O
Supremo Tribunal Federal analisou um ponto de fundamental relevância para o
futuro do processo penal brasileiro: a possibilidade de revisão das cláusulas
de um acordo de delação premiada homologado, monocraticamente, pelo relator.
Sobre
o tema, o primeiro ponto que se destaca é que a colaboração e a negociação com
os agentes de persecução é uma realidade que veio para ficar. Não há mais como
se posicionar “contra” ou “a favor” deste novo paradigma, pois ele é fenomênico
e atualizado com a cultura contemporânea de eficácia dos sistemas (quaisquer
sistemas).
O
segundo ponto é que, exatamente por ser uma nova realidade, alguns limites do
instituto ainda serão testados e debatidos, modificados ou eternizados. O
momento em que isso ocorre é histórico. Estamos vivenciando uma revolução
paradigmática que afeta profundamente o processo e nossa cultura social,
permeando até mesmo a maneira pela qual iremos encarar nosso vizinho no
elevador. Por tal motivo, temos que contribuir com o debate.
Dentro
de tal espírito, é possível afirmar que a delação deve obedecer a critérios
apriorísticos de existência, eis que somente através da satisfação dos
requisitos legais exigidos para sua homologação é que se traça uma expectativa
de segurança jurídica quanto à sua validade e utilização.
Neste
sentido, o Plenário do STF definiu, por maioria, que o relator do procedimento
de delação é competente por sua homologação, exercendo o controle da
regularidade de forma, da espontaneidade da vontade de colaborar e da
legalidade dos termos transacionados com o Ministério Público.
Cabe
ao relator, portanto, verificar se as condições apriorísticas foram
aparentemente cumpridas.
Até
aí, nada demais. O verdadeiro risco estava na opção de se criar uma vinculação
da Corte ao já homologado, eis que mais do que se retirar do colegiado a
possibilidade de se analisar o tema, se retira do campo científico a distinção
entre condições iniciais e condições finais do problema (a priori X a
posteriori).
Ora,
a existência de um a priori é essência do princípio da legalidade, onde a norma
surge em sentido formal para, somente após o devido preenchimento de seus
limites aparentes, permitir debate de cada caso, com análise do conteúdo
material ou oculto de sua aplicação (vide princípio da insignificância como
exemplo clássico da norma formal sem conteúdo material). Mas ele, como sua
definição indica, não é tudo.
Pelo
contrário, ele sugere segurança jurídica, mas a verificabilidade concreta do
tema é o que a garante (tanto a delatores quando delatados).
Dessa
forma, a verificação do caso concreto após esgotado seu tema é de fundamental
importância, pois legitima o acordo e sua decisão homologatória com o timbre da
ciência — refutabilidade da hipótese. Isso significa dizer que na delação,
exatamente como nas demais normas, o acordo e sua homologação também passam por
uma análise a posteriori que, se reveladora de vícios pretéritos, vícios de
vontade ou inutilidade de seu conteúdo (ainda que efetivado no processo),
permite sua completa revisão.
Tal
opção foi aceita pelo Supremo, ao decidir que o controle e avaliação de
ocorrência dos termos firmados no acordo caberiam ao colegiado. Este, portanto,
ficaria adstrito à análise da regularidade do cumprimento dos deveres assumidos
pelo delator, com ministro Fachin vencido na hipótese de vinculação do plenário
aos termos homologados. A dissidência acompanhou o voto do ministro Alexandre
de Morais entendendo que o colegiado é soberano no controle, e, nas palavras do
ministro Dias Toffoli, o acordo cria apenas um direito subjetivo do
colaborador.
Ousamos
pensar que a decisão poderia ter ido mais longe, pois no caso da homologação do
pacto, por exemplo, não há como se imaginar no sistema processual adotado em
nosso país a existência de uma decisão monocrática não sujeita a nenhuma
espécie de duplo grau de jurisdição logo após sua prolação (entendimento ainda
adotado pelo plenário, quando afirmou que o acordo não se presta para revisão
por parte de terceiros nele mencionados).
Pelo
contrário, blindar a decisão judicial contra críticas e possibilidade de
reversão via recurso ou ação impugnativa, a pretexto de se conceder ao delator
a segurança jurídica por ele procurada, é negar ao delatado este mesmo desejo e
direito, pois, sem poder questionar suas cláusulas e efeitos, suportará suas
consequências até que prove sua inocência.
Enfim,
deixar a verificação posterior para o colegiado era o mínimo necessário para se
equalizar a balança entre delator e delatado – por exemplo, em casos de
satisfação parcial dos objetivos que levaram ao acordo, vem a questão: por qual
motivo todos os benefícios contratados com uma determinada expectativa se
manteriam hígidos, ainda que tal expectativa não seja alcançada? Não seria o
caso do Direito Civil socorrer o problema com a necessária indicação de que o
delator assume uma “obrigação de fim”, e não uma “obrigação de meio”?
Vale
destacar que se o parágrafo 2º do artigo 4º da Lei 12.850/13 permite, diante da
relevância da delação, que “o Ministério Público, a qualquer tempo”, requeira
“concessão de perdão judicial ao colaborador, ainda que esse benefício não
tenha sido previsto na proposta inicial”, parece claro que o inverso é
verdadeiro: constatada a irrelevância da delação, os benefícios não serão
usufruídos.
Por
tais considerações, é legítimo afirmar, hoje, que a homologação do acordo gera
uma expectativa de direito, e não o direito adquirido de obtenção dos
benefícios. Dar ao delator segurança jurídica antes de se verificar a
refutabilidade do delatado, ou impedir o recurso sobre uma decisão judicial que
homologa acordo que influencia na vida alheia, não é adequado. Ao contrário, o
usufruto dos benefícios somente deverá estar sob abrigo da coisa julgada se, ao
final dos processos que envolverem o conteúdo delatado, verificar-se a
satisfação das cláusulas anteriormente contratadas. Nada mais, nada menos.
Daniel Gerber
é advogado criminalista.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-jul-03/daniel-gerber-homologacao-delacao-gera-expectativa-direito
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