Nos
últimos dias, o Brasil vem sendo sacudido de cima a baixo por duas caravanas há
muito aguardadas. A primeira, uma caravana musical/artística de Chico Buarque,
que após seis anos lança seu novo álbum, recheado das tradições e inovações que
marcam a carreira daquele que talvez seja o maior artista brasileiro vivo.
Nesta caravana, passeamos pelo Brasil atual tão tristemente atrasado, com temas
que versam sobre o preconceito, a intolerância, o futebol e a homossexualidade.
Os ritmos mais variados se misturam e se sucedem, servindo como base para um
lirismo rico e recheado de referências, contrapondo-se à música puramente
comercial que domina as rádios brasileiras e se impõe sobre os ouvintes.
A
segunda, uma caravana político/popular de Lula da Silva, que após sete anos
fora da Presidência, ainda é lembrado por enormes parcelas da população
brasileira como a maior liderança viva do Brasil. Nesta caravana, passeamos
pelo Brasil profundo, de povo humilde e pobre, cujo tema mais importante é o
emprego e a renda, perdidos em meio à maior crise econômica da história do
Brasil. As cidades se misturam e se sucedem, servindo como cenário para a
passagem de Lula, abraçado pelo povo e munido de um discurso recheado de
esperança e orgulho próprio, contrapondo-se aos retrocessos e vergonhas alheias
impostos pelo atual governo.
Ambas
as caravanas levantaram muitas controvérsias, como era de se esperar. A
primeira caravana polemizou logo na música de abertura do álbum, intitulada
“Tua cantiga”. A canção foi repudiada por detratores e até mesmo alguns
adoradores de Francisco, com o debate girando em torno de um refrão que diz que
o personagem poderia “abandonar mulher e filhos”, caso a amante assim o desejasse.
Curiosamente, assim como a obra do autor, os debates sobre o refrão remetem ao
passado, quando o matrimônio era visto como algo sagrado e indissolúvel, assim
como ao presente, quando a preocupação com o feminismo e o compartilhamento das
responsabilidades assume protagonismo. Aqueles que chamam Chico (ou seu “eu
lírico”) de machista parecem misturar esses dois elementos, tradição e
modernidade, defendendo um conceito ultrapassado de família e matrimônio para
reforçar o papel da mulher na sociedade moderna.
Na
segunda caravana, a polêmica também vai além dos tradicionais detratores de
Lula. Mesmo alguns apoiadores de Luiz Inácio questionam sua maleabilidade, sua
capacidade de unir políticos de vários matizes ideológicos, alguns dos quais
constam na lista de adversários do campo progressista. Curiosamente, foi
exatamente essa capacidade de negociar e conciliar que tornaram Lula o fenômeno
político de maior sucesso na história recente do Brasil (assim como Vargas
antes dele). Aqueles que o chamam de incoerente e o culpam pelas mazelas
políticas do país parecem misturar desejo com realidade, supondo uma hegemonia
política que o campo da esquerda nunca construiu. Ademais, se esquecem de que
na democracia, tirando raros casos, a conciliação é a regra e os acordos
políticos são a forma de construir maiorias, fundamentais para promover
transformações no país.
Com
pouco mais de um ano de diferença na idade, Chico e Lula são irmãos gêmeos,
nascidos no mesmo país, mas em realidades absolutamente diversas. O primeiro,
filho da elite intelectual, se fez artista popular cheio de erudição,
carregando a tradição e a modernidade em sua obra para produzir o que de melhor
há na música brasileira; o segundo, filho do Brasil pobre e profundo, se fez
líder político popular, carregando o Brasil atrasado e moderno em suas alianças
e governos para produzir um dos melhores governos da história do Brasil.
“Gênios da raça”, carregam consigo as contradições de um país que não foi e que
ainda poderá ser, mas que para isso deverá ser construído por seu povo, seus
artistas e seus líderes políticos.
Aqueles
que expressam suas inquietações com a convivência de pares de opostos,
afirmando que tirariam o brilho da pureza das ideias e ideais, parecem
incapazes de enxergar na obra de ambos as contradições inerentes aos fenômenos
complexos. Falham em compreender a verdadeira natureza desses personagens: eles
são brasileiros, filhos de um país cindido, complexo, heterogêneo e
subdesenvolvido. Buarque poderia ser um grande músico erudito, mas aí não seria
Chico; Luiz Inácio poderia ser um grande líder somente da esquerda, mas aí não
seria Lula. Suas contradições são as contradições do Brasil, onde o moderno e
atrasado convivem diuturnamente, entre harmonia e conflito. Para superá-las não
é possível simplesmente negá-las, recusá-las como inaceitáveis, senão trabalhar
dentro da realidade que nos foi imposta para construir um novo Brasil onde
Chicos e Lulas não serão nem execrados por alguns, tampouco absolutamente
necessários para todos. Por hora, precisamos demais desses dois brasileiros,
irmãos gêmeos de um país esfacelado que ainda é capaz de sonhar na poesia de
Chico e no discurso de Lula.
http://brasildebate.com.br/as-caravanas-de-chico-e-lula/
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