Luiz
Inácio Lula da Silva, o Lula, não é o primeiro ex-presidente brasileiro a ser
acusado do crime de corrupção passiva. Também o ex-presidente Fernando Collor
de Mello foi denunciado perante o Supremo Tribunal Federal, entre outros
delitos, pela suposta prática do crime previsto no artigo 317 do Código Penal.
Quanto à aplicação da norma penal um precedente deveria vincular o outro. A
qualquer cidadão parece injusto que uma pessoa seja condenada por uma conduta
enquanto outra é absolvida pela prática de ato bastante análogo.
Em
relação ao delito de corrupção passiva, o Poder Judiciário tem dado
interpretação ao artigo 317 do Código Penal absolutamente diversa do que fora
decidido pelo STF no âmbito da AP 307-3/DF. Não apenas no caso Lula, mas em
diversos outros precedentes da denominada operação "lava jato",
tem-se prescindido da comprovação do nexo de causalidade entre o recebimento de
uma determinada vantagem e um ato de ofício determinado do funcionário público.
No caso Collor, foi a primeira vez que a discussão, quanto à (des)necessidade
do ato de ofício para a configuração do delito de corrupção, surgiu com certo
aprofundamento.
Na
AP 307-3/DF, o STF deixou bastante claro que é necessária a demonstração de um
ato de ofício concreto, relacionado com a função pública desempenhada pelo
agente do delito de corrupção passiva. Muito embora, no precedente, tenha sido
reconhecido o recebimento de vantagem ilícita por parte do ex-presidente,
consistente na doação do automóvel Fiat Elba e de uma reforma na Casa da Dinda,
Collor foi absolvido pelo artigo 317 do CP. Isso porque não havia a indicação
de qual promessa ou ato específico o ex-presidente teria praticado em troca de
tais benefícios. O Plenário do Supremo Tribunal Federal deixou bem claro que:
Para
a configuração do artigo 317, do Código Penal, a atividade visada pelo suborno
há de encontrar-se abrangida nas atribuições ou na competência do funcionário
que a realizou ou se comprometeu a realiza-la, ou que, ao menos, se encontre
numa relação funcional imediata com o desempenho do respectivo cargo, assim
acontecendo sempre que a realização do ato subornado caiba no âmbito dos
poderes de fato inerente ao exercício do cargo do agente.
No
material juntado aos autos da AP 307-3/DF, destaca-se o parecer de Eugênio Raúl
Zaffaroni, em que o professor relembrou a existência de uma corrente ibérica
que tipifica expressamente a figura de aceitação de dádivas ou de presentes sem
vinculação com ato ou omissão alguma do funcionário público. De outro lado,
segundo Zaffaroni, a tradição brasileira firmou-se no sentido de que o bem
jurídico referenciado no art. 317 do Código Penal apenas é ofendido quando a
vantagem oferecida guardar nexo causal com um ato de ofício do funcionário
público. Para o mencionado parecerista, decorre do bem jurídico referenciado na
norma a necessidade de vinculação entre os atos de solicitar, receber ou
aceitar vantagem indevida com o ato de ofício.
Realmente,
a relação entre a vantagem indevida e o ato de ofício é o que assinala o
conteúdo de injusto da ação, ou seja, é aquilo que caracteriza o fato como
corrupção passiva. Sem o ato de ofício, o crime de corrupção passiva se
tornaria um delito de enriquecimento ilícito do funcionário público. Não
haveria a efetiva necessidade de violação ao bem jurídico probidade
administrativa. O bem jurídico, inegavelmente, seria diverso. Exatamente para
diferenciar o crime de corrupção de atos do cotidiano, tal como o recebimento
de um presente, ou de ações privadas praticadas no âmbito da repartição, é
indispensável a existência de uma relação de causalidade entre a vantagem
indevida e a realização de ato de ofício a ela vinculado. Dito de outra
maneira, sem o ato de ofício, a corrupção perderia como objeto de tutela a
administração pública e os deveres legais a ela correlatos.
Ainda
no Caso Collor, o Supremo Tribunal Federal, por meio do voto-condutor,
assinalou, com precisão, a distinção entre o delito de corrupção e a conduta de
recebimento de vantagens por parte do funcionário público, não criminalizada em
nosso país. Na ocasião, explicitou-se que não existe, no ordenamento jurídico
brasileiro, o crime de recebimento de vantagens indevidas se essas não
guardarem um nexo causal com o ato de ofício concreto do agente público. Para a
configuração da corrupção são imprescindíveis duas prestações recíprocas:
É
que, do direito brasileiro, se excluiu a hipótese de punição, a título de
corrupção passiva, das dádivas solicitadas ou recebidas, ou oferecidas e
prometidas, assentando-se a corrupção, de modo real ou virtual, na existência
de duas prestações recíprocas, a comporem um pseudo-sinalagma, que, no dizer do
penalista luso Antônio Manuel de Almeida Costa, constitui o apanágio do suborno
e consubstancia a lesão efetiva da “autonomia intencional” do Estado, como bem
jurídico tutelado pela norma que o sanciona. (Fl. 28 do voto do ministro Ilmar
Galvão, na AP 307, STF).
Já
no caso Lula, na sentença, com todo respeito, o juiz não conseguiu precisar
qual seria, de fato, o ato de ofício atribuível ao acusado. Pelo contrário, há
uma evidente confusão de datas, fala-se em recebimento de vantagem num período
em que o ex-presidente sequer funcionário público era. O próprio Juízo
reconhece a impossibilidade de se identificar um ato de ofício concreto.
Contudo o juiz Sergio Moro tangencia a exigência legal com base em argumentos
de política criminal de combate à macrocriminalidade (Fl. 214 da sentença):
“Tal
compreensão [aceitar ato de ofício com certo grau de indeterminação] é
essencial em casos de macrocorrupção envolvendo elevadas autoridades públicas,
especialmente quando o crime de corrupção envolve não um ato isolado no tempo e
espaço, mas uma relação duradoura, o que é o caso quando o pagamento de
vantagem indevida é tratado como uma "regra de mercado" ou uma
"obrigação consentida" ou envolve uma "conta corrente informal
de propinas" entre um grupo empresarial e agentes públicos.”
A
aplicação da Lei Penal não pode variar de acordo com a pessoa acusada. Ela é um
imperativo com vigência e aplicabilidade para todos os cidadãos,
independentemente da posição ocupada na administração pública. Em suma, o
artigo 317 do Código Penal tem o mesmo teor proibitivo para qualquer
funcionário público. O que pode aumentar, conforme o disposto no artigo 327, §
2º, do CP, é o desvalor da conduta, a depender do locus ocupado na
administração pública pelo agente.
De
toda sorte, a acusação contra o ex-presidente Fernando Collor também se tratava
de um suposto escândalo envolvendo elevadas autoridades públicas e, ainda
assim, o STF teve a serenidade necessária para a devida aplicação da lei penal.
No caso Lula, o afastamento das exigências legais de aplicação do artigo 317 do
CP é um indicativo de que o tratamento conferido ao ex-presidente foi sim um
ponto fora da curva.
O
tratamento não isonômico fica ainda mais evidente no acórdão de apelação
proferido pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, que prescindiu por
completo do ato de ofício para a configuração do tipo penal de corrupção
passiva (Fl. 114 do acórdão):
“O
tipo penal, diversamente da prevaricação, dispensa a ocorrência de ato de
ofício, exigindo-se somente a solicitação/recebimento de vantagem indevida em
decorrência do cargo ou função. Trata-se de crime formal que se concretiza com
a solicitação ou o recebimento da benesse, de modo que a prática efetiva de ato
de ofício não consubstancia elementar do tipo penal, mas somente causa de
aumento de pena (§ 1º do artigo 317, CP).”
Conforme
o trecho do acórdão acima reproduzido, o ex-presidente Lula foi claramente
condenado por um delito que não existe no ordenamento jurídico brasileiro, qual
seja, o de enriquecimento ilícito. Eugênio R. Zaffaroni, no parecer apresentado
no caso Collor, assinalou bem a diferença entre o crime de corrupção passiva e
a tradição ibérica de se criminalizar o puro e simples recebimento de
benefícios por funcionário público. Não demonstrado o ato de ofício concreto
atribuível ao presidente, haveria a conduta de enriquecimento ilícito, não
criminalizada no Brasil.
Que
fique claro, o Plenário do STF, na AP 307-3/DF, já decidiu que o recebimento de
vantagem, por si só, não é suficiente para a configuração do crime de corrupção
passiva e que o ordenamento jurídico brasileiro não criminaliza o recebimento
de presentes ou benefícios por parte de funcionário público se a vantagem não
guardar um nexo causal com um ato de ofício determinado. É, com todo respeito,
inexplicável sob o ponto de vista jurídico que o Poder Judiciário tenha se
esquecido da discussão travada na AP 307-3/DF e tenha proposto uma solução
específica para o ex-presidente Lula. Como já dito, é necessário isonomia na
aplicação da Lei penal.
João
Marcos Braga é advogado criminalista em Brasília, professor voluntário de
Direito Penal na UnB, especialista em Direito Penal e Processo Penal pelo IDP,
especialista em Direito Penal Econômico e em Parte Geral pelo IBCCRIM.
Revista Consultor
Jurídico
https://www.conjur.com.br/2018-fev-26/joao-braga-polemica-ato-oficio-crime-corrupcao
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