Com
a morte de Fidel o leitmotiv predileto da direita vai voltar à carga.
Esse
é a acusação de que a esquerda quer transformar o Brasil numa Cuba, como se
essa ilha fosse um imenso fracasso.
É
uma estratégia tão, mas tão desonesta, que é até difícil explicar o tamanho da
desonestidade.
Mas
vou tentar.
Para
começar, Cuba pode realmente ser ruim para mim, que sou de classe média alta,
mas é para 100% de seus habitantes melhor do que o Brasil é para 90% dos seus.
Esse
não é um chute estatístico, mas uma estimativa conservadora.
75,9%
dos brasileiros vivem com menos de U$10.000 ao ano enquanto 10% dos brasileiros
abocanham 75,4% da renda nacional (1% abocanha 48%) [1].
A
renda per capita em Cuba ajustada por poder de compra é de 20.611 [2] dólares
internacionais, enquanto a do Brasil antes da depressão econômica era de 15.893
dólares [3].
O
povo daquela ilha rochosa bloqueada é mais rico que o povo do continente
Brasil.
Essa
é uma realidade chocante e geralmente desconhecida.
Ainda
assim não quero ir pra Cuba, a não ser a turismo.
Porque
para mim a quantidade de liberdade é mais importante do que o pão. É claro, eu
tenho pão. Bem mais do que isso, eu faço parte dos 10% de privilegiados
brasileiros.
Logo,
sou mais livre aqui do que lá. Mas minha diarista certamente não. Que pena que
ela não tem ideia do que realmente significa “Vai pra Cuba!”.
E
é também por isso que não posso querer para mim uma sociedade moralmente
monstruosa como os EUA, aquela plutocracia onde o último traço de democracia é
uma relativa liberdade de expressão.
Mas
o Brasil, meu Deus, o Brasil é uma monstruosidade social tão maior, que querer
que ele se transforme em algo parecido com os EUA é querer reformas de
esquerda.
Sim,
na maioria dos aspectos, os EUA estão à esquerda do Brasil.
No
dia em que o Brasil tiver um salário mínimo como o dos EUA (U$7,25 por hora
contra U$1,12)[4], uma distribuição de renda como a dos EUA (gini 40,8 contra
54,7) [5] , uma lei de mídia como a dos EUA, a proteção às indústrias e
agricultura local como a dos EUA, um estado do tamanho do dos EUA [6] (14,6% da
população empregada contra 11,1%), a direita vai poder alertar para o risco de
ele virar uma Alemanha.
Até
lá, em vez de gritar: “A esquerda quer transformar o Brasil numa Cuba!”,
deveria gritar: “A esquerda quer transformar o Brasil num EUA!”.
E
quando o Brasil ficasse parecido com os EUA, querer um governo de esquerda ia
ser querer que o Brasil começasse a ter políticas de salvaguarda social mais
parecidas com as da Alemanha [7] , sua saúde pública, sua educação pública,
suas políticas ambientais estreitas, sua carga tributária (40,6% contra 34,4%
do Brasil) [8], seu imposto progressivo (quanto mais rico, mais imposto).
E
a direita deveria então gritar, se quisesse ser honesta: “Cuidado, a esquerda
quer transformar o Brasil numa Alemanha!”
E
então, quando o Brasil ficasse parecido com a Alemanha, a direita poderia
alertar para o risco de virarmos uma Dinamarca. Aí, querer reformas de esquerda
seria querer que mais da metade da renda fosse para os impostos (50,8%) [9],
que os filhos da elite fossem obrigados a estudar em escolas públicas, entre as
melhores do mundo, que estado tivesse mais de um terço da população empregada
(34,9%) [10], bancasse dois anos de licença para criar um recém-nascido,
limitasse fortemente a atuação das grandes corporações, fosse radicalmente
democrático.
Finalmente,
quando o Brasil ficasse parecido com a Dinamarca, o direitista poderia gritar
sem hipocrisia seu terror com a Cuba que se avizinha, a do estado total e
economia planificada, e disfarçar melhor sua inveja do funcionário público sob
a máscara do ódio ao estado. Provavelmente nesse dia, até eu estivesse
protestando a seu lado.
Na
estratégia do espantalho cubano o reacionário brasileiro finge ser a favor da
liberdade e do mérito, enquanto na verdade é contra.
Contra
a liberdade do povo, seus direitos trabalhistas, o investimento na educação e
universidade públicas, o fortalecimento do SUS e a redução dos juros.
Contra
o aumento da carga tributária, do salário mínimo, do estado, da remuneração do
professor básico, da distribuição de renda e das oportunidades para os
excluídos.
Um
conservador na Inglaterra é só um conservador. Um conservador no Brasil é um
monstro.
Um
monstro que quer conservar as estruturas de um dos países mais desiguais e injustos
do mundo.
Não,
Cuba não é o paraíso.
É
só uma ilha rochosa no meio do Caribe sem recursos naturais de qualquer tipo e
bloqueada economicamente há cinquenta anos.
E,
no entanto, garante saúde e educação universal para seu povo e tem IDH maior
que o nosso, nós, que somos um continente, nós, que temos todos os recursos
naturais.
Essa
é a medida de nosso fracasso.
O
incrível e gigantesco fracasso do capitalismo brasileiro. (do Vi o Mundo)
NOTAS
[1]
Credit Suisse – Research Institute. Markus Stierli. Outubro de 2015. Tabela
6-5, pág. 149, 17-10-2016.
[2]
http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.PP.CD?locations=CU&order=wbapi_data_value_2014+wbapi_data_value+wbapi_data_value-last&sort=desc
[3]
http://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.PCAP.PP.CD?order=wbapi_data_value_2014+wbapi_data_value+wbapi_data_value-last&sort=desc
[4]
http://www.infomoney.com.br/carreira/salarios/noticia/4073079/veja-quanto-salario-minimo-pago-paises-australia-campea
[5]
World Bank GINI index
[6]
OCDE
http://www.oecd-ilibrary.org/sites/gov_glance-2011-en/05/01/gv-21-02.html?itemId=/content/chapter/gov_glance-2011-27-en&_csp_=6514ff186e872f0ad7b772c5f31fbf2f
[7]
http://www.dw.com/pt-br/como-o-estado-alem%C3%A3o-ap%C3%B3ia-as-fam%C3%ADlias/a-2370133
[8]
Heritage Foundation (2015).”2015 Macro-economic Data”.and Index of Economic
Freedom, Heritage Foundation.
[9]
http://ec.europa.eu/eurostat/statistics-explained/index.php/File:Total_tax_revenue_by_country,_1995-2014_%28%25_of_GDP%29.png
[10]
OCDE
http://www.oecd-ilibrary.org/sites/gov_glance-2011-en/05/01/gv-21-02.html?itemId=/content/chapter/gov_glance-2011-27-en&_csp_=6514ff186e872f0ad7b772c5f31fbf2f
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