Lênin,
ao terminar a leitura do mais genial dos contos de Tchekhov, comentou com sua
irmã: “Tive uma estranha sensação, não consegui mais ficar em meu quarto… era
como se eu próprio estivesse preso na Enfermaria n.6. Nessa noite, não preguei
os olhos.”
Tchekhov
foi um escritor que jamais escreveu um romance. Sempre foram contos, no máximo
novelas que se fixam em aspectos banais do cotidiano, numa escrita
absolutamente sem floreios desnecessários, onde os textos são modestamente
concisos. Assim fazendo, ele soube como ninguém extrair dos mais distintos
aspectos da natureza humana uma diversidade assombrosa de efeitos.
“Todos
os grandes sábios são despóticos e mal educados como os generais, pois estão
convictos de sua impunidade”. Esta foi a resposta de Tchekhov a seu inspirador
e amigo mais velho, Lev Tolstoi, quando este chamou os médicos de inúteis.
Isto
porque Tchekhov era médico por paixão, acreditava na ciência como geradora do
progresso, inimiga, pois, das condições miseráveis do camponês russo. Via na
“resistência ao mal e na resistência passiva”, assim como no desprezo à cultura
propostas pelo gigante criador de “Guerra e Paz”, como lorotas reacionárias!
“Há mais amor ao homem na eletricidade e no vapor do que na castidade e no
jejum”, escreveu numa outra carta a Tolstoi.
Agnóstico
convicto, não poderia concordar com o cristianismo heterodoxo do mestre.
“Proibir ao homem a direção materialista significa lhe vetar a busca da
verdade, pois fora da matéria não existe experimento, não existe ciência, e,
tão pouco, verdade.”
Tchekhov
dizia que desposara a medicina, mas que a literatura era sua amante. Tanto em
uma como em outra atividade, era extremamente dedicado e modesto, sabia que por
mais que se esforçasse sempre ficaria restaria, perante suas limitações, uma
pergunta na mente do médico, do literato e do humanista: “Mas o que fazer?”
Anton
Tchekhov nasceu em 1860, filho de um servo liberto. Enquanto quase todos os
grandes escritores russos anteriores à Revolução de 1917 originaram-se da
aristocracia, o caso de Puschkin, Gogol, Tolstoi, Turgueniev e mesmo o de
Dostoievski, duas grandes exceções, Tchekhov e Máximo Gorki foram pobres de
nascença e identificados com na plenitude com a alma dos humildes e degradados.
Aliás, desde que ambos se conheceram, tornaram-se amigos para sempre.
Como
médico, Tchekhov jamais titubeou em ajudar os que o procuravam. Não teve
consultório particular, pois odiaria cobrar por uma consulta, sua vocação era a
ação hospitalar. Mesmo em meio a epidemias de peste, lá viajava ele tentando
salvar vidas. Já doente dos pulmões arriscou a vida em viagens a ilhas
desoladas, onde eram confinados presos em trabalho forçado. Seus relatórios
médicos propiciaram a conquista de algumas melhorias para os infelizes
condenados.
Com
muito esforço conseguiu mobilizar comunidades e autoridades para abertura de
escolas, melhorias hospitalares e habitacionais para os camponeses. Esse amigo
dos homens, um verdadeiro filantropo, ainda foi um dos primeiros a crer na
importância da psicologia para tratamento de enfermos mentais.
Como
escritor, principiou elaborando folhetins burlescos, que assinava com um
pseudônimo jocoso. Mesmo nessa época, quando escrevia algo engraçado e
divertido, seu realismo colocava a nu a vida, na sociedade decadente da década
de 1880, sob o reinado ultrarreacionário de Alexandre III. Era a vida morna,
abafada, monótona, de um povo mergulhado no obscurantismo, a vida dos “pobres
diabos” que passa a ser retratada em contos.
Por
isso mesmo, desde o princípio, seu trabalho literário alicerçava-se num
princípio de que juntas, a tristeza crítica e a revolta, expressem o desejo de
uma sociedade melhor, uma vida mais pura e livre.
Sobre
ele escreveria Máximo Gorki em 1900: “Em termos de estilo, Tchekhov é
insuperável, e o futuro historiador da literatura, ao refletir sobre a língua
russa dirá: essa língua foi criada por Puschkin, Turgueniev e Tchekhov.”
Sua
primeira novela “séria” causou e causa enorme sensação! Trata-se da
obra-prima “Enfermaria n.6”. Um médico
já na maturidade, entediado com o mundo abestalhado e miserável que o cerca,
trava amizade com um louco interessante, inteligente, que ele mesmo mandara
internar na enfermaria n.6.
Seu
desencanto com o mundo e para consigo mesmo, fizera com que tratasse os
pacientes com pouco caso, sua medicina tornara-se um ofício maçante,
burocrático, uma repetição de procedimentos sem envolvimento com os pacientes.
Também, no decorrer da vida, fora-se isolando das pessoas comuns por não
suportá-las. Termina por admitir uma única exceção: o intelectual amalucado que
ele, por fastio, mandara internar na enfermaria para alienados. Ao final, ele
próprio também é colocado atrás das grades daquela enfermaria.
Nessa
novela, onde não entra o amor e a compaixão para nada, temos o simbolismo cru
da desesperança, da humilhação do ser humano pela prepotência indolente de
outros seres humanos. A enfermaria, que serve de depósito para alienados,
prisão sem crime e nem sentença formal, fede a morgue, a merda, a lixo.
Sobre
a novela escreveu Elsa Triolet, a escritora e crítica que um dia se apaixonara
por Maiakovski: “A censura é uma dama distraída, pois não se pode de outra maneira,
explicar que tenha deixado passar esta novela”. Na época, as pessoas sensíveis
viram na “Enfermaria n.6” uma representação da própria Rússia Czarista, onde os
homens mais lúcidos eram enclausurados e, quando se inconformavam com a
reclusão, recebiam os golpes de policiais boçalizados.
A
partir de então, a capacidade inventiva de Tchekhov demonstrou ser prodigiosa,
praticamente inesgotável! Escreveu mais
de 500 contos literários!
Ao
ler “A crise”, escreveu Gorki: “Sinto quase dor física quando se fala de
Tchekhov demasiado alto, desrespeitosamente. Depois deste conto, considero-o um
escritor que possui à perfeição um talento humano sutil, uma sensibilidade
magnífica à dor e à mágoa dos homens, embora eu estranhe ao ver que ele não
tenha sensibilidade para as alegrias da vida.”
Realmente,
a alegria não pairava no presente em que Tchekhov escrevia seus contos, mas
talvez estivesse além, numa esperança indefinida de redenção social e humana.
Um
exemplo importante é o conto magistral denominado “Uma história enfadonha”. O
relato é feito por um sábio famoso internacionalmente, mas que no fundo de si
mesmo possui a autocrítica suficiente para não levar a sério a fama e a devoção
que lhe prestavam. No fundo, o sábio se sabe uma alma desesperançada, sua vida
é vazia de sentido, ele é um ser desesperançado consigo mesmo. “Se dentro do
ser humano não existir algo mais forte e mais elevado do que todas as
circunstâncias exteriores, então basta um resfriado para que ele perca o
equilíbrio e todo seu otimismo junto com suas pequenas e grandes ideias se
reduzam a sintomas, a mais nada.”
“Acontece
que eu não gosto da popularidade de meu nome. É como se ela estivesse me
enganando,” diz em confissão o narrador, Nicolai Stepanicht. Ou seria o próprio
Tchekhov ao perceber sua fama crescente tanto na Rússia como no exterior? Sua
modéstia era grande demais para vivenciá-la, ou pelo menos aceitá-la.
Em
seus últimos anos dez anos de vida, pois faleceu em 1904, aos 44 anos de idade,
lutou todo o tempo contra a tuberculose; mesmo assim, ou talvez por isso mesmo,
por ter pouco tempo, nunca se poupou, trabalhou noite e dia. “Desprezo a
preguiça, assim como desprezo a fraqueza e a apatia dos movimentos da alma.
Para viver bem, como um homem digno deste nome, é preciso trabalhar, trabalhar
com amor e fé.”
Nos
anos 1900, principiou a produzir peças teatrais. Sua primeira peça teatral a
ser encenada foi “A gaivota”. Durante a montagem da mesma, Tchekhov conheceu a
atriz Olga Knipper, com quem se casaria.
Como
o público não estava acostumado a que se teatralizasse sobre o cotidiano das
pessoas, o qual é quase sempre banal, “A gaivota” não foi, inicialmente, nem
sucesso de público e nem de crítica.
O
sucesso teatral de Tchekhov tardaria ainda um pouco. No ano seguinte surgiria
“Tio Vânia”, depois, “Duas irmãs” e, em 1904, sua última peça, o drama “O
jardim das cerejeiras.”
Uma
observação lúcida sobre o conjunto da obra teatral nos indica que as
personagens criadas por Tchekhov, de uma maneira geral, estragam sempre a
própria vida pois, de certa forma, sentem em si a inutilidade do viver.
“Ninguém
compreendeu tão lucida e finamente a tragédia das trivialidades da vida;
ninguém antes dele mostrou aos homens, com tão impiedosa verdade, o retrato
terrível e vergonhoso de suas vidas, no turvo caos da existência cotidiana da
pequena burguesia”, escreveu Máximo Gorki a respeito das peças teatrais do
amigo.
Em
1900, Tchekhov, símbolo do naturalismo russo, vai a Paris e acompanha
pessoalmente o desenrolar do caso Dreyfus e toma posição ao lado do maior
naturalista francês, Zola, contra o
antissemitismo e a condenação de um inocente. Endossa o “J’acuse”.
Em
1901, retornando à Rússia, abandona a prestigiosa Academia de Ciências em
solidariedade à expulsão da mesma de Máximo Gorki, acusado de subversão pelo
próprio Czar, Nicolau II.
Questionado,
o coerente Tchekhov escreveu a um amigo: “Uma vida consciente, sem uma visão de
vida consciente, não é vida, é apenas um peso e um susto”.
E
em tom profético, em um de seus últimos escritos, sentenciou: “Sapos e
crocodilos vão em breve reinar na Rússia. Pessoas de visão estreita, com
pretensões ilimitadas, gente inteiramente desprovida de escrúpulos literários e
sociais farão sua aparição. Tornarão o ar absolutamente irrespirável,
aborrecendo-nos da literatura, deixando o campo livre para charlatães.”
E
até em seus últimos momentos de vida, Anton Tchekhov seguiu trabalhando,
contando histórias de um mundo precário, sempre na dúvida do que fazer para que
uma difusa esperança viesse a libertar os espíritos: a verdade e a maneira
serena de ser. Talvez ambas pudessem preparar o mundo e a sociedade para uma
vida melhor, mais bela, mais digna de ser vivida, livre dos sapos e crocodilos
de visão estreita e fome ilimitada de poder.
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