a sua decretação.
Por
fim, importa dizer que o Supremo Tribunal Federal, ao julgar a Intervenção
Federal 3.977, de 24 de junho de 2003, indeferiu o pedido de intervenção no
estado de São Paulo, por entender que o inadimplemento das contas estaduais se
devia à insuficiência de recursos financeiros, exaustão do erário, ou seja,
havia uma justificativa para a situação, e a União não conseguiria resolver o
problema por meio de uma intervenção. Qual a razão de trazer essa informação?
Para mencionar que o STF faz uma análise da eficácia da intervenção.
De
maneira que se faz necessário indagar: é minimamente crível que a União
conseguirá pôr fim ao problema da segurança pública no Rio de Janeiro apenas
com a presença do Exército nas ruas? O Exército resolverá as diferenças
sociais? O Exército desmantelará as redes de tráfico de drogas e armas, que,
sabidamente, envolvem pessoas que não vivem nas comunidades pobres?
Se
as respostas forem negativas, a intervenção não possui razão de existir, logo,
se revela formalmente (pelas razões já mencionadas no início do artigo) e
materialmente inconstitucional, sendo atacável através de ação direta de
inconstitucionalidade.
[1] MELO, José Tarcísio
de Almeida. O Direito Constitucional do Brasil. Ed. Rey. 2008, pag. 575.
Adriana
Cecilio é advogada e professora de Direito Constitucional.
Revista
Consultor Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-fev-20/adriana-cecilio-intervencao-rio-passivel-controle-adi

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