Olga
Prestes (1908-1942) foi uma militante comunista que nasceu na Alemanha, onde
também morreu, num campo de concentração. Conviveu com Luís Carlos Prestes, com
quem teve uma filha. A entrega de Olga, pelas autoridades brasileiras, em favor
do governo nazista, quando estávamos na ditadura de Vargas, qualifica-se como
uma das maiores nódoas da história do Direito brasileiro. Olga fora presa no
Brasil, junto com Prestes. Na visão de biógrafo (ao meu ver equivocada) de um
de seus algozes, Filinto Müller, Olga apenas fingia ser cônjuge de Prestes1.
Certamente, há por parte do biógrafo algum desprezo para com as cartas trocadas
entre Olga e Prestes, que revelam intenso afeto2.
Olga
simboliza mulher que viveu, lutou e morreu pelos ideais. Sua trajetória
impressiona. Olga, segundo o escritor Fernando Morais, não se importava em
“(...) continuar na prisão, pois sabia que um dia tanto ela quanto Prestes
acabariam sendo libertados. O que a aterrorizava era a perspectiva de ser
enviada ao seu país de origem (...) cair nas mãos de Hitler, para ela que, além
de judia, era comunista, seria o fim de tudo”3. À sua condição de judia e
comunista, acrescenta-se um problema de gênero. Olga foi uma mulher martirizada
por uma Justiça de homens. Protagonizou um caso de misoginia jurídica.
Invocou-se
conceito de interesse público para se justificar a expulsão de Olga do Brasil,
com anuência do Supremo Tribunal Federal. O caso de Olga é de uma violência
jurídica que indica mais uma terrível mancha na história do Direito brasileiro.
Em favor de Olga atuou Heitor Lima, advogado corajoso, que impetrou um Habeas
Corpus absolutamente inusitado. O HC é utilizado para que se retirem presos
(pacientes) das prisões. No caso de Olga, o pedido era invertido. Pretendia-se
que Olga fosse mantida na prisão (no Brasil). Assim, evitar-se-ia sua entrega
para a Gestapo, temível polícia do regime nazista.
Olga
estava grávida. Havia mais interesses em jogo. A crueza e a formalidade do
procedimento de expulsão de Olga ilustram justiça que não se fez, solidariedade
humana que não houve, violência que se perpetrou. A petição inicial de Habeas
Corpus, protocolada pelo advogado Heitor Lima em defesa Olga, argumentava que
ela não poderia ser expulsa e que deveria permanecer no Brasil. Aqui deveria
ser julgada.
Olga
estava na Casa de Detenção, no Rio de Janeiro, em situação de rigorosa
incomunicabilidade. O advogado de Olga insistia que sua cliente deveria ser
julgada no Brasil, e não na Alemanha, porque era acusada do cometimento de
crimes no Brasil, e não na Alemanha de Hitler. E porque Olga supostamente teria
cometido crime no Brasil, aqui mesmo no Brasil deveria ser julgada, processada
e eventualmente penalizada, se comprovada sua culpa. O que se esperava era tão
somente a condução do procedimento dentro das regras claras do devido processo
legal.
Além
do que, porque Olga estava grávida, a pena passaria da pessoa do acusada. Olga
não possuía recursos financeiros para pagar as custas do processo. Requereu-se
gratuidade da Justiça, que foi negada. O vestido que Olga vestia na prisão era
o mesmo que usava quando foi presa. Seus poucos bens, apreendidos pela polícia,
quando de sua prisão, não lhe foram restituídos.
Em
virtude da negativa do processamento do pedido de isenção de custas, o advogado
de Olga recolheu tais valores, pagando-os do próprio bolso. Com o pagamento
juntou passagem que se revela como um dos momentos mais emocionantes da
história do Direito brasileiro:
“Se
a justiça masculina, mesmo quando exercida por uma consciência do mais fino
quilate, como o insigne presidente da Corte Suprema, tolhe a defesa a uma
encarcerada sem recursos, não há de a história da civilização brasileira
recolher em seus anais judiciários o registro desta nódoa: a condenação de uma
mulher, sem que a seu favor se elevasse a voz de um homem no Palácio da Lei. O
impetrante satisfará as despesas do processo. Rio de Janeiro, 4 de junho de
1936. Heitor Lima”.
O
pedido de Habeas Corpus foi negado pelo Supremo Tribunal Federal, com base no
artigo 2º do Decreto 702, de 21 de março de 1936. Os ministros não conheceram
do pedido, com exceção dos ministros Carlos Maximiliano, Carvalho Mourão e
Eduardo Espínola, que conheceram e indeferiram.
Olga
foi deportada. Presa na Alemanha, aguardando a morte em um campo de
concentração, cuidando da criança recém-nascida, Olga manteve permanente
correspondência com Prestes. Enquanto aguardava desfecho de situação
imprevisível, Olga cuidava da criança que nasceu na prisão alemã. Trata-se do
deslocamento da pena: a criança pagou pela condenação da mãe.
Em
8 de novembro de 1937, Olga escrevia a Prestes que fora obrigada a desmamar a
pequena garota que tinham. Pressentia que, em breve, a criança seria afastada.
Em carta de 12 de fevereiro de 1938, quando Olga completava 30 anos, escrevia e
lembrava que passara os dias mais tristes da vida: a criança fora dela
retirada. Com a avó, a garota encontrava-se fora da prisão. Em 11 de março,
Olga escrevia que fora removida para a Alemanha central, dizia-se acamada, com
febre, devido a uma crise de fígado. Em 5 de novembro de 1941, Olga escrevia a
última carta que dela Prestes recebeu. Nela, Olga perguntava que flores Prestes
preferiria na mesa: tulipas vermelhas ou rosas?
A
execução teria vindo logo em seguida.
1
Cf. ROSE, R. Sem Teoria Geral do Estado pela USP. O Homem mais perigoso do
país, Biografia de Filinto Müller, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,
2017, p. 111.
2
PRESTES, Anita Leocádia e PRESTES, Lygia (org.). Anos Tormentosos - Luiz Carlos
Prestes - Correspondência da Prisão (1936-1945). Rio de Janeiro: Paz e Terra,
2002.
3
MORAIS, Fernando. Olga. São Paulo: Alfa-Ômega, 1989, p. 187.
Arnaldo Sampaio de
Moraes Godoy é livre-docente em Teoria Geral do Estado pela USP e doutor e
mestre em Filosofia do Direito e do Estado pela PUC-SP. Tem MBA pela FGV-ESAF e
pós-doutorados pela Universidade de Boston (Direito Comparado), pela UnB
(Teoria Literária) e pela PUC-RS (Direito Constitucional). Professor e
pesquisador visitante na Universidade da Califórnia (Berkeley) e no Instituto
Max-Planck de História do Direito Europeu (Frankfurt).
Revista
Consultor Jurídico
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