sexta-feira, 2 de fevereiro de 2018

ANTON TCHEKHOV, O CONTISTA FILANTROPO MAIS IMPORTANTE DA RÚSSIA CZARISTA. Por Carlos Russo Jr

Lênin, ao terminar a leitura do mais genial dos contos de Tchekhov, comentou com sua irmã: “Tive uma estranha sensação, não consegui mais ficar em meu quarto… era como se eu próprio estivesse preso na Enfermaria n.6. Nessa noite, não preguei os olhos.”

Tchekhov foi um escritor que jamais escreveu um romance. Sempre foram contos, no máximo novelas que se fixam em aspectos banais do cotidiano, numa escrita absolutamente sem floreios desnecessários, onde os textos são modestamente concisos. Assim fazendo, ele soube como ninguém extrair dos mais distintos aspectos da natureza humana uma diversidade assombrosa de efeitos.

“Todos os grandes sábios são despóticos e mal educados como os generais, pois estão convictos de sua impunidade”. Esta foi a resposta de Tchekhov a seu inspirador e amigo mais velho, Lev Tolstoi, quando este chamou os médicos de inúteis.

Isto porque Tchekhov era médico por paixão, acreditava na ciência como geradora do progresso, inimiga, pois, das condições miseráveis do camponês russo. Via na “resistência ao mal e na resistência passiva”, assim como no desprezo à cultura propostas pelo gigante criador de “Guerra e Paz”, como lorotas reacionárias! “Há mais amor ao homem na eletricidade e no vapor do que na castidade e no jejum”, escreveu numa outra carta a Tolstoi.

Agnóstico convicto, não poderia concordar com o cristianismo heterodoxo do mestre. “Proibir ao homem a direção materialista significa lhe vetar a busca da verdade, pois fora da matéria não existe experimento, não existe ciência, e, tão pouco, verdade.”

Tchekhov dizia que desposara a medicina, mas que a literatura era sua amante. Tanto em uma como em outra atividade, era extremamente dedicado e modesto, sabia que por mais que se esforçasse sempre ficaria restaria, perante suas limitações, uma pergunta na mente do médico, do literato e do humanista: “Mas o que fazer?”

Anton Tchekhov nasceu em 1860, filho de um servo liberto. Enquanto quase todos os grandes escritores russos anteriores à Revolução de 1917 originaram-se da aristocracia, o caso de Puschkin, Gogol, Tolstoi, Turgueniev e mesmo o de Dostoievski, duas grandes exceções, Tchekhov e Máximo Gorki foram pobres de nascença e identificados com na plenitude com a alma dos humildes e degradados. Aliás, desde que ambos se conheceram, tornaram-se amigos para sempre.

Como médico, Tchekhov jamais titubeou em ajudar os que o procuravam. Não teve consultório particular, pois odiaria cobrar por uma consulta, sua vocação era a ação hospitalar. Mesmo em meio a epidemias de peste, lá viajava ele tentando salvar vidas. Já doente dos pulmões arriscou a vida em viagens a ilhas desoladas, onde eram confinados presos em trabalho forçado. Seus relatórios médicos propiciaram a conquista de algumas melhorias para os infelizes condenados.

Com muito esforço conseguiu mobilizar comunidades e autoridades para abertura de escolas, melhorias hospitalares e habitacionais para os camponeses. Esse amigo dos homens, um verdadeiro filantropo, ainda foi um dos primeiros a crer na importância da psicologia para tratamento de enfermos mentais.

Como escritor, principiou elaborando folhetins burlescos, que assinava com um pseudônimo jocoso. Mesmo nessa época, quando escrevia algo engraçado e divertido, seu realismo colocava a nu a vida, na sociedade decadente da década de 1880, sob o reinado ultrarreacionário de Alexandre III. Era a vida morna, abafada, monótona, de um povo mergulhado no obscurantismo, a vida dos “pobres diabos” que passa a ser retratada em contos.

Por isso mesmo, desde o princípio, seu trabalho literário alicerçava-se num princípio de que juntas, a tristeza crítica e a revolta, expressem o desejo de uma sociedade melhor, uma vida mais pura e livre.

Sobre ele escreveria Máximo Gorki em 1900: “Em termos de estilo, Tchekhov é insuperável, e o futuro historiador da literatura, ao refletir sobre a língua russa dirá: essa língua foi criada por Puschkin, Turgueniev e Tchekhov.”

Sua primeira novela “séria” causou e causa enorme sensação! Trata-se da obra-prima  “Enfermaria n.6”. Um médico já na maturidade, entediado com o mundo abestalhado e miserável que o cerca, trava amizade com um louco interessante, inteligente, que ele mesmo mandara internar na enfermaria n.6.

Seu desencanto com o mundo e para consigo mesmo, fizera com que tratasse os pacientes com pouco caso, sua medicina tornara-se um ofício maçante, burocrático, uma repetição de procedimentos sem envolvimento com os pacientes. Também, no decorrer da vida, fora-se isolando das pessoas comuns por não suportá-las. Termina por admitir uma única exceção: o intelectual amalucado que ele, por fastio, mandara internar na enfermaria para alienados. Ao final, ele próprio também é colocado atrás das grades daquela enfermaria.

Nessa novela, onde não entra o amor e a compaixão para nada, temos o simbolismo cru da desesperança, da humilhação do ser humano pela prepotência indolente de outros seres humanos. A enfermaria, que serve de depósito para alienados, prisão sem crime e nem sentença formal, fede a morgue, a merda, a lixo.

Sobre a novela escreveu Elsa Triolet, a escritora e crítica que um dia se apaixonara por Maiakovski: “A censura é uma dama distraída, pois não se pode de outra maneira, explicar que tenha deixado passar esta novela”. Na época, as pessoas sensíveis viram na “Enfermaria n.6” uma representação da própria Rússia Czarista, onde os homens mais lúcidos eram enclausurados e, quando se inconformavam com a reclusão, recebiam os golpes de policiais boçalizados.

A partir de então, a capacidade inventiva de Tchekhov demonstrou ser prodigiosa, praticamente inesgotável!  Escreveu mais de 500 contos literários!

Ao ler “A crise”, escreveu Gorki: “Sinto quase dor física quando se fala de Tchekhov demasiado alto, desrespeitosamente. Depois deste conto, considero-o um escritor que possui à perfeição um talento humano sutil, uma sensibilidade magnífica à dor e à mágoa dos homens, embora eu estranhe ao ver que ele não tenha sensibilidade para as alegrias da vida.”

Realmente, a alegria não pairava no presente em que Tchekhov escrevia seus contos, mas talvez estivesse além, numa esperança indefinida de redenção social e humana.

Um exemplo importante é o conto magistral denominado “Uma história enfadonha”. O relato é feito por um sábio famoso internacionalmente, mas que no fundo de si mesmo possui a autocrítica suficiente para não levar a sério a fama e a devoção que lhe prestavam. No fundo, o sábio se sabe uma alma desesperançada, sua vida é vazia de sentido, ele é um ser desesperançado consigo mesmo. “Se dentro do ser humano não existir algo mais forte e mais elevado do que todas as circunstâncias exteriores, então basta um resfriado para que ele perca o equilíbrio e todo seu otimismo junto com suas pequenas e grandes ideias se reduzam a sintomas, a mais nada.”

“Acontece que eu não gosto da popularidade de meu nome. É como se ela estivesse me enganando,” diz em confissão o narrador, Nicolai Stepanicht. Ou seria o próprio Tchekhov ao perceber sua fama crescente tanto na Rússia como no exterior? Sua modéstia era grande demais para vivenciá-la, ou pelo menos aceitá-la.

Em seus últimos anos dez anos de vida, pois faleceu em 1904, aos 44 anos de idade, lutou todo o tempo contra a tuberculose; mesmo assim, ou talvez por isso mesmo, por ter pouco tempo, nunca se poupou, trabalhou noite e dia. “Desprezo a preguiça, assim como desprezo a fraqueza e a apatia dos movimentos da alma. Para viver bem, como um homem digno deste nome, é preciso trabalhar, trabalhar com amor e fé.”

Nos anos 1900, principiou a produzir peças teatrais. Sua primeira peça teatral a ser encenada foi “A gaivota”. Durante a montagem da mesma, Tchekhov conheceu a atriz Olga Knipper, com quem se casaria.

Como o público não estava acostumado a que se teatralizasse sobre o cotidiano das pessoas, o qual é quase sempre banal, “A gaivota” não foi, inicialmente, nem sucesso de público e nem de crítica.

O sucesso teatral de Tchekhov tardaria ainda um pouco. No ano seguinte surgiria “Tio Vânia”, depois, “Duas irmãs” e, em 1904, sua última peça, o drama “O jardim das cerejeiras.”

Uma observação lúcida sobre o conjunto da obra teatral nos indica que as personagens criadas por Tchekhov, de uma maneira geral, estragam sempre a própria vida pois, de certa forma, sentem em si a inutilidade do viver.

“Ninguém compreendeu tão lucida e finamente a tragédia das trivialidades da vida; ninguém antes dele mostrou aos homens, com tão impiedosa verdade, o retrato terrível e vergonhoso de suas vidas, no turvo caos da existência cotidiana da pequena burguesia”, escreveu Máximo Gorki a respeito das peças teatrais do amigo.

Em 1900, Tchekhov, símbolo do naturalismo russo, vai a Paris e acompanha pessoalmente o desenrolar do caso Dreyfus e toma posição ao lado do maior naturalista francês,  Zola, contra o antissemitismo e a condenação de um inocente. Endossa o “J’acuse”.

Em 1901, retornando à Rússia, abandona a prestigiosa Academia de Ciências em solidariedade à expulsão da mesma de Máximo Gorki, acusado de subversão pelo próprio Czar, Nicolau II.

Questionado, o coerente Tchekhov escreveu a um amigo: “Uma vida consciente, sem uma visão de vida consciente, não é vida, é apenas um peso e um susto”.

E em tom profético, em um de seus últimos escritos, sentenciou: “Sapos e crocodilos vão em breve reinar na Rússia. Pessoas de visão estreita, com pretensões ilimitadas, gente inteiramente desprovida de escrúpulos literários e sociais farão sua aparição. Tornarão o ar absolutamente irrespirável, aborrecendo-nos da literatura, deixando o campo livre para charlatães.”

E até em seus últimos momentos de vida, Anton Tchekhov seguiu trabalhando, contando histórias de um mundo precário, sempre na dúvida do que fazer para que uma difusa esperança viesse a libertar os espíritos: a verdade e a maneira serena de ser. Talvez ambas pudessem preparar o mundo e a sociedade para uma vida melhor, mais bela, mais digna de ser vivida, livre dos sapos e crocodilos de visão estreita e fome ilimitada de poder.






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