Em
1964, entidades civis e a imprensa como um todo apoiaram o golpe militar que
depôs o presidente João Goulart e instituiu uma ditadura no país. Com o passar
dos anos, a própria Ordem dos Advogados do Brasil e o Grupo Globo, por exemplo,
admitiram o erro e pediram desculpas. Da mesma forma, um dia pedirão desculpas
por glorificar as delações premiadas e tornarem esse instrumento a base do
processo penal, desrespeitando direitos e garantias fundamentais. É o que
acredita o criminalista Nélio Machado, sócio do Nélio Machado Advogados.
Defensor
de presos políticos na ditadura militar, Machado garante que era mais fácil ser
advogado de defesa na época do que hoje em dia. Segundo ele, a onda de
punitivismo impulsionada pela operação “lava jato” e suas delações cresceu a
ponto de quase criminalizar a advocacia. Ao mesmo tempo, o Ministério Público e
juízes severos são aplaudidos pela opinião pública.
Um
exemplo desse descompasso, de acordo com o criminalista, está na condenação do
ex-governador do Rio de Janeiro Sérgio Cabral (PMDB) a 45 anos e 2 meses de
prisão. “Era melhor ter decretado prisão perpétua”, ironiza, lembrando que
Elize Matsunaga, que assassinou e esquartejou seu marido, recebeu pena de 19
anos e 11 meses.
Grande
parte da culpa por esses exageros está na forma como as colaborações premiadas
vêm sendo usadas no Brasil, ressalta Machado. Ele diz que acusados estão sendo
forçados a delatar, critica o peso exagerado que atribuem às informações de
colaboradores e avalia que juiz que homologa um acordo do tipo não deveria
poder julgar ações que usem suas informações.
Crítico
do compromisso de delação firmado por executivos da JBS, Machado apoia sua
rescisão direta. Até porque recall de colaboração “é uma anomalia”, declara.
Porém,
o criminalista avalia que o Supremo Tribunal Federal precisa avançar na
discussão do instituto. Um ponto que a corte deve mudar, na visão dele, é a
possibilidade de alguém citado em delação poder questionar o acordo – algo que
os ministros entenderam não ser possível. O advogado opina que isso deve ser
permitido se ficar demonstrado que a cooperação teve omissões, favorecimentos e
fraudes.
Em
entrevista à ConJur, concedida em seu escritório, no centro do Rio de Janeiro,
Nélio Machado ainda atacou a execução da pena antes do trânsito em julgado da
condenação, lamentou que jovens advogados não estudem o passado e defendeu que
juízes adquiram mais experiência antes de ingressar na carreira.
Leia
a entrevista:
ConJur
— Como a regulamentação das delações premiadas pela Lei 12.850/2013 mudou as
investigações de organizações criminosas?
Nelio
Machado — Em primeiro lugar, a terminologia que se tem usado nas novas leis
extravagantes no país é absolutamente equivocada. Se a gente fizer um retrospectiva
histórica, o Código Penal de 1940 foi concebido ao tempo do Estado Novo, com o
mundo em guerra. Ali criou-se o crime de quadrilha, como os americanos também
tinham crime de conspiração. Eram crimes voltados a perseguir aqueles com
relação aos quais não havia uma configuração de tipicidade clara que pudesse
justificar uma perseguição penal. A concepção do crime organizado é uma
derivação do crime de quadrilha.
Na
verdade, há uma grande imperfeição do ponto de vista dogmático de se considerar
tal crime como existente. Nós adotamos o crime organizado como tipicidade
própria em razão da Convenção de Palermo, mas sem nenhuma reflexão maior. O
Brasil vem seguindo o caminho de leis extravagantes em matéria penal, o que é
um equívoco muito grande. O saudoso professor Raul Chaves sustentava que o
Direito Penal tem de ser todo compendiado em um único diploma legal, o Código
Penal. Não teria que ter Lei de Imprensa, Lei de Segurança Nacional, nem Lei
dos Crimes Hediondos. Até porque a lei foi feita para todos, não para os doutos
e para os juristas. Então, a tipicidade do crime de quadrilha não deveria
existir, do mesmo modo que a tipicidade do chamado crime organizado também não
devia existir. É preciso punir o ato criminoso pelo que ele representa de ação
concreta, ou seja, o roubo, o furto, o estupro e assim por diante. Não há
nenhuma necessidade dessa etiqueta de organização criminosa. Como também não
havia necessidade de criar crimes hediondos. Isso vem de 1990, quando o
empresário Roberto Medina foi sequestrado no Rio de Janeiro. Por isso, criaram
a Lei dos Crimes Hediondos, e toda a criminalização maior resultou em
insegurança maior, porque o Brasil passou a ter a quarta maior taxa de
encarceramento do mundo. E isso não melhorou absolutamente em nada a segurança
das pessoas. Mais ainda: começaram a criar regras que, em princípio, implicavam
manter por mais tempo as pessoas no cárcere. Quando a pessoa está presa, a
perspectiva de melhora é a ideia de que ela possa voltar a alcançar a
liberdade.
O
Direito Penal estabelece uma sanção, mas ele também tem que te dar a chance de
você ter uma reinserção social. O Estado é um vencedor, o condenado é um
vencido que está à mercê do Estado. Nós sabemos a realidade das nossas cadeias.
Pior, nós sabemos também que 40% aproximadamente da população carcerária no
Brasil é composta por pessoas que não foram julgadas ainda em definitivo. E a
solução que estão encontrando agora é a pior possível. Vamos julgar depressa
para legitimar a prisão provisória em prisão definitiva. O conceito de
organização criminosa é equivocado. É preciso punir as ações. Da mesma forma,
eu penso que seria até questionável a tipicidade de lavagem de dinheiro. Porque
a lavagem de dinheiro, tal como estão utilizando, é muito mais um exaurimento
de um crime anterior, por exemplo, na hipótese da corrupção. Então basta isso.
Não é preciso dizer que o que se gastou com dinheiro resultante da corrupção
corresponde a um outro crime da lavagem. Aqui há um desconhecimento geral de um
princípio básico, que seria o conflito aparente de normas. Vou te dar um
exemplo: um talão de cheques. Alguém subtrai de um terceiro, falsifica a
assinatura, vai ao banco e desconta o dinheiro que não lhe pertence. Se você
olhar com rigor, sem uma perspectiva finalística, dirá tem o crime de furto,
tem o crime de falso e tem o crime de estelionato. Mas não, tem um crime só,
que açambarca todos os demais. O Direito Penal que eu aprendi era um Direito
Penal humanístico, um Direito Penal em que ao réu primário de bons antecedentes
destinava-se uma pena menor e não uma pena completamente descolada do princípio
da razoabilidade, que é uma lição que vem desde Cesare Beccaria. Então, a
primeira observação que eu gostaria de fazer é que nós deveríamos simplificar a
lei penal. Nós sofisticamos muito o Direito Penal, com leis que ninguém domina,
com leis que mudam muito, a cada fato de grande repercussão.
Aí
vamos chegar à barganha, que outra coisa não é senão a delação. A nossa
tradição nunca foi simpática ao instituto da delação ou colaboração premiada.
Seria, quando muito, uma mera atenuante da pena. No tempo em que eu comecei a
advogar, após o golpe Militar de 1964, o Ato Institucional 5, o réu que
procedesse em sua defesa no caminho de dedurar o colega — e existia tortura —
era marginalizado do grupo. E em juízo eles se retratavam e apontavam que o
comportamento era uma decorrência de constrangimento, de tortura. Algumas
vezes, torturas resultavam em mortes, que eram ocultadas por desaparecimentos.
Se a gente voltar na história, os franceses que aderiram ao nazismo eram
chamados de “colaboradores”, e essa palavra virou pejorativa. “Alcaguete”
também sempre foi considerada uma palavra feia, desde a meninice. Então, quando
pensamos que o caminho da justiça é o caminho da delação e fazemos com que o Joaquim
Silvério dos Reis seja mais importante que Tiradentes, alguma coisa está
errada. Em verdade, o que se tem é uma grande desordem.
E,
subitamente, os comentaristas que nada entendem de lei, mas que de alguma forma
se empolgam com a punição, passaram a ter mais voz. Aí há outra incoerência,
porque tempos atrás, quando se falava em Direito Penal nos eventos
internacionais, nos estudos acadêmicos, afirmava-se o abolicionismo. O Direito
Penal não serve para nada, faz com que as pessoas fiquem muito piores do que
quando entraram na cadeia. Desde 1215, o mundo foi evoluindo com a garantia do
devido processo legal. Tivemos a Declaração Universal dos Direitos do Homem, a
Revolução Francesa, o iluminismo, a Carta da ONU, a Ideia Básica, o Pacto de
São José, a ideia de que todo mundo é presumivelmente inocente. E a
Constituição é muito clara quanto a isso, dizendo que se presume a inocência e
a prisão só se legitima após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Todo esse arcabouço normativo, ideológico, correto, progressista, que
representou uma espécie de resposta aos anos de chumbo, de repente é
transformado pela prática judiciária, de juízes combatentes da criminalidade e
que não julgam, mas participam da investigação - outra excrescência do Brasil.
Nos
EUA, inexiste a figura do juiz que homologa a delação. O que existe lá é uma
negociação entre acusação e defesa. É uma aberração jurídica que o juiz
chancele uma colaboração firmada entre as partes. O juiz tem de ser neutro, não
pode ter lado. O juiz não precisa saber absolutamente nada sobre coisa alguma.
Ele tem que deliberar conforme a sua consciência. Outro problema gravíssimo que
nos assola é a permanência do chamado juiz monocrático. O juiz de primeiro grau
tinha um controle dos órgãos que lhe são superiores, mas nos últimos tempos, em
razão também de uma publicidade opressiva, o tribunal, para não se indispor com
a população, mantém a decisão e os outros tribunais, a pretexto que estão
distantes e que não podem examinar provas, ou porque a decisão isolada não pode
ser passível de exame, não examinam ou se examinam, endossam aquela decisão
anterior. Ou seja, quando se diz aqui que tem várias instâncias é uma falácia.
Não tem várias instâncias no Brasil, tem um juízo que decide sozinho e que
participa da investigação, logo não tem o requisito da imparcialidade. Na
operação satiagraha, eu defendi o Daniel Dantas. E o relator do Habeas Corpus
do Supremo Tribunal Federal foi o o ministro Eros Grau. E ele verbera contra
essa situação dizendo mais ou menos o seguinte: “Bom, eu já escutei tudo sobre
a sua vida, eu chancelei a investigação, eu sei dos seus telefonemas, dos seus
contatos, das suas ligações, e eu estou absolutamente convencido da sua culpa,
mas agora eu vou lhe interrogar e quem sabe em alguns minutos você me convença
que eu estou errado”. E aí ele propõe como melhor solução a sorte nas ordálias,
a prova de fogo medieval.
ConJur
— Com isso, a advocacia está sendo rebaixada no Brasil?
Nelio
Machado — Quando eu comecei a advogar, via-se o advogado como uma figura
essencial, como manda a Constituição, a administração da Justiça. A própria
imprensa, que vivia perseguições, se identificava com os advogados. Era como se
imprensa e advogados estivessem juntos na luta pelo restabelecimento do Estado
Democrático de Direito. Paradoxalmente, vem a Constituição dita cidadã, e os
advogados passam a ser marginalizados, hostilizados, tratados como se fossem
figuras desprezíveis. E o Ministério Público, subitamente, ganha um prestígio
inaudito – a partir da Carta de 1988, eles até se julgam o quarto Poder da
República, com um monumentalismo extraordinário, haja vista os prédios que eles
têm, os meios materiais. Basta comparar com os da Defensoria Pública - de
repente, o povo interessa menos e a persecução interessa mais. Por outro lado,
a advocacia privada é considerada um luxo. Quer dizer, o sujeito que constituiu
um advogado já é de alguma forma visto com preconceito.
A
Lei Complementar 75/1993, que é a lei orgânica do Ministério Público, dá
poderes ao órgão que são absurdos. Por exemplo, a Constituição tem uma norma,
no artigo 144, que cuida dos poderes de investigação, que deixa claro que o
Ministério Público não poderia investigar, para não se contaminar com a
investigação. Mas tanto lutaram, tanta mobilização, o povo foi para a rua
contra a PEC 37, sem nem saber o que é uma PEC... Lutaram pelos poderes de
investigação do Ministério Público, poderes esses que ficam, de certa forma, à
sorrelfa, quando o advogado quer ver uma investigação. Antigamente, se o advogado
queria ver uma investigação, ia lá, olhava, e depois levava seu cliente. Hoje,
não. Você prende, conduz, para surpreender, e, consequentemente, para obter uma
prova. Isso não é devido processo legal, isso é a completa antinomia, absoluta
subversão do que deve ser o processo penal. Vamos voltar ao passado. No regime
militar era ruim, o advogado não chegava, um absurdo.
Mas
só que quando ia-se a julgamento alegava-se que a prova tinha sido colhida no
inquérito. Quando o cidadão era torturado, a prova judicial prevalecia. Quando
se permite a interceptação telefônica, não só se retira do investigado o
direito de não se autoincriminar, que é uma balela, porque você está
desprotegido, e ao telefone falam-se coisas que não necessariamente são
verdadeiras, tem às vezes o animus jocandi, você de alguma forma está fazendo
uma piada, está fazendo uma observação, como se você tivesse conversando numa
mesa, na sua casa, numa mesa de bar, e isso é erigido como comprometimento
penal. A prova ilícita hoje é tratada à largueza. Ou seja, admite-se a prova
ilícita como se os fins justificassem os meios, quando na verdade jamais
poderia ser assim, senão seria possível tolerar a tortura. Nós estamos seguindo
a barganha dos EUA de forma errada. A barganha deles é cultural, a nossa não é.
Por outro lado, lá se alguém fizer uma barganha e trouxer à tona colaboração ou
delação, de ordinário fala uma vez só. Se faltar com a verdade, acabou. Aqui
tem até recall de delação, algo completamente absurdo. Como se fosse um
automóvel — está com um parafuso frouxo, então vamos apertar a roda. Dão uma
conotação totalmente equivocada, porque não podem perder a delação. Essa última
[da JBS], extremamente polêmica que todo mundo está acompanhando, sem declinar
qual é, em que não tem processo, não tem pena, as pessoas podem sair do Brasil
e não tem nenhum tipo de reprimenda… É insustentável. E isso não está
transparente.
ConJur
— A Lei 12.850/2013 é mal-feita?
Nélio
Machado — A lei do crime organizado, é uma lei muito mal-feita, as penas que
estão sendo utilizadas são completamente desproporcionais. Estão usando o
acúmulo de penas de uma forma completamente ilógica, sem falar na utilização da
prisão como método coercitivo para obter delação. Aí vem o argumento “vários
delataram ou colaboraram sem que tivessem sido presos”. Não é verdade, porque
chegava a notícia que seriam presos, mas não o seriam caso delatassem. Sem
contar também a coincidência de advogados de delatores transformarem-se em
advogados de delatados, repetidas vezes. O que do ponto de vista da lei penal é
pelo menos duvidoso, sem falar na ética e dos controles próprios da OAB, que
também tem claudicado, porque tem se preocupado mais com a persecução e menos
com a defesa. Isso vem desde o caso Collor. O Evaristo de Morais escreveu um
artigo, “O advogado criminal, esse injustiçado”, porque ao tempo que ele
defendeu o Collor, de quem ele fora adversário, ele foi hostilizado na ocasião
pela sua própria entidade de classe, a qual tanto serviu.
Então,
o nosso papel hoje está mal-visto, está mal-interpretado, e essa balança tem
que ser recolocada numa perspectiva muito diferente daquela que está
acontecendo. Não penso que a delação tenha vindo para ficar. Acho que esse
último episódio vai forçar uma revisão. Muitos dos que colaboraram devem estar
pensando “vem cá, não foi equânime”. Quem tinha mais não teve pena nenhuma,
quem tinha menos teve pena maior, e quem não delatou acabou tendo uma pena
severa. Pior, interpretam errado o princípio constitucional da duração razoável
do processo. Esse princípio foi posto na Constituição para permitir que uma
pessoa idosa usufruisse em vida de um benefício qualquer, mas ele está sendo
usado em desfavor do direito de ampla defesa. Vamos andar depressa com o
processo para condenar rápido e executar imediatamente, ou seja, chancelar
aquela prisão temporária transformada em preventiva, depois condenação pelo
tribunal. A medida cautelar pode ser usada de forma excepcional.
O
Brasil é um país tão sui generis que quando disseram que a prisão era maléfica
e tinha que ser evitada, veio uma mudança no Código de Processo Penal, com a
introdução do artigo 319, a sugerir a substituição da prisão preventiva por
medidas alternativas. O que aconteceu na prática? Não só mantiveram as
preventivas como também, quando não cabia nenhum tipo de medida constritiva,
aplicavam o 319. Antigamente, impetrado um Habeas Corpus e concedida ordem por
faltar um pressuposto de razoabilidade para determinação daquela medida
constritiva punha-se em liberdade. Às vezes com uma medida de cautela,
comparecimento semanal, mensal ou trimestral, excepcionalissimamente também
recolhimento de passaporte. Agora mudou. Houve uma coisa curiosa recentemente
no Rio de Janeiro. O estado não tinha tornozeleiras eletrônicas suficientes, e
as pessoas, em vez de serem postas em liberdade, foram presas. Que mundo é esse
que nós estamos vivendo? E as pessoas estão se comprazendo com a maldade, com o
sofrimento, esquecendo que qualquer um pode ser atingido pelo rigor da lei e o
mínimo que se tem que exigir é que haja observância das garantias fundamentais.
Quando não observamos o direito de quem quer que seja, o nosso direito pode ser
violado.
As
pessoas estão empolgadas com a repressão, não estão se dando conta que a
segurança pública não melhora, a prisão não é boa para o desfavorecido. Começam
agora a achar que ela é exemplar para quem usa paletó e gravata. Mas o fato de
alguém ser mais bem situado economicamente, culturalmente, socialmente não
significa que a sociedade deva exercer uma espécie de vendetta. É até um
paradoxo: eu posso defender uma pessoa mais humilde no tribunal do júri,
conseguir, de certo modo, que ela se defenda em liberdade. Mas se tiver um caso
que venha a alcançar repercussão jornalística, as dificuldades são enormes
porque o caso tem uma conotação de estrépito popular e que leva a esse
verdadeiro assanhamento punitivo. E aí o Direito Penal passa a ser uma coisa
doentia, as pessoas ficam felizes porque alguém está sofrendo. As pessoas eram
colocadas no cárcere, sem possibilidade de visitação de advogado, de família.
Só visitação em parlatório de 20 minutos. Evidente que depois de um certo tempo
surge um milagre. “Quer colaborar?” “Quero. Não quero, mas vou.” Daí vem alguém
e pergunta ao preso: “O senhor colaborou espontaneamente?” Resposta: “Claro que
sim”. Verdade: claro que não.
ConJur
— Isso pode ser equiparado à tortura?
Nelio
Machado — É uma tortura sofisticada. A tortura em que o torturador está torturando
e o torturado sabe que está sendo torturado é um jogo bruto. A outra é sutil,
mas nem por isso menos perversa. E, no fundo, há uma espécie de engodo
generalizado, e as pessoas consentindo no engodo. Quando há uma ação penal em
que quatro ou cinco réus passam à delação, alguma coisa está errada. Isso não é
normal. E o papel do advogado é enfrentamento, é estabelecer limites entre os
ardores da punição e os acusados - no mínimo, o cumprimento das garantias da
lei. Aliás o falecido ministro Teori Zavascki, julgando um certo Habeas Corpus,
disse: “Seria medievalesco supor que se tenha prendido com o propósito de se
obter confissão ou colaboração”. A frase é de efeito. Eu diria que não se
compatibiliza com as garantias da Constituição. Na verdade, sendo severo, numa
visão crítica, é medievalesco.
ConJur
— No ano passado, o senador Renan Calheiros (PMDB-AL) defendeu que houvesse uma
reforma na Lei das Organizações Criminosas para proibir a celebração de acordo
de delação premiada com réu preso. O que o senhor pensa dessa proposta?
Nelio
Machado — Isso é absolutamente correto. Quando se confia só na delação, o
Estado está abdicando da sua capacidade de investigar. E também tem outro
detalhe: quando o Estado coloca alguém com gravador oculto para falar com um comparsa,
e depois um se beneficia, e o outro se arrebenta, isso, inclusive, é inversão
dogmática dos princípios básicos. De acordo com a boa doutrina, é possível
gravar alguém se você for vítima de extorsão, de alguém que, de algum modo,
queira te fazer um mal. Mas se você tem cumplicidade, participa de um
comportamento que é contrário à lei, é ilegal essa gravação. Eu me dou bem e o
outro se arrebenta. Isso viola o artigo 29 do Código Penal: quem pratica um
crime incide nas penas a ele cominadas, na medida da sua culpabilidade. O que a
delação premiada faz é o seguinte: está erradicado o artigo 29. Quem for
cupincha do juiz ou chapinha do Ministério Público vai ter um tratamento
benevolente. Quem for hostil, ou seja, “eu quero ter a dignidade de me defender”,
não, vai se arrebentar. A nossa sociedade perdeu completamente a noção do que é
justo, do que é equilibrado. Nós temos hoje cerca de 200 delações, é
inimaginável.
Também
pela tradição americana, o cabeça pode ser delatado, mas não pode delatar. E o
que está acontecendo aqui é que, eventualmente, estão aceitando delações de
cima para baixo. Eu tenho uma posição pessoal, minha e do meu escritório, de
absoluta intransigência com esse instituto. Não só eu, outros advogados também
pensam da mesma forma. Já fomos majoritários, hoje somos minoritários. Mas aí
vem uma frase linda do Darcy Ribeiro, antropólogo, que diz mais ou menos o
seguinte: “Fracassei em tudo o que tentei na vida. Mas eu detestaria estar no
lugar de quem me venceu”. Então, se eu tiver de ser derrotado, prefiro que
assim seja. E tenho sido derrotado, porque nessas causas em geral eu entro e
saio, porque quando eu entro, proponho luta, proponho defesa, proponho discutir
competência.
Esse
caso rumoroso que está no Paraná não podia estar lá [operação “lava jato”],
porque essa empresa importante, a maior do Brasil [Petrobras], é sediada no Rio
de Janeiro, e o critério da prevenção que tem sido sufragado nas decisões é um
critério subsidiário do artigo 78 do Código de Processo Penal. O que decide a competência
é crime mais grave e a maior quantidade de crimes. Nos outros casos, ou seja,
se esses dois contextos não prevalecerem aí, sim, vale a prevenção. Inverteu-se
tudo.
ConJur
— Como o senhor avalia as penas que têm sido impostas pela operação “lava
jato”? Elas são justas ou rigorosas demais?
Nelio
Machado — As penas que eu tenho visto são superiores à de homicídio triplamente
qualificado. E tem a pressão da família. A família acaba não resistindo. Então,
mesmo que o preso não queira colaborar, ele acaba sendo forçado a isso.
Colaborar não significa, no fundo, aceitação de culpa, porque não há sequer um
critério muito profundo de verificação da verdade. A chamada prova de
corroboração é algo aleatório. Se exige um carimbo do juiz, e é como se ele tivesse
examinado quando, na verdade, não há nem tempo hábil para examinar nada. Isso
não se chama julgamento, isso é um aval irrestrito àquilo que havia sido
convencionado de uma maneira não necessariamente equânime e justa.
ConJur
— A delação premiada, como regulamentada pela Lei 12.850/2013, é coerente com o
sistema penal e processual penal do Brasil?
Nelio
Machado — Absolutamente não. Ela é viciada. Primeiro porque é uma cópia servil,
mal-feita. Segundo, com um elastério desmedido, o juiz não poderia participar
da delação, e, se participasse, não poderia julgar. Então está errado sob
qualquer ângulo. E acho que nenhum julgamento que pudesse implicar privação da
liberdade, e assim é na maior parte dos países civilizados, isso não poderia
ser decidido senão em audiência pública, oral, com a presença da imprensa,
inclusive para assistir o julgamento. Porque nesses casos rumorosos,
especialmente nos que vêm do Paraná, as audiências não são públicas. A imprensa
fica do lado de fora e o que vemos depois na televisão é uma edição, e a cena
que é apresentada concentra a imagem em quem está depondo. Perde-se a noção do
conjunto. Outra coisa: muitos depoimentos podiam ser evitados. Há pessoas que
depuseram 100 vezes, 200 vezes. Por quê? Água mole em pedra dura tanto bate até
que fura? Não, é possivel juntar todo mundo num auditório e determinar que a
prova vai valer para todos os casos.
O
próprio julgamento da Ação Penal 470, o processo do mensalão, no Supremo, durou
muito tempo porque começava tarde e terminava cedo. Começava às 14h e terminava
antes das 20h. Eu fiz julgamentos na Justiça Militar de 83 réus, em que
requisitaram um auditório do Comando Militar da Aeronáutica e, em dez dias, a
gente liquidou tudo. Participei da operação mosaico, que eram 80 réus também, o
chefe da polícia federal era o Romeu Tuma, que levou uns dez dias também. E
olha que, quando eu comecei a advogar, cada ministro do Supremo tinha um
assessor, dois. Hoje eu nem sei quantos são. E muitas das vezes o voto não é
prolatado por estudo direto. É claro que é justo e legítimo, ter assessoria, eu
tenho no meu escritório, mas a obra do juiz tem que ser pessoal. Sentença vem
do latim sentire, quem é que pode sentir? Quem estudou – o ministro. Sem falar
na titularidade. O Supremo Tribunal Federal, por exemplo, criou, com objeção de
dois ministros, Celso de Mello e Marco Aurélio, a figura de juiz auxiliar, que
nada mais é do que um juiz de ordinário de primeira instância julgando casos de
competência originária. Ora, é como se você colocasse um capitão para julgar um
general - é uma subversão. A Constituição fala em competência “para processar e
julgar”. Na Ação Penal 470, o ministro Joaquim Barbosa, relator do caso, não
ouviu nenhuma testemunha e não interrogou nenhum réu. E o voto tem mais de mil
páginas. Isso está errado.
ConJur
— Uma crítica recorrente é que os processos demoram muito porque há muitas
possibilidades de se recorrer. E isso acabaria por congestionar o Supremo,
afastando-o de sua função de corte constitucional. O senhor concorda com esse
argumento?
Nelio
Machado — Essa comparação com outros sistemas não faz sentido. A Justiça de
primeiro grau não é de qualidade. A de segundo grau tende a endossar a decisão
de primeiro grau. No Superior Tribunal de Justiça e no Supremo, há quem diga,
equivocadamente, que não são tribunais feitos para fazer justiça, e, sim, para
fazer valer a uniformidade da jurisprudência. E aí ficam com questiúnculas,
“questionou, não prequestionou”. Há muitos julgamentos abstratos sobre temas
como “é proibido proibir ou não é proibido proibir”, como a questão do aborto
de anencéfalo. Não que não sejam temas importantes, mas mais importante que
isso tudo talvez seja que o Supremo respeite sua tradição de tribunal
garantidor das liberdades, de sentinela da Constituição. É o último baluarte, a
última oportunidade. Então quando o Supremo diz que o Habeas Corpus atrapalha,
que tem Habeas Corpus demais, ele está rompendo com a sua vocação.
ConJur
— Houve uma mudança no perfil dos advogados criminais? A nova geração é muito
focada em resultados, sem dar tanta importância às lutas que foram necessárias
para conquistar garantias fundamentais?
Nelio
Machado — Vou recorrer a uma frase do Nelson Rodrigues: “Envelheçam”. Porque
muitas vezes a juventude não vivenciou o que aconteceu antes, embora não seja
culpa dela. Mas ela pode resgatar, pelo estudo histórico, o que aconteceu
antes. Eu já ouvi pessoas dizendo, “ah, porque a obra do Nelson Hungria, maior
penalista brasileiro, não está atualizada”. Como não está atualizada? Voltaire,
Platão, Aristóteles estão fora de época? Eu me recuso a aceitar isso. O jovem
tem obrigação de estudar o passado. E estudando o passado, tem que saber que
houve Estado Novo, tem que saber que teve nazismo, que teve fascismo, que houve
golpe de 1964, que houve Ato Institucional 5. Devem ler os clássicos, como
Psicologia Judiciária, de Enrico Altavilla, que diz que na boca de quem cometeu
um crime para se salvar é muito mais fácil encontrar mentira do que a verdade.
Está
faltando um pouco de cultura humanística e respeito ao passado. Nós vivemos uma
cultura do moderno, do jovem, do bonito, do estético, do escritório arrumado,
do escritório-empresa. Advocacia não é empresa. Advocacia é sacerdócio, é fazer
o bem, é proteger uma pessoa que está numa relação desigual diante da força
avassaladora do Estado. Cito uma frase de Roberto Lira: “Mesmo o pior dos
fascínoras carrega em si mesmo a centelha da sua redenção”. A sociedade não é
feita por ascetas. Crime é uma conduta humana, existe desde que o mundo é
mundo, e em todos os lugares. Não adianta querer criar uma espécie de eugenia
em termos de que a sociedade deve ser perfeita - não será. E quando houver uma
transgressão, que a sociedade tenha uma espécie de parcimônia, de usar o duro
metal da lei, que não tem que ferir mais do que o ferimento causado pelo crime.
Temos que ter um retorno às tradições de inteligência, e isso se aplica a todos
- à advocacia, ao Ministério Público, aos juízes. Quando a gente olha o Supremo
antigo, Evandro Lins e Silva, Vitor Nunes Leal, Hermes Lima, é como se fosse
uma constelação de sábios.
O
juiz da Inglaterra é arregimentado entre os barristers, são os advogados
consagrados. Aqui, há juízes, e não poucos, que terminam a faculdade, fizeram
um estágio simbólico, passam no concurso, ganham carro oficial, um salário
muito além da mesada do papai e da mamãe e passam a ter uma caneta com o poder
de botar na cadeia quem eles bem entenderem. Isso é completamente fora do
razoável. Nos EUA, não tem concurso público. O juiz é eleito ou nomeado, se
federal, pelo presidente. Aqui é o concurso, mas o concurso não é uma garantia
plena de qualidade. Talvez uma pessoa sem concurso, mas forjada na sua grande
experiência, seja melhor. Na Inglaterra os juízes beiram os 50 anos, daí para
cima. Aqui, não. Há juízes aí, que eu não quero nominar, muito celebrados, que
têm dois ou três anos de advocacia. Aí julgam um tipo de causa e só aquilo. É o
fim da picada. Então está bom, não precisamos copiar a Inglaterra, vamos botar
uns dez anos pelo menos e uma prova de que advogou. O próprio Ministério
Público, quando eu comecei a advogar, a carreira era única, englobando defensor
público e depois o camarada era promovido a promotor. O erro era a promoção, eu
acho que o certo é continuar junto, mas com a opção de se tornar defensor com o
mesmo status no Ministério Público. Agora, existem algumas coisas curiosas.
Alguns promotores tornam-se juízes e ficam equilibrados e brandos. Às vezes, um
advogado que era liberal vira juiz e passa a ser um verdugo. Há advogados que
se transformam em juízes e não recebem advogados ou têm má-vontade. Começam a
ter ojeriza do réu, réu pobre, mal-cheiroso. Ou então a vendetta - o sujeito é
importante e ele acha que tem que ser muito severo para mostrar que é
independente. O juiz deveria pensar muito antes de mandar alguém para a cadeia.
E penso que o juiz deveria ter o dever de visitar cadeias. Passou para juiz?
Tudo bem, só pode começar a atuar depois de passar três meses visitando
cadeias. Ou então fica julgando ação de locação, ação de contrato de mútuo,
coisas assim. Mas não decidindo o destino do seu semelhante.
ConJur
— O Ministério Público, no Brasil, não tem poder de punir. Sendo assim, ele
pode negociar a pena de um delator?
Nelio
Machado — Veja bem, a negociação nesse caso é uma proposta, com aceitação ou
não. Como um contrato de adesão. Uma negociação como a transação penal, por
exemplo, é razoável. Vamos imaginar um menino que foi pego com uma quantidade
de droga que gera dúvida entre uso próprio e comercialização. Aí o Ministério
Público, ciente da dúvida, diz ao acusado, ao seu defensor “olha, embora eu
tenha dúvida, proponho um acordo. Vamos aceitar a acusação de usuário, ele não
vai à cadeia, e de qualquer forma fica a lição para ele refletir melhor sobre a
vida dele”. Como advogado, eu teria o dever de me sensibilizar com esse tipo de
acordo. Porque eu não participo de um torneio, de uma disputa. Eu participo de
uma lide na qual eu devo que buscar a melhor solução para o meu cliente. Mas eu
não identifico como melhor solução para o meu cliente ele carregar a pecha de
ter sido um pusilânime, de ter sido um sujeito que eventualmente agiu errado e,
para salvar a própria pele, ele enterra os amigos, os companheiros. Nesse
sentido, a lei do submundo é mais equilibrada do que essa pasteurização de uma
Justiça de ficção, que deixa talvez pior com sua consciência quem assim procede
do que aquele que acaba sendo alvejado em função do dardo envenenado do seu
comparsa de ontem.
ConJur
— Na “lava jato”, armas da defesa, como Habeas Corpus, estão realmente sendo
mais ignoradas do que seriam em outros processos?
Nelio
Machado — Houve o seguinte: as decisões tomadas no Paraná eram prestigiadas
pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, em Porto Alegre. Depois disso,
quando vinha para o STJ, havia uma demora desmedida no julgamento por alguma
razão, não sei qual, em vez de ser um ministro o relator era um desembargador
convocado de Santa Catarina, que demorava meses para julgar. Nós chegamos a
entrar com Habeas Corpus no Supremo por denegação de justiça reclamando da
demora. Quando se chegava no Supremo, normalmente, invocava-se a Súmula 691
para não se examinar o pedido. Se o tribunal não julgava e eu ia contra o
relator, o Supremo não julgava dizendo que não cabe examinar ato promanado do
relator. Então, quando se alardeava que as decisões eram mantidas e tal isso é
uma meia verdade. Porque decisão mesmo do Supremo houve pouquíssimas. Depois
disso vem essa história de mudança de relator.
Eu
sou do tempo que o sorteio de ministro no Habeas Corpus era público, pegava uma
bolinha, podia assistir. Agora tem algoritmo, eu não entendo disso, e aí cai em
quem caiu, da forma como caiu, mudam determinadas práticas, a turma passa a
poder julgar — antigamente era tudo no Pleno. Alegam que há trabalho demais,
mas, pessoalmente, acho que o Supremo Tribunal Federal só poderia funcionar em
Pleno. Ninguém cogita de pegar a Suprema Corte americana e dividir em turmas.
Ah, tem muito trabalho? Bom, há de haver uma solução, que se deixe lá o que é
prioritário. Fora as diferenças que há de uma turma para a outra. E tem também
uma superexposição do Supremo. Agora com o Tite melhorou, mas houve um tempo em
que você escalava a seleção do Supremo, os 11, e não escalava a seleção do
Felipão ou do Dunga. Antigamente, os maiores ministros do Supremo andavam na
rua e ninguém sabia quem eles eram. É difícil encontrar entrevista de ministro
da Suprema Corte americana. São realidades diferentes, eu não estou criticando,
estou constatando. Até porque não sou juiz, e se eles estão falando é porque
tem havido uma demanda ao Judiciário incomum, pela inércia e desprestígio do
Legislativo, causas em demasia no Supremo.
ConJur
— Afinal, o foro por prerrogativa de função é responsável por essa tão
alardeada impunidade de políticos no Brasil?
Nelio
Machado — Não é verdade. A maior prova é que o chamado mensalão foi julgado
pelo Supremo e houve inúmeras condenações, mas observou-se, de alguma forma, o
devido processo legal, porque as pessoas foram para a cadeia depois do
exaurimento da ação penal. E o foro por prerrogativa de função tem um lado que
é desvantajoso também, porque o condenado não tem a linha recursal que teria se
o caso fosse julgado em primeira instância. Aliás, o foro por prerrogativa de
função foi o que propiciou essa condenação em massa do mensalão, porque se
tivesse sido em primeira instância, nós estaríamos discutindo recursos até
hoje. Esse é um discurso completamente equivocado. E não é razoável que um
ex-presidente da República seja julgado por um juiz de primeira instância, um juiz
sozinho, um jovem juiz. Isso é um equívoco profundo. Um ex-presidente da
República tinha que ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal. Mas admitamos
que os atos tenham sido praticados depois de seu mandato. Mas, olhando de fora,
não dá para conceber que um episódio como a história que contam do sítio de
Atibaia ou tal do triplex, assuntos que ocorreram em São Paulo, seja julgado no
Paraná. Eu não consigo alcançar essa extensão, mesmo que tenham feito tal obra
e tentem vincular que a origem seria algum dinheiro que veio da Petrobras e
tal. É uma forçação de barra muito grande. Pior, com esse instituto da
colaboração, é um jogo de cartas marcadas. No episódio de Atibaia, teremos um
acusado e um defensor, na acusação teremos o Ministério Público e todos os corréus
são colaboradores. Então é um jogo injusto. Não é uma luta de boxe de um contra
um. Um lutador é o Cassius Clay [Muhammad Ali] lutando ao mesmo tempo contra
George Foreman, Sonny Liston, Mike Tyson, e todo mundo junto dando pancada. Um
negócio absurdo.
ConJur
— Há quem argumente que, sem as delações premiadas, todos esses esquemas de
corrupção revelados a partir da “lava jato” ainda estariam ocorrendo. O senhor
concorda com esse argumento?
Nelio
Machado — Não é verdade, porque o mundo todo tem processo por acusação de
corrupção e esse instituto da delação premiada não é usado, em geral, na
Europa. O [ex-chanceler da Alemanha] Helmut Kohl, por exemplo, foi investigado
por caixa dois em campanha. Na Espanha, volta e meia a gente vemos o
comprometimento da família real. O craque Messi foi condenado por sonegação
fiscal, não me consta que tenha havido delação premiada de quem quer que seja.
Isso é um argumento falacioso, que não corresponde à verdade. Se formos pensar
assim, talvez sem a tortura não se tivesse dizimado a VPR, a VAR-Palmares, a
Colina, a AP, e assim por diante. Se você fizer uma pesquisa das investigações
de esquemas criminosos do Brasil, quase nenhum terá sido baseado em delações.
ConJur
— O Ministério Público está se abraçando o ideário punitivista e deixando seu
papel de fiscal da lei de lado?
Nelio
Machado — O Ministério Público deixou de ser fiscal da lei e passou a ser um
guardião da delação de que participou, como obra fabulosa de uma nova
eficiência dos jovens procuradores da República, os paladinos da moralidade
pública. Meu pai, Lino Machado, foi deputado federal e ele fez um programa com
o apresentador Osvaldo Sargentelli, Pinga Fogo, na década de 1960. Para
provocá-lo, o Sargentelli perguntou: “Doutor Lino Machado, há juízes venais?”.
E ele respondeu: “Não, não há juízes venais. Quando o juiz é venal, ele deixa
de ser juiz e passa a ser apenas venal”. Então, quando o Ministério Público
deixa de ser fiscal da lei, ele é menos Ministério Público, ele é mais um
algoz.
ConJur
— Da mesma forma, os juízes estão decidindo de forma mais punitivista?
Nelio
Machado — Juiz não pode ser combatente da criminalidade. Juiz não tem que ter
raiva de réu. Juiz não tem que ser justiceiro. Juiz tem que ser juiz e tem que
pensar o que ele pode fazer de melhor em prol da sociedade. Eu li um artigo do
[procurador da República Deltan] Dallagnol na Folha de S.Paulo em que ele
afirma que se um juiz do Supremo muda de opinião, é como se isso fosse para
assegurar a impunidade. Espera aí — só não muda de opinião quem não pensa. Não
é nenhuma vergonha mudar de opinião. O Gilmar Mendes, por exemplo, tinha uma
posição a favor da necessidade do trânsito em julgado da sentença condenatória
para executar a pena, mudou de opinião. Agora ele está tendendo a rever a sua
posição. Por quê? Porque houve uma audiência em que vários defensores públicos,
mais do que advogados privados, mostraram quantas condenações são revertidas no
STJ e no Supremo.
ConJur
— Mas essa posição do ministro Gilmar Mendes de passar a autorizar a execução
da pena após confirmação da condenação pelo STJ ainda não viola a presunção de
inocência, uma vez que o artigo 5º, LVII, da Constituição afirma que “ninguém
será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória”?
Nelio
Machado — Eu acho errada. Ele tinha que dizer que só pode executar a pena
depois dela ser confirmada pelo Supremo. A posição dele não tem a grandeza que
eu esperava ouvir. Sem duvidar da sinceridade do argumento, mas por que no STJ,
e não no Supremo, se a Constituição fala em trânsito em julgado? A palavra
final é do Supremo, que é o pensamento do Marco Aurélio. O Marco Aurélio tem
dado liminares em que ele diz: “Quando sentei-me nesta corte, eu jurei cumprir
a Constituição. A Constituição fala em trânsito em julgado. Então, não havendo
nenhum motivo para a prisão cautelar, eu não prendo ninguém condenado em
segunda instância”.
ConJur
— Alguns advogados mais experientes afirmam que era mais fácil advogar na
ditadura militar do que agora. O senhor concorda?
Nelio
Machado — Estamos vivendo tempos tenebrosos. Eu tive mais felicidade sendo
advogado na época do regime militar, por incrível que pareça, do que vendo o
que eu tenho assistido hoje. Espero que não volte a ditadura, claro que não,
mas que volte a existir uma Justiça equilibrada. Todos os advogados são
unânimes em reconhecer que a Justiça Militar, no tempo das trevas, teve um
desempenho melhor do que talvez tivesse tido a Justiça comum. No livro Coragem,
em homenagem aos advogados que atuaram
no regime militar, eu escrevi o seguinte: “Passou-se o tempo, ficou a história
da honra e da glória. Os exemplos marcantes dos advogados que se faziam iguais,
os quais procediam como se fizessem parte de outra revolução, a repetiram em
realidade o lema ‘liberdade, igualdade e fraternidade’. Noutras palavras, o que
se via na atuação dos advogados era a observância de uma regra cunhada em metal
precioso, a repetir expressão de antanho ‘Um por todos e todos por um’. Não
haveria um melhor e outro menos bom, todos atingiam o cume da montanha pelo
denoso e dedicação. Honorários não importavam, raramente eram cobrados, vários
dos causísticos jamais os receberam. Não se dava importância ao pão, prevalecia
o brado pela liberdade e a solidariedade diante […] dos perseguidos e de suas
famílias, condenação periclitava nas sombras de um desordenamento que só fazia
com que as noites se prolongassem e o sol da manhã fosse um sonho, quimera e
fantasia. Vencemos a luta com resistência digna e altiva, para honra e glória
da advocacia brasileira”.
Mas
o que importa é que eu vou ler agora: “Lamentavelmente nos tempos atuais
procura-se apequenar-se, abastardar-se o papel dos defensores da liberdade,
prestigiando-se a repressão com base em metodologias modernas e invasivas, tão
perversas quanto os métodos do regime de exceção. Por isso é imperativo
recordar, reviver, rememorar os que foram os advogados de ontem, sobretudo para
que a imagem deles, muitos já distantes deste mundo, se projetem como
referência e norte dos que guardam idênticos compromissos em favor de uma
democracia efetivamente real e mantenedora das liberdades fundamentais”. Por
que a juventude de advogados hoje não sabe quase nada disso? Não viveram isso.
E aí o pão da delação é um pão fácil, o advogado não se expõe, não corre risco,
ele é tratado como parceiro dos que perseguem os seus clientes. Não há
confronto, não existe bola dividida, a bola é chutada só na direção do gol sem
goleiro. Se chutar para fora, mandam chutar de novo até entrar no gol. Pelo
amor de Deus, isso não é Justiça.
*Texto alterado às 15h54
e às 20h10 do dia 25 de setembro de 2017 para correção.
Por Sérgio Rodas
http://www.conjur.com.br/2017-set-24/entrevista-nelio-machado-advogado-criminalista
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