A
essência da relação entre advogado e cliente, pauta-se na mais absoluta
confiança e permanente sigilo que embasam esse liame de entendimento
imprescindível à amplitude de defesa, durante e após o término do mandato,
pois, é dessa relação de mútua circunstanciação dos fatos e estratégias de
atuação, que flui e deflui a plenitude e a efetividade da defesa, tão
cristalina e necessária ao exercício do mandato advocatício em prol do cliente
mandante e, consequentemente, do bem comum.
Aí
é que se diz que o sigilo das conversas e dados telefônicos e telemáticos
estabelecidos entre advogado e cliente deve se revestir de blindagem absoluta,
sendo totalmente inconveniente interceptações de diálogos e conversas dessa
natureza, tanto porque o advogado interceptado tem o sigilo como prerrogativa,
quanto porque o cliente, tem a sua privacidade, como corolário do legítimo,
amplo e pleno direito de defesa.
Assim,
a impossibilidade de captação dessas conversas tem o escopo de que o acusado
não seja exposto a situação que lhe traga riscos de prejuízos consubstanciados
em injustas e inadmissíveis invasões de privacidade e de intimidade, a tolher
os seus direitos de consciência, de confiabilidade, ao silêncio e à presunção
de inocência, pelo potencial de tais elementos desaguarem em sua
autoincriminação ou ao agravamento da situação atinente à sua defesa.
É
o que impõem a Constituição da República Federativa do Brasil (artigos 5º, XII,
XIV, LVI e 133) e o Pacto de San José da Costa Rica (artigo 8º, 2, d e g, 3),
do qual o Brasil é signatário, bem como o Estatuto da Ordem dos Advogados do
Brasil (artigo 7º, incisos I e II).
No
direito penal econômico, contudo, a saga punitivista que gira em torno da
gravidade abstrata dos crimes do colarinho branco, que em regra são praticados
por organizações criminosas, tem relativizado essa sagrada e fundamental
garantia do direito brasileiro.
Há
julgados no sentido de validar tal interceptação em situações nas quais a
medida interceptiva se deu em face do cliente e não do advogado, mas acabou
captando a conversa com o causídico por ele ser um dos interlocutores (nesse
caso a captação, em tese, não seria ilícita, mas por conta do sigilo empregado,
deve ser desconsiderada). Há julgados, também, no sentido de que essa captação
incidental deve ser considerada lícita e produzir efeitos apenas e tão somente
se do conteúdo dela se concluir que o advogado também faz parte da quadrilha,
ocasião em que ele passará de mandatário para coautor ou partícipe. [1]
Veja,
a título de exemplo, algumas manifestações do Superior Tribunal de Justiça a
respeito do tema: “A captação incidental de diálogos entre o advogado e o
cliente/investigado não configura violação do sigilo profissional do causídico.
Precedente. Na hipótese, em interceptação telefônica devidamente autorizada
pela justiça, foram captados incidentalmente diálogos entre o advogado e a
esposa de um dos investigados, a qual não estava sob seu patrocínio.” (AgRg no
AREsp 457.522/SC, Rel. Ministro Rogerio Schietti Cruz, 6ª Turma, julgado em
10/11/2015, DJe 25/11/2015)
Do
mesmo bordo, no RMS 33.677/SP, julgado em 27/5/2014 pela relatora ministra
Laurita Vaz, da 5ª Turma do STJ, decidiu-se: “Não é porque o Advogado defendia
os investigados que sua comunicação com eles foi interceptada, mas tão somente
porque era um dos interlocutores. Não há, assim, nenhuma violação ao sigilo
profissional”. Para a Ministra as interceptações são essenciais nos crimes de
organização criminosa e, portanto, elementos resultantes de chamadas realizadas
para a linha interceptada, independentemente de envolver conversas entre
advogados e clientes, são provas lícitas, como ao final de seu voto conclui:
“Não ocorre, portanto, ilegalidade das interceptações telefônicas que, pelo
contexto delineado nos autos, mostraram ser necessárias e imprescindíveis para
revelar o modus operandi da organização criminosa investigada”. Atualmente, o
desfecho dado pelo STJ está sub júdice no STF (RE 845713), sob relatoria do
Ministro Luiz Fux.
Em
conclusão, embora durante o monitoramento autorizado possam ocorrer situações
em que se capte acidentalmente o acusado grampeado interagindo com seu
causídico, os dados dessa interação sigilosa nunca poderão ser utilizados como
conteúdo indiciário ou probatório tendente a influir no processo. Muito pelo
contrário, são elementos inoportunos e que devem, no mínimo, ser de plano
excluídos e desentranhados dos autos (artigo 157, § 3º, CPP), como efetivamente
ocorre.
Tal
situação, todavia, é extremamente preocupante, pois, o acesso às comunicações e
interações entre advogado e cliente não podem, em absoluto, sofrer qualquer
interferência e, assim, não basta que o monitoramento que ocorreu de forma
lícita, mas inevitavelmente captou conversa sigilosa (incidental), seja de
plano desconsiderado e desentranhado dos autos, porque a singularidade e a
confiabilidade em testilha, que são corolários do direito de defesa e da não
autoincriminação, já estarão comprometidas, pois, alguém terá conhecimento de
seu conteúdo.
A
questão do desentranhamento, portanto, não é simples e está longe de resolver o
problema da quebra incidental de conversa protegida, pois, como as informações
obtidas serão automaticamente valoradas, mesmo que a prova ilícita não integre
explicitamente o motivado convencimento do magistrado e demais figuras do
processo, ela estará inevitavelmente presente em seus âmagos e, com toda
certeza, influenciará na marcha e no desfecho do processo, tolhendo-se a
amplitude de defesa do interceptado.
Daí
é que se diz que os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, quando
ocorrente interceptação entre advogado e cliente, só cumpririam o seu papel se,
além de desentranhar os dados interceptados, for afastado o juiz que teve
conhecimento dos elementos sigilosos, substituindo-o por outro que não esteja,
em princípio, intrinsecamente contaminado pelo conteúdo sigiloso, como previa o
vetado § 4º, do artigo 157, da Lei 11.690/2008.
Nesse
sentido:
“Posicionar-se
adequadamente e de maneira imparcial ao tomar conhecimento de algo diretamente
ligado ao processo, é ter a capacidade sobre-humana de contrariar as
repercussões na alma do que adveniente do contato com o conteúdo ilícito da
prova fisicamente desentranhada, contudo residente automática e involuntariamente
no íntimo do magistrado e efetivamente radicada enraizada em seu espírito, ou
seja, em sua subjetividade, que é a sede em cujo recôndito será produzida a
decisão objetiva, daí surgindo o real problema com o veto, que suprimindo do
texto legal o § 4º do artigo 157 do CPP, não eliminou o risco da sentença
fundada na prova ilícita.”
(Salgretti,
Maria Edith Camargo Ramos. A inconveniência jurídica da inadmissibilidade das
provas ilícitas pelo seu mero desentranhamento físico dos autos e pela continuidade
do juiz que dela tivera conhecimento à frente do processo. Reflexos da questão
na persecução penal dos crimes de natureza econômica. Revista Brasileira de
Ciências Criminais. vol. 117. ano 23. São Paulo: Ed. RT, nov.-dez. 2015.)
Do
contrário, estar-se-á diante de flagrante retrocesso jurídico, a promover
disparidade entre defesa e acusação, além de colocar em xeque o próprio direito
de punir do Estado, pois, a amplitude de defesa é o ponto de partida do estado
democrático de direito e a vedação de autoincriminação, a essência da dignidade
humana do acusado.
Assim,
a sigilosidade que deve existir, não é apenas uma prerrogativa do advogado,
mas, também — e muito mais do que isso — uma garantia constitucional de todo
cidadão, pois, o direito pátrio tem como regra basilar que ninguém ficará
indefeso de seus direitos, que serão tecnicamente defendidos por um advogado
conhecedor dos fatos a ele confiados por seu cliente, com base no princípio da
consciência e, também, da confiabilidade.
Portanto,
o limite da flexibilização da interceptação telefônica entre advogado e cliente
está na constitucionalidade e na legalidade que devem ser preservadas em prol
do direito constitucional de defesa.
É
impossível que se tenha a ilusão de que, após a captação da conversa, a marcha
e desfecho processuais continuaram seus rumos normalmente, sem afetação da
efetiva defesa e sem o comprometimento da convicção magistral.
Sobre
o tema:
“A
respeito do tema, a psicanalista Eliana Riberti Nazareth publicou no Caderno
Jurídico da Escola Paulista da Magistratura artigo intitulado “A influência dos
fatores psicológicos inconscientes nas decisões judiciais”, em que, ao tratar
do ser humano como alguém regido, sobretudo pelo inconsciente, destacou: “(...)
o inconsciente ganhou corpo e estrutura: ‘a psicanálise tirou do inconsciente o
caráter indeterminado e amorfo que havia conservado até esse momento nas
interpretações dos filósofos e dos psicólogos, para adquirir um conteúdo
preciso”. Concluindo seu raciocínio com base em Freud: “O maior mérito de Freud
está em ter descoberto que não é a consciência o principal condutor do ser
humano, mas o inconsciente. E que este tem suas leis que, demandando
investigação, são pouco claras ou desconhecidas para a consciência, porém
determinantes de sua conduta”.
(Salgretti,
Maria Edith Camargo Ramos. A inconveniência jurídica da inadmissibilidade das
provas ilícitas pelo seu mero desentranhamento físico dos autos e pela
continuidade do juiz que dela tivera conhecimento à frente do processo. Reflexos
da questão na persecução penal dos crimes de natureza econômica. Revista
Brasileira de Ciências Criminais. vol. 117. ano 23. São Paulo: Ed. RT,
nov.-dez. 2015.)
Veja-se
que a saga punitivista tem se agravado consideravelmente e já vai muito além da
interceptação acidental ocorrida nos crimes de prova complexa. Já há situações
em que determinado juiz teria monitorado advogados e, por isso, o próprio
Supremo Tribunal Federal, em obter dictum, sugeriu encaminhamento de ofício à
Corregedoria Regional e ao Conselho Nacional de Justiça, para providências:
“Sendo
assim, por mais teratológica que seja a decisão de monitorar os voos dos
advogados, para efetivação de mandado de prisão, o ato, por si só, não implica
suspeição do magistrado. A absurda determinação, que consta na decisão que
decretou a prisão do paciente, não se amolda, com os contornos do caso, às
hipóteses legais de suspeição. Conquanto censuráveis os excessos cometidos pelo
magistrado, não vislumbro, propriamente, causa de impedimento ou suspeição; não
se mostram denotativos de interesse pessoal do magistrado ou de inimizade com a
parte. Ao meu sentir, os excessos cometidos, eventualmente, podem caracterizar
infração disciplinar, com reflexos administrativos no âmbito do controle da
Corregedoria Regional e/ou do Conselho Nacional de Justiça, não o afastamento
do magistrado do processo. Dessarte, voto por acompanhar o Ministro-Relator e,
por conseguinte, denegar a ordem. Todavia, sugiro que a Turma encaminhe ofício
à Corregedoria Regional da Justiça Federal da 4ª Região e ao Conselho Nacional
de Justiça, instruindo-o com cópia do acórdão.” (HC 95518, Relator(a): Min.
Eros Grau, Relator(a) p/ Acórdão: Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em
28/05/2013, Acórdão Eletrônico DJe-054 Divulgado 18-03-2014 Publicado
19-03-2014)
Sem
mais, a quebra do sigilo das conversas entre advogados e clientes é uma
preocupação que se deve ter, ainda mais no contexto atual do Brasil, em que o
grande protagonista do momento é o direito penal econômico, vertente da criminalidade,
cuja complexidade da produção de provas, tem gerado situações de abusos e
retrocessos, sob a ótica da gravidade abstrata do fato.
Sobre
a questão, confira-se:
“Manifestamente,
nos crimes de natureza econômica há grande dificuldade em provar a autoria e a
materialidade do delito, pois, o iter criminis, normalmente, compõe-se de
inúmeros atos comissivos e omissivos, advindos de uma pluralidade de
comportamentos dificilmente identificados com precisão, razão pela qual, os
agentes de investigação, o Poder Judiciário e o Ministério Público Federal, na
ânsia em conter essa criminalidade sui generis, valem-se, na busca pela
verdade, de interceptações telefônicas e quebras de sigilo, sobretudo,
ilícitas.”
(Salgretti,
Maria Edith Camargo Ramos. A inconveniência jurídica da inadmissibilidade das
provas ilícitas pelo seu mero desentranhamento físico dos autos e pela
continuidade do juiz que dela tivera conhecimento à frente do processo.
Reflexos da questão na persecução penal dos crimes de natureza econômica.
Revista Brasileira de Ciências Criminais. vol. 117. ano 23. p. xx-xx. São
Paulo: Ed. RT, nov.-dez. 2015).
Há
limites que constituem conditio sine qua non para o jus puniendi estatal, na
ótica da República, em acepção de emancipação do estado democrático de direito
e da dignidade da pessoa humana.
[1]
Nesse sentido: STJ. HC 197.044/SP, Rel. Ministro SEBASTIÃO REIS JÚNIOR, SEXTA
TURMA, julgado em 04/09/2014, DJe 23/09/2014, bem como: STF. HC 91867, Relator(a):
Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 24/04/2012, ACÓRDÃO ELETRÔNICO
DJe-185 DIVULG 19-09-2012 PUBLIC 20-09-201; STF. HC 96909, Relator(a): Min.
ELLEN GRACIE, Segunda Turma, julgado em 17/11/2009, DJe-232 DIVULG 10-12-2009
PUBLIC 11-12-2009 EMENT VOL-02386-02 PP-00279)
Luiz Antonio Sampaio
Gouveia é advogado, sócio de Sampaio Gouveia Advogados Associados. É mestre em
Direito Constitucional pela PUC-SP, especialista em Administração Contábil e
Financeira pela Escola de Administração de Empresas da FGV e em Direito Penal
Econômico pela GVlaw. É conselheiro do Iasp e do Consea/Fiesp, além de
ex-conselheiro da OAB-SP e da Aasp.
Maria Edith Camargo
Ramos Salgretti é advogada, sócia da Sampaio Gouveia Advogados Associados.
Pós-graduada em Direito Penal Econômico pelo Instituto de Direito Penal
Econômico e Europeu da Universidade de Coimbra e especialista em Direito Penal
e Processual Penal pelas Faculdades Metropolitanas Unidas.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-ago-08/opiniao-sigilo-comunicacao-entre-advogado-cliente-absoluto
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