Em
junho de 2013, mais de um milhão de pessoas foram às ruas protestar no Brasil.
A movimentação ficou conhecida como "Jornadas de Junho" e impactou
substancialmente o cenário político e social do País.
Foram
mais de 690 protesto espalhados pelas cidades e cerca de 3 mil pessoas detidas,
de acordo com a organização Artigo 19. Porém, apenas uma delas permanece presa.
Rafael
Braga Vieira foi detido em 20 de junho daquele ano. Ele coletava materiais
recicláveis na região central do Rio de Janeiro, como de costume. Parou em uma
loja abandonada, que lhe servia de casa. Encontrou duas garrafas, uma de água
sanitária e outra de desinfetante. Guardou os produtos para si. No mesmo
momento, foi abordado por policiais de uma delegacia próxima que acompanhavam o
protesto na avenida Presidente Vargas, considerado um dos mais violentos do
período. Em uma leitura rápida, os policiais entenderam que o morador de rua,
preto e pobre participava das manifestações. As garrafas em sua mão seriam
ferramentas para a fabricação do "coquetel molotov", uma bomba
incendiária de fabricação caseira.
Desde
então, o caso de Rafael Braga ganhou repercussão nacional e coletivos em defesa
dos direitos humanos e contra o encarceramento em massa levantam campanhas em favor
de sua liberdade.
A
partir desta terça-feira (1), a história de Braga ganha um novo capítulo com
pedido de habeas corpus que deve ser julgado na 1ª Câmara Criminal do Tribunal
de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).
O
HuffPost Brasil conversou com o advogado Lucas da Silveira Sada, do Instituto
de Defensores dos Direitos Humanos (DDH), responsável pela defesa do caso.
"Ele
tem consciência da injustiça que ele tá sofrendo. Ele tem consciência que o
único fato criminoso que ele cometeu, ele já pagou. Aprendeu a se comportar na
prisão, fala baixo, anda de cabeça baixa, incorporou. Mas dentro dele, ele
sente a injustiça. Por mais que ele normalize a situação, porque você precisa
normalizar senão você enlouquece, ele sabe da injustiça que está sofrendo e da
disparidade de tratamento entre ele e outras pessoas", explica Sada.
O contexto da
condenação
Em
2013, Rafael Braga tinha acabado de cumprir pena após tentativa de furto no
bairro do Flamengo, na capital carioca.
Em
meio aos protesto de junho, após ser detido com as garrafas plásticas, Rafael
Braga foi condenado a cinco anos de prisão por "porte de artefatos
inflamáveis e explosivos", segundo decisão do Tribunal de Justiça do Rio.
Um
laudo técnico utilizado na sentença, no entanto, considerou as garrafas
plásticas com "ínfimas possibilidades de funcionar como 'coquetel
molotov'".
A
defesa nega que Braga esteve em posse de material inflamável. De acordo com
Sada, o catador foi vítima de um flagrante forjado da polícia. O conteúdo das
garrafas de plástico teriam sido trocados por álcool enquanto ele foi
encaminhado para uma segunda delegacia.
"Temos
um caso de crime impossível. O coquetel molotov precisa de um líquido
inflamável. Com a garrafa de água sanitária você já descarta a possibilidade de
explosão. Depois, a garrafa que era de Pinho Sol, foi esvaziada e passou a
conter álcool, por ela ser de plástico não funcionaria. O coquetel molotov
exige uma garrafa de vidro que ao quebrar espalhe as fagulhas incendiarias. Sem
a fagulha o fogo não se expande", explica o advogado.
Mesmo
após a apresentação de recursos pela defesa e o laudo técnico contraditório,
Rafael Braga foi preso.
A progressão
para o semi-aberto
Em
outubro de 2014, ele conseguiu a progressão para o regime semi-aberto. O DDH
foi responsável por encontrar um emprego estável em um escritório de advocacia
e, sob o uso da tornozeleira eletrônica, todos os dias Braga deixava a prisão
para ir trabalhar.
Um
mês depois, porém, o catador foi penalizado com dez dias de permanência na
solitária. Ele foi fotografado junto a um muro grafitado que criticava o
sistema prisional.
"Você
só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima p/baixo",
dizia o texto.
Em
2015, novamente, Braga consegue a progressão para o semi-aberto. Novamente com
emprego fixo e comprovado, o jovem deixava o presídio e vai para a prisão
domiciliar.
Em
12 de janeiro de 2016, porém, foi detido por policiais na comunidade em que
morava. Questionado sobre informações de tráfico de drogas na região, Braga
disse não tê-las. Foi levado para a delegacia e, de acordo com a defesa,
novamente autuado em um flagrante forjado.
"Os
policiais fizeram o procedimento 'padrão'. Levaram para um canto e bateram
nele. Depois, levaram para delegacia e imputaram a ele a porte de determinada
quantidade de drogas: maconha, cocaína e o 'foguete'. É o que a gente chama
aqui no rio de 'kit traficante'. Quando você quer forjar um flagrante em alguém
sobre tráfico, você tem que colocar duas drogas, para indicar diversidade. Se a
pessoa tá com uma droga só é usuário. E o foguete é pra dizer que o cara é
associado, é aquele que avisa quando a polícia chega e etc", explica Sada.
Em
abril de 2017, Rafael Braga foi condenado a 11 anos de prisão por tráfico de
drogas e associação ao tráfico.
O habeas
corpus
Para
o advogado Lucas Sada, a decisão é má fundamentada. Ele alega que o juiz deu
amplo peso à palavra de policiais e invalidou a testemunha que descreveu toda a
abordagem feita por eles no dia do flagrante forjado de Braga.
No
Rio de Janeiro, há uma súmula que diz que a condenação pode existir com base
exclusiva em depoimento dos policiais que efetuam a prisão.
Em
entrevista ao Justificando, o professor de Direito Penal da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, Antônio Pedro Melchior questiona tal atuação.
"Policiais
que prenderam o imputado em flagrante ou atuaram na investigação tem interesse
em defender a legalidade e correção da própria atuação, o que é mais ou menos
óbvio. Não são testemunhas, por isto. Se necessário ouvi-los em juízo, devem
ser tomadas com reserva, por não estarem compromissados em produzir
conhecimento verdadeiro."
Os argumentos
da defesa:
i) tem ocupação lícita como funcionário de
auxílios gerais no escritório de advocacia João Tancredo;
ii) tem residência fixa comprovada;
iii) sustenta com veemência de que seu caso
se trata de flagrante forjado;
iv) apesar de ter sido condenado por
associação criminosa, ele foi preso sozinho, evidenciando grande contradição
acusatória;
v) foi preso sem portar qualquer tipo de
arma;
vi) existe testemunha ocular atestando sua
inocência;
vii) quantidade de drogas atribuída a ele é
ínfima (0,6g de maconha e 9g de cocaína);
viii) não existe qualquer investigação
sobre com quem ele teria supostamente se associado, nem como e nem por quanto
tempo.
Ainda,
a defesa lista pelo menos duas inconsistências da sentença para impetrar o
pedido de habeas corpus, a fim de que o ex-morador de rua responda o julgamento
em 2ª instância em liberdade.
A
decisão acatada não demonstra como a liberdade do acusado poderá ofender a
ordem pública ou prejudicar o julgamento do recurso.
"O
Supremo Tribunal Federal não garante prisão preventiva como garantia da ordem
pública com base em abstrações. O Supremo admite que havendo a gravidade
concreta -- se existir violência, homicídios, uma conduta que salta os olhos --
a preventiva é necessária. No tráfico, eles aferem de acordo com a quantidade
de drogas -- uma tonelada, 50 quilos --, se o suspeito trocou tiros com a
polícia, se era uma quadrilha, coisas que tragam uma anormalidade para o crime.
Mas no caso do Rafael não tem nada disso. Ele foi preso sozinho em um flagrante
forjado, com uma quantidade pequena de drogas, sem armas e sem oferecer
resistência", explica o advogado.
O
paciente foi preso sozinho e sem portar armas. Não há periculosidade social. A
reincidência (não específica) não pode ser utilizada como único elemento para a
decretação automática da custódia cautelar.
"Existem
decisões do STF de que mesmo em reincidentes específicos eles têm a
oportunidade de responder em liberdade, desde que não existam elementos que
incidam na periculosidade. A reincidência por si só não é argumento, não tira
do sujeito a presunção de inocência. Senão, você tem uma prisão automática para
todo mundo que respondeu a processos. E não é que no caso do Rafael ele tenha essa
reincidência no tráfico. Ele não responde a dez processos por tráfico. O
direito a liberdade é um direito constitucional que todos nos temos",
argumenta Sada.
Além disso, não faz o menor sentido que,
após a expedição de decreto condenatório, com censura penal imposta e
consequente explicitação de juízo de certeza acerca da autoria, materialidade e
da própria culpabilidade do agente, ainda que em caráter não definitivo, tenha
o paciente a sua liberdade restabelecida enquanto aguarda o julgamento de seu
recurso, só porque os impetrantes acreditam que o paciente será absolvido do
tráfico (por ter sido vítima de um flagrante forjado de posse de ínfima
quantidade de drogas) e, também, da associação (por ter sido preso sozinho, sem
armas e sem oferecer resistência). Isso porque, como se sabe, qualquer alusão
ao provimento do apelo interposto e à pena que será cumprida pelo paciente,
além de se ratar de questão de mérito – impassível de análise na estreita via
do habeas corpus - não passa de mera especulação. Sendo assim, incabível o
argumento de que a prisão é demasiadamente rigorosa para quem será condenado ao
final a uma pena diversa da privativa de liberdade ou ao seu cumprimento em
regime menos gravoso, pois não sabemos sequer se o recurso interposto pela
defesa técnica do paciente será conhecido nessa instância superior.
O habeas
corpus e a Operação Lava Jato
Para
a defesa, outro argumento que deve ser combatido na sentença é o de que se
Rafael Braga respondeu todo o processo preso, por que ele deveria ser solto
agora?
De
acordo com o advogado, a sentença em 1ª instância não retira a presunção de
inocência.
"O
que a Constituição fala é que a gente é inocente até o trânsito em julgado da
sentença condenatória, que seria a sentença irrecorrível, que não cabe nenhum
recurso."
Desde
2016, no entanto, o STF relativizou a presunção de inocência para permitir a
execução provisória da pena, ou seja a prisão, a partir do julgamento em 2ª
instância, explica Lucas Sada.
"Foi
uma grande mudança. Mas continua sendo apenas em uma decisão de 2ª instância. A
decisão do Rafael é de 1ª, então ele só pode ser mantido preso se ele oferecer
risco ao processo ou a ordem pública, o que também não é uma realidade."
Como
paradigma, a defesa usa algumas decisões, sobretudo, da Operação Lava Jato de
pessoas que já foram condenadas em 1ª instância e que receberam o direito de
responder o processo em liberdade, como é o caso do político José Dirceu que
recebeu habeas corpus após quase dois anos de prisão.
"Porque
se pessoas que são acusadas de crimes graves, que cometeram crimes que abalaram
a ordem socioeconômica, e que tem algum poder de influência podem responder em
liberdade, e Rafael Braga, que é preto, pobre, semi analfabeto, desdentado,
fraco, sozinho, sem resistência, tem que passar o processo todo preso?",
questiona Lucas Sada.
Para
o advogado, a sentença é uma "exacerbação de como o sistema pode ser
perverso".
"O
sistema pode incidir de maneira irracional sobre aquele que se enquadra no
estereotipo do crime. Aquele que é socialmente lido como deliquente. O que vem
a ser exatamente a imagem de Rafael: preto, pobre, mal vestido e em uma
situação de conflito. Para esse tipo de pessoa não é preciso nem uma acusação
consistente para que sejam preso."
O
advogado, ainda, chama atenção sobre o "efeito da prisão". De acordo
com ele, uma vez preso, a chance do sujeito ser preso novamente é enorme.
"Se
você é socializado de maneira violenta, e a prisão é um ambiente violento, a
sociedade passa a te olhar ainda mais como um criminoso. Ele tava com a
tornozeleira eletrônica. Ele era literalmente o criminoso perfeito."
http://www.huffpostbrasil.com/2017/07/31/ele-tem-consciencia-da-injustica-que-esta-sofrendo-diz-advoga_a_23058724/
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