O
Direito brasileiro experimenta um estado de controvérsia jurídica: institutos
de tradição alienígena legalmente incorporados transitam em alarmante estado de
incertezas; a Constituição da República, ao argumento de melhor interpretá-la,
é rescrita, esquecida ou simplesmente violada; discursos judiciais subversivos
à disciplina legal do processo penal afrontam a própria democracia; a expansão
desenfreada do papel do Judiciário para além do conteúdo originário constitucional
põe em risco a separação de Poderes.
No
processo penal, por exemplo, apesar de as convenções de Palermo e Mérida,
subscritas e ratificadas pelo Brasil, conterem previsão expressa de diversos
instrumentos de combate ao crime organizado — como a delação premiada —, estes
necessitam de uma internalização no Direito pátrio; precisam de compatibilidade
democrática. Entretanto, sua transposição e adoção sem maiores cuidados e
adequações à realidade jurídica e cultural cria grande risco de incrementar o já
colossal descompasso do sistema processual acusatório, catapultando o país de
volta à inquisição.
Ainda
no tempo de faculdade aprendemos na cadeira de processo penal acerca de um
famoso caso constitucional americano, Miranda v. Arizona1, no qual restou
estabelecido que a confissão do acusado sem que lhe tenha sido oferecida a
oportunidade de manter-se em silêncio resultava na ilicitude da prova obtida
através de tal meio. Daí porque chamamos a essa advertência de Miranda
warnings.
Nos
Estados Unidos, há de ser dito que, caso o acusado decida falar, não possuirá
ele o direito de mentir e não poderá responder apenas ao que for do seu
interesse. Se vier a falar e mentir, será passível de ser processado por
perjúrio, tal como qualquer outra testemunha do processo. Então, se uma vez
advertido decidir falar, assumirá as consequências conforme a disciplina legal
estadunidense.
No
Brasil, por sua vez, o interrogatório é visto como ato de defesa, sendo
deferido o direito de responder às perguntas que sejam pertinentes e adequadas
à sua estratégia. É explícita a disposição legal, como corolário da previsão
constitucional, de que o acusado tem o “direito de permanecer calado e de não
responder perguntas que lhe forem formuladas” (artigo 186, CPP), inclusive em
consonância com os tratados internacionais de que o Brasil é signatário2.
O
direito do acusado/investigado de se manter em silêncio ou responder apenas ao
que lhe interessa tem causado um certo desconforto a alguns atores jurídicos,
como, por exemplo, a um procurador da República presente em audiência da
operação "lava jato", ocasião em que deixou explícita sua indignação
em relação ao exercício do direito constitucional do acusado — a que chamou de
estratégia "indigna e covarde"3.
A
estratégia de se manter em silêncio ou de responder apenas às perguntas
formuladas pelo juízo e pela defesa, e de se recusar a falar com o Ministério
Público, ao contrário do que sustenta a juíza da 1ª Vara Criminal de Brasília,
em sentença no Processo 2007.01.1.122602-44, não configura deslealdade
processual ou desequilíbrio dos instrumentos processuais em benefício da
defesa. O silêncio seletivo, expressão adotada pela magistrada na aludida
sentença, é instituto que inexiste no cenário jurídico brasileiro, não havendo
qualquer fundamento teórico ou suporte convencional, constitucional ou legal
para que se interprete desfavoravelmente ao acusado seu exercício estratégico
de calar.
O
que implica, também, na impossibilidade de conduzir coercitivamente o
acusado/investigado à audiência, tendo em vista que o seu não comparecimento ao
ato expressa o exercício da autodefesa manifestada através da opção por não
falar5. Não se olvide que, em determinadas posições processuais, nada resta ao
acusado senão o exercício do direito ao silêncio, configurando, a um só tempo,
“liberdade de expressão, direito a não se incriminar e exercício da garantia à
ampla defesa”6.
Os
discursos subversivos à disciplina legal do processo penal são não apenas
arriscados para o sistema processual penal, constituem uma afronta à própria
democracia. A expansão do papel do Judiciário brasileiro para além do conteúdo
democrático presente na Constituição culmina por desorganizar a separação de
Poderes tal como preconizada na CF/88. Tornou-se difícil distinguir o papel de
interpretar a lei do de simplesmente criar novos conteúdos normativos de
caráter abstrato. Na verdade, estamos assistindo ao surgimento de uma
juristocracia absolutista, em que o rei (Judiciário) — pensa que — não erra.
Qualquer um tem o direito ao, assim chamado, silêncio seletivo, podendo
perguntar ao seu advogado, a cada pergunta, sobre a conveniência estratégica da
resposta. Isso é democracia processual.
1
384 U.S. 436 (1966).
2
Nesse sentido, a Convenção Americana de Direitos Humanos: “Art. 8 (...) 2.Toda
pessoa acusada de delito tem direito a que se presuma sua inocência enquanto
não se comprove legalmente sua culpa. Durante o processo, toda pessoa tem
direito, em plena igualdade, às seguintes garantias mínimas: (…) g. direito de
não ser obrigado a depor contra si mesma, nem a declarar-se culpada”. Assim
também o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos: “Artigo 14. (…)
3. Toda pessoa acusada de um delito terá direito, em plena igualmente, a, pelo
menos, as seguintes garantias: (…) g) De não ser obrigada a depor contra si
mesma, nem a confessar-se culpada”.
3
https://www.conjur.com.br/2018-jan-18/procurador-mpf-revolta-direito-constitucional-silencio.
4
https://www.conjur.com.br/2018-jan-31/juiza-reclama-silencio-seletivo-reus-acao-penal.
5
MORAIS DA ROSA, Alexandre; AGUIAR, Michelle. O regime da condução coercitiva no
Processo Penal do Espetáculo. Encontrado em
http://emporiododireito.com.br/qualoregime-da-conducao-coercitiva-no-processo-penal-do-espetaculo-por-alexandre-morais-da-rosaemichelle-aguiar.
Acesso em 2/2/2017.
6
ROCHA, Jorge Bheron. ROCHA, J. BHERON. O Processo Penal do Espetáculo:
Interceptações Telefônicas, Conduções Coercitivas e Impeachment. In: UCHOA,
Marcelo Ribeiro; UCHOA, Inocêncio Rodrigues; GOMES, Antônio José de Sousa;
ALVES, Letícia. (Org.). O Ceará e a Resistência ao Golpe de 2016. 1ed. Bauru:
Canal 6, 2016, v. 1, p. 93
Alexandre
Morais da Rosa é juiz em Santa Catarina, doutor em Direito pela UFPR e
professor de Processo Penal na UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) e
na Univali (Universidade do Vale do Itajaí).
Jorge
Bheron Rocha é defensor público do estado do Ceará, professor de Direito e
Processo Penal, mestre em Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito
da Universidade de Coimbra e doutorando em Direito Constitucional na Unifor.
Mariella
Pitari é defensora pública do estado do Ceará, especialista em Direito Público,
alumni do Institute for U.S Law, Washington DC, e aluna do programa Master of
Law em Cornell University.
Revista Consultor
Jurídico
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