Na
entrevista ao 247, Clemente Ganz Lucio, diretor do DIEESE (Departamento
Intersindical de Estatísticas e Estudos Sociais) explica a reforma trabalhista
em detalhes. Mostra que a jornada intermitente é um atalho para transformar a
rotina dos boias-frias, trabalhadores rurais que nunca tiveram jornada de
trabalho nem emprego fixo, numa banalidade de vários outros setores da
economia. Ele também denuncia que, num
esforço óbvio para esconder o caráter real da reforma, que jamais teria
aprovação da sociedade, num primeiro momento o governo e os empresários apresentaram
um projeto despretensioso, com poucas medidas, e agora tentam aprovar em tempo
recorde, sem que a sociedade tenha tempo de discutir, uma proposta que cria
"instrumentos e processos que permitem um ajuste estrutural do tempo do
trabalho. A entrevista:
PERGUNTA
BRASIL 247 -- Muitas pessoas tendem a minimizar a importância da reforma
trabalhista, dizendo que ela perde importância diante da reforma da
Previdência. O senhor discorda. Por que?
CLEMENTE
GANZ LUCIO -- Essa visão é o resultado esperado pela estratégia empregada pelo governo e pelos
empresários. Num esforço claro para esconder o sentido real da reforma, eles
apresentaram um primeiro projeto despretensioso, com poucas medidas, para não
chamar a atenção sobre o que estava em debate. Parecia mais uma entre tantas
discussões sobre a CLT e ninguém ligou. De surpresa, quando ninguém mais
prestava atenção, apareceu um segundo projeto, com mais de 100 artigos e 200
dispositivos, que representam a mais
profunda e extensa reforma trabalhista e sindical desde a promulgação da
CLT, em 1943. Depois, o relator Rogério Marinho, recebeu do Governo um projeto
que alterava meia dúzia de aspectos, colocou-o em debate. Em duas semanas esse
novo projeto foi apresentado e aprovado na Câmara, sem nenhum debate no
Congresso e, muito menos, com a sociedade. Afirmo que a maioria dos Deputados
desconhecia o conteúdo daquilo que
votou. A pressão para votar o projeto em tempo recorde, sem debate, tem como
objetivo impossibilitar capacidade de
reação da sociedade, já seu conteúdo não passaria incólume por um cuidadoso
debate público. Para quem pretende aprovar um projeto contra os interesses dos
trabalhadores e do futuro do país, os
empresários e o governo aplicaram um golpe de mestre.
BRASIL
247 -- Qual o sentido geral das mudanças?
CLEMENTE
GANZ -- O projeto promove uma reforma profunda. Altera o sentido do direito do
trabalho, promovendo uma conversão da CLT em uma legislação de ampla proteção à
empresa e ao empregador. A maioria das pessoas não percebeu mas a nova
legislação, se for aprovada e entrar em vigor, irá permitir um imenso processo
de reconcentração de renda e empobrecimento dos trabalhadores. Isso porque
ela cria instrumentos e processos que
permitem um ajuste estrutural do custo do trabalho. Isso se pretende fazer
pelas diversas formas de flexibilização
dos contratos de trabalho e dos salários. Esse projeto promove um amplo ajuste
do custo do trabalho à globalização, de tal modo que no Brasil se poderá
reduzir direitos e salários, do todo ou de partes da força de trabalho, ao
custo de qualquer outro país. No projeto geral de integração subordinada da
economia a globalização, assumido pelo governo, a parte que cabe ao trabalhador
é se transformar em mão de obra mais barata.
O projeto reverte o sentido da construção civilizatória que a CLT produziu
nessas mais de sete décadas e afeta todos os trabalhadores, hoje e no futuro.
Num ponto importante, essas medidas irão limitar ainda mais o acesso dos
trabalhadores à previdência social.
BRASIL
247 -- Como se pretende chegar a isso ?
CLEMENTE
GANZ -- O objetivo fundamental é mudar a atual relação de forças estabelecida
historicamente entre os trabalhadores e as empresas na partilha dos rendimentos
e benefícios do trabalho. Isso começa pelo enfraquecimento do principal escudo
coletivo dos assalariados, que são os sindicatos. Mas não só. Limita-se o
acesso a Justiça do trabalho, apagando passivos passados e limitando o acúmulo
de passivo trabalhista a um ano. A partir de agora, o trabalhador fica “livre”
para se submeter ao mando da empresa e o “empodera” para quitar débitos,
reduzir salários, aceitar “modernas” novas condições de trabalho
BRASIL
247 --Em termos práticos, como é isso?
CLEMENTE
GANZ -- Nos dias de hoje, a globalização econômica, que é um processo
histórico, representa o domínio do sistema
financeiro -- bancos e fundos de investimento e pensão que reúnem a riqueza e
renda dos ricos -- sobre todo o sistema produtivo, prometendo distribuir grande
parte dos lucros para os acionistas: o máximo retorno no menor prazo possível.
Essa nova dinâmica altera a dinâmica da produção econômica, exigindo o máximo
resultado -- lucro -- no menor
prazo --trimestral, o que coloca o
imperativo de mudanças na lógica da produção, na estratégias dos investimentos
e, ao mesmo tempo, requer uma redução estrutural do custo do trabalho, tudo
para maximizar os lucros a serem distribuídos entre os acionistas. Para que
ocorra a redução do custo do trabalho é necessário a maior e melhor flexibilidade das
legislações e dos sistemas de relações de trabalho -- negociações e sindicatos
-- para empresas e empregadores.
BRASIL
247 -- O que se conhece sobre esse processo em outros países?
CLEMENTE
GANZ -- Um estudo da OIT, acompanhando o que aconteceu a partir de em 110
países através de 672 mudanças
legislativas revela que a inciativa de flexibilização é muito ampla, voltada
para desregular a legislação trabalhista e o sistema de negociação. O estudo
indica que o impacto sobre a geração de novos empregos é nulo, até porque
enfraquece o potencial do mercado interno. Há uma nova ordem no mundo que
cresce desde a década de 80 e traz retrocessos severos no padrão civilizatório
que se avançou no pós-guerra, especialmente na Europa. Aqui no Brasil há um
aspecto mais grave: desregularemos um
mercado de trabalho que ainda está longe do padrão alcançado pelos países
desenvolvidos, apesar de sermos uma das maiores economias do planeta.
BRASIL
247 -- A reforma trabalhista no Brasil vai por este caminho que deu errado?
CLEMENTE
GANZ -- Sim. Faz a mesma entrega de flexibilização, criando as condições ao
capital internacional comandar a plena subordinação da economia nacional aos
seus interesses. Não se deve esquecer que o Brasil é uma das maiores economias
do mundo e possui volume de reservas inigualáveis, “disponíveis” para a valorização do capital, para a
produção de riqueza e renda. A reforma trabalhista é peça essencial para se
alcançar esses objetivos, de incremento do já se denominou de produtividade
espúria, ou seja, o incremento de valor agregado por trabalhador através do arrocho
salarial e depreciação das condições de trabalho. Não custa lembrar sempre:
considerado seu caráter destruidor dos direitos sociais contra a maioria da
sociedade, ela deve ser feita
rapidamente, de maneira silenciosa, sem debate e retirada à fórceps do
Congresso.
BRASIL
247 -- Estamos falando de um processo semelhante a um golpe de uma classe sobre
outra...
CLEMENTE
GANZ -- A violência legislativa dessa Lei é coerente ao que se propõe: submeter
e subordinar o trabalhador e reduzir os direitos sociais, o que um debate
democrático, legitimado pelas urnas, não seria autorizado. A democracia
atrapalha os interesses e os ganhos mobilizado pela ganância infinita do
capital.
BRASIL
247 ---Alguma vez no passado próximo ou distante os empresários chegaram a
apresentar um conjunto de mudanças tão radical para os sindicatos? Por que não
foi adiante?
CLEMENTE
GANZ -- Não conheço nenhuma iniciativa de algo tão extenso e profundo contrário
aos interesses dos trabalhadores. Em 2004, em sentido contrário a tudo o que
contem esse projeto do Congresso, no Fórum Nacional do Trabalho, depois de mais
de 500 horas de negociações tripartite (empresário, trabalhadores e governo),
elaborou-se um Projeto de reforma sindical que busca o fortalecimento de
sindicatos representativos, incentiva as negociações, cria instrumentos para
solução voluntária e ágil de conflitos. Tudo aquilo que pode ser considerado
razoável e de interesse do país. Esse novo arranjo do sistema de relações de
trabalho abria um campo para a modernização trabalhista suportada por um novo e
mais robusto sistema de negociação e representação de interesse. Esse projeto está
no congelador do Congresso desde então.
Todos – empresários, trabalhadores, governos, Judiciário – têm propostas para mudar o sistema de
relações de trabalho, a organização sindical, o direito trabalhista. Mas essa
mudança deve ser feita no espaço de diálogo social, de forma aberta e
transparente, resultando em novos pactos de convívio entre capital e trabalho,
definindo as regras para se negociar e estabelecer acordos para as condições de
trabalho e remuneração, bem como os diversos mecanismos para a distribuição da
renda e riqueza gerados pelo trabalho. O que a experiência revela é que os
empresários, na sua maioria, não apostam no diálogo social. Querem, na verdade,
uma força de trabalho submetida.
BRASIL
247 -- É correto definir a jornada intermitente
como servidão voluntária, como fez o ministro do Trabalho Marcelo
Delgado?
CLEMENTE
GANZ -- Sim. Significa uma regra hipócrita que impõe ao trabalhador a “livre
condição” de esperar, permanentemente, a demanda de trabalho pela empresa,
recebendo somente o tempo efetivo de trabalho. Quando ela precisar, chama, e o
trabalhador atende, na condição imposta pela empresa. Os bóias frias há décadas
sabem bem o que significa ir na madrugada ao ponto de encontro na esperança de
ser escolhido para cortar uma tonelada de cana-de-açucar por R$ 3,00.
BRASIL
247 -- Muitos sindicalistas dizem que se a justiça do trabalho fosse ruim para
os assalariados como os patrões gostam de dizer, as empresas não teriam tanto interesse em
acabar com ela. Você poderia comentar isso?
CLEMENTE
GANZ -- A legislação cria proteção social, com regras que devem ser obedecidas
pelos empregadores, assim como legaliza a legitimidade dos sindicatos como
escudo coletivo protetor dos trabalhadores e indica a negociação como
instrumento de solução parcial e provisório do conflito nas relações de
trabalho. Muitos acreditam, inclusive eu, que é possível modernizar o sistema
de relações de trabalho para que seja um instrumento para protagonizar o
desenvolvimento através do incremento da produtividade e partilha dos ganhos
auferidos. As mudanças também visam acompanhar as mudanças que ocorrem na
economia e no mundo da produção em que cresce, por exemplo, os postos de
trabalho no setor de serviços, do trabalho imaterial, do uso dos meios e instrumentos
de comunicação e outras mudanças. Entretanto, o que os empresário buscam é o
oposto, a máxima flexibilidade com a menor proteção social, portanto o oposto
do que promove a CLT. Eles querem o incremento da produtividade, mas por meio
do arrocho salarial e da precarização das condições de trabalho. O que querem é
o incremento da produtividade espúria, que ocorre com o aumento da exploração
do trabalhador e a concentração da renda e da riqueza.
BRASIL
247 -- A socióloga Celina do Amaral Peixoto, que é neta de Getúlio Vargas,
disse em entrevista que a CLT
promoveu a maior inclusão social que o
Brasil já viu. Olhando do ponto de vista histórico como pode-se
dimensionar a CLT?
CLEMENTE
GANZ -- Sem dúvida é um avanço muito importante em termos de inclusão para
patamares superiores em termos de padrão civilizatório nas relações laborais.
Apesar disso, ainda temos no Brasil milhões de trabalhadores que estão
excluídos dessa proteção, como
trabalhadores assalariados sem carteira, autônomos e contra-própria,
trabalhadores familiares, trabalhadores domésticas, e assim por diante. Quase
metade da força de trabalho ocupada está na informalidade ou na condições de
desempregado sem proteção. Há como melhorar continuamente a CLT, acompanhando
as mudanças no mundo da produção, assim como distribuindo melhor os resultados
da produção, seja em termos de salários e condições de trabalho, seja em termos
de políticas públicas de emprego, trabalho e renda, seguridade social, saúde,
educação, transporte público.
BRASIL
247 -- Em sua opinião, quais mudanças legítimas poderiam ser feitas nas atuais
leis trabalhistas?
CLEMENTE
GANZ -- Podemos melhorar muito o sistema de relações de trabalho, criando o
direito de organização sindical desde o chão da empresa e articulando o sistema
de representação em torno dos sindicatos. Esse sistema pode ter maior
capacidade de regular as relações de trabalho e de dar solução ágil aos
conflitos. Isso não é contraditório a uma legislação trabalhista moderna –
aliais, como é a CLT, que vem sendo ao longo das décadas, modernizada. As
mudanças devem se orientar para o protagonismo de mudanças na base econômica,
em especial de micro e pequena empresas, que precisam obter ganhos de
produtividade, integrando-se virtuosamente à economia local, nacional e
internacional. A flexibilidade deve ser no sentido de promoção dos direitos
sociais nas condições objetivas de produção, do incremento compartilhado dos
resultados, e, portanto, do sentido dinâmico de produção e distribuição de
resultados. As micro e pequenas empresas geram a maior parte dos empregos e
nelas reside parte considerável da desproteção. Uma legislação moderna deve
estar associada a um projeto de desenvolvimento dessas empresas, de promoção de
qualidade dos empregos gerados, de partilha dos ganhos, etc.
BRASIL
247 -- Supondo q a reforma venha a ser
aprovada como ficarão as famílias de trabalhadores dentro de 10 anos?
CLEMENTE
GANZ -- É difícil “ver” 10 anos para frente em nosso país, pouco voltado para
um olhar de longo prazo e, muito menos, orientado por um projeto de
desenvolvimento nacional. O que experiência internacional diz: a flexibilização
dos contratos permite multiplicar o número de ocupações que usam esse tipo de
instrumento. É provável que: (a) parte dos empregos de jornada integral se
transformem em parcial; (b) parte dos empregos permanente se transformem em
emprego parcial ou temporário; (c) parte das ocupações informais se transformem
em ocupações legais em tempo parcial, temporário ou intermitente, precários. A
legislação, ao rebaixar o patamar de proteção, incluirá mais pessoas com menos
direitos em relação o patamar atual, mas também reduzira o direito de muitos.
Nas sociedade que fizeram essas mudanças, mais pessoas estão empregadas em
tempo parcial, ganhando menos. Isso reduz a massa salarial ou impede o
crescimento dos salários. Sem o aumento da capacidade de consumo por meio dos
salários, as economias domésticas encontram-se estagnadas, com baixo dinamismo
e crescimento. Isso está ocorrendo em sociedades desenvolvidas. O que
acontecerá aqui? Em uma sociedade desigual como a brasileira, com déficits
democráticos, podemos esperar: (a) aumento da desigualdade social, (b) aumento
da desigualdade entre os trabalhadores – alguns poucos super-protegidos e a
maioria com baixíssima proteção, (c) aumento dos conflitos laborais, (d) baixo
dinamismo do mercado interno pela incapacidade de crescimento dos salários, (e)
baixo crescimento da produtividade, (f) aumento da pobreza, (g) redução da
capacidade do Estado prover políticas públicas.
BRASIL
247 -- É possível considera que a globalização tornou nossos empresários
particularmente insensíveis diante das necessidades dos trabalhadores?
CLEMENTE
GANZ -- A globalização, como disse, impõem nova regra de produção e
distribuição, para quem detém a riqueza financeira. O lucro passa a ser
destinado aos acionistas, não mais aos investimentos - o que amplia a capacidade produtiva e cria
novos empregos -, e muito menos aos trabalhadores – que devem ganhar o mínimo.
A regra da acumulação se altera e a lógica do investimento se subordina à
apropriação individualista do acionista. Há inúmeras contradições, por exemplo,
o empresário produtor é também um acionista. Essa lógica “exige” uma nova ordem na relação de trabalho,
submetendo este a mínima condição de remuneração e de direito. Trata-se da uma
lógica que promove na sua competição insaciável a concentração de renda e
riqueza, que intencionalmente amplia as desigualdades, submete a maioria os
interesses da minoria. Não se trata de insensibilidade. Trata-se de uma lógica
de acumulação que pressupõem a exclusão. Como os direitos incluem e distribuem
devem, por isso, ser eliminados.
https://www.brasil247.com/pt/blog/paulomoreiraleite/305443/Reforma-%C3%A9-golpe-de-mestre-contra-trabalhadores.htm
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