segunda-feira, 31 de julho de 2017

'ELE TEM CONSCIÊNCIA DA INJUSTIÇA QUE ESTÁ SOFRENDO' DIZ ADVOGADO DE RAFAEL BRAGA

Em junho de 2013, mais de um milhão de pessoas foram às ruas protestar no Brasil. A movimentação ficou conhecida como "Jornadas de Junho" e impactou substancialmente o cenário político e social do País.

Foram mais de 690 protesto espalhados pelas cidades e cerca de 3 mil pessoas detidas, de acordo com a organização Artigo 19. Porém, apenas uma delas permanece presa.

Rafael Braga Vieira foi detido em 20 de junho daquele ano. Ele coletava materiais recicláveis na região central do Rio de Janeiro, como de costume. Parou em uma loja abandonada, que lhe servia de casa. Encontrou duas garrafas, uma de água sanitária e outra de desinfetante. Guardou os produtos para si. No mesmo momento, foi abordado por policiais de uma delegacia próxima que acompanhavam o protesto na avenida Presidente Vargas, considerado um dos mais violentos do período. Em uma leitura rápida, os policiais entenderam que o morador de rua, preto e pobre participava das manifestações. As garrafas em sua mão seriam ferramentas para a fabricação do "coquetel molotov", uma bomba incendiária de fabricação caseira.

Desde então, o caso de Rafael Braga ganhou repercussão nacional e coletivos em defesa dos direitos humanos e contra o encarceramento em massa levantam campanhas em favor de sua liberdade.

A partir desta terça-feira (1), a história de Braga ganha um novo capítulo com pedido de habeas corpus que deve ser julgado na 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ).

O HuffPost Brasil conversou com o advogado Lucas da Silveira Sada, do Instituto de Defensores dos Direitos Humanos (DDH), responsável pela defesa do caso.

"Ele tem consciência da injustiça que ele tá sofrendo. Ele tem consciência que o único fato criminoso que ele cometeu, ele já pagou. Aprendeu a se comportar na prisão, fala baixo, anda de cabeça baixa, incorporou. Mas dentro dele, ele sente a injustiça. Por mais que ele normalize a situação, porque você precisa normalizar senão você enlouquece, ele sabe da injustiça que está sofrendo e da disparidade de tratamento entre ele e outras pessoas", explica Sada.

O contexto da condenação

Em 2013, Rafael Braga tinha acabado de cumprir pena após tentativa de furto no bairro do Flamengo, na capital carioca.

Em meio aos protesto de junho, após ser detido com as garrafas plásticas, Rafael Braga foi condenado a cinco anos de prisão por "porte de artefatos inflamáveis e explosivos", segundo decisão do Tribunal de Justiça do Rio.

Um laudo técnico utilizado na sentença, no entanto, considerou as garrafas plásticas com "ínfimas possibilidades de funcionar como 'coquetel molotov'".

A defesa nega que Braga esteve em posse de material inflamável. De acordo com Sada, o catador foi vítima de um flagrante forjado da polícia. O conteúdo das garrafas de plástico teriam sido trocados por álcool enquanto ele foi encaminhado para uma segunda delegacia.

"Temos um caso de crime impossível. O coquetel molotov precisa de um líquido inflamável. Com a garrafa de água sanitária você já descarta a possibilidade de explosão. Depois, a garrafa que era de Pinho Sol, foi esvaziada e passou a conter álcool, por ela ser de plástico não funcionaria. O coquetel molotov exige uma garrafa de vidro que ao quebrar espalhe as fagulhas incendiarias. Sem a fagulha o fogo não se expande", explica o advogado.

Mesmo após a apresentação de recursos pela defesa e o laudo técnico contraditório, Rafael Braga foi preso.

A progressão para o semi-aberto

Em outubro de 2014, ele conseguiu a progressão para o regime semi-aberto. O DDH foi responsável por encontrar um emprego estável em um escritório de advocacia e, sob o uso da tornozeleira eletrônica, todos os dias Braga deixava a prisão para ir trabalhar.

Um mês depois, porém, o catador foi penalizado com dez dias de permanência na solitária. Ele foi fotografado junto a um muro grafitado que criticava o sistema prisional.

"Você só olha da esquerda para a direita, o Estado te esmaga de cima p/baixo", dizia o texto.

Em 2015, novamente, Braga consegue a progressão para o semi-aberto. Novamente com emprego fixo e comprovado, o jovem deixava o presídio e vai para a prisão domiciliar.

Em 12 de janeiro de 2016, porém, foi detido por policiais na comunidade em que morava. Questionado sobre informações de tráfico de drogas na região, Braga disse não tê-las. Foi levado para a delegacia e, de acordo com a defesa, novamente autuado em um flagrante forjado.

"Os policiais fizeram o procedimento 'padrão'. Levaram para um canto e bateram nele. Depois, levaram para delegacia e imputaram a ele a porte de determinada quantidade de drogas: maconha, cocaína e o 'foguete'. É o que a gente chama aqui no rio de 'kit traficante'. Quando você quer forjar um flagrante em alguém sobre tráfico, você tem que colocar duas drogas, para indicar diversidade. Se a pessoa tá com uma droga só é usuário. E o foguete é pra dizer que o cara é associado, é aquele que avisa quando a polícia chega e etc", explica Sada.

Em abril de 2017, Rafael Braga foi condenado a 11 anos de prisão por tráfico de drogas e associação ao tráfico.

O habeas corpus

Para o advogado Lucas Sada, a decisão é má fundamentada. Ele alega que o juiz deu amplo peso à palavra de policiais e invalidou a testemunha que descreveu toda a abordagem feita por eles no dia do flagrante forjado de Braga.

No Rio de Janeiro, há uma súmula que diz que a condenação pode existir com base exclusiva em depoimento dos policiais que efetuam a prisão.

Em entrevista ao Justificando, o professor de Direito Penal da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Antônio Pedro Melchior questiona tal atuação.

"Policiais que prenderam o imputado em flagrante ou atuaram na investigação tem interesse em defender a legalidade e correção da própria atuação, o que é mais ou menos óbvio. Não são testemunhas, por isto. Se necessário ouvi-los em juízo, devem ser tomadas com reserva, por não estarem compromissados em produzir conhecimento verdadeiro."

Os argumentos da defesa:

    i) tem ocupação lícita como funcionário de auxílios gerais no escritório de advocacia João Tancredo;

    ii) tem residência fixa comprovada;

    iii) sustenta com veemência de que seu caso se trata de flagrante forjado;

    iv) apesar de ter sido condenado por associação criminosa, ele foi preso sozinho, evidenciando grande contradição acusatória;

    v) foi preso sem portar qualquer tipo de arma;

    vi) existe testemunha ocular atestando sua inocência;

    vii) quantidade de drogas atribuída a ele é ínfima (0,6g de maconha e 9g de cocaína);

    viii) não existe qualquer investigação sobre com quem ele teria supostamente se associado, nem como e nem por quanto tempo.

Ainda, a defesa lista pelo menos duas inconsistências da sentença para impetrar o pedido de habeas corpus, a fim de que o ex-morador de rua responda o julgamento em 2ª instância em liberdade.

A decisão acatada não demonstra como a liberdade do acusado poderá ofender a ordem pública ou prejudicar o julgamento do recurso.

"O Supremo Tribunal Federal não garante prisão preventiva como garantia da ordem pública com base em abstrações. O Supremo admite que havendo a gravidade concreta -- se existir violência, homicídios, uma conduta que salta os olhos -- a preventiva é necessária. No tráfico, eles aferem de acordo com a quantidade de drogas -- uma tonelada, 50 quilos --, se o suspeito trocou tiros com a polícia, se era uma quadrilha, coisas que tragam uma anormalidade para o crime. Mas no caso do Rafael não tem nada disso. Ele foi preso sozinho em um flagrante forjado, com uma quantidade pequena de drogas, sem armas e sem oferecer resistência", explica o advogado.

O paciente foi preso sozinho e sem portar armas. Não há periculosidade social. A reincidência (não específica) não pode ser utilizada como único elemento para a decretação automática da custódia cautelar.

"Existem decisões do STF de que mesmo em reincidentes específicos eles têm a oportunidade de responder em liberdade, desde que não existam elementos que incidam na periculosidade. A reincidência por si só não é argumento, não tira do sujeito a presunção de inocência. Senão, você tem uma prisão automática para todo mundo que respondeu a processos. E não é que no caso do Rafael ele tenha essa reincidência no tráfico. Ele não responde a dez processos por tráfico. O direito a liberdade é um direito constitucional que todos nos temos", argumenta Sada.

    Além disso, não faz o menor sentido que, após a expedição de decreto condenatório, com censura penal imposta e consequente explicitação de juízo de certeza acerca da autoria, materialidade e da própria culpabilidade do agente, ainda que em caráter não definitivo, tenha o paciente a sua liberdade restabelecida enquanto aguarda o julgamento de seu recurso, só porque os impetrantes acreditam que o paciente será absolvido do tráfico (por ter sido vítima de um flagrante forjado de posse de ínfima quantidade de drogas) e, também, da associação (por ter sido preso sozinho, sem armas e sem oferecer resistência). Isso porque, como se sabe, qualquer alusão ao provimento do apelo interposto e à pena que será cumprida pelo paciente, além de se ratar de questão de mérito – impassível de análise na estreita via do habeas corpus - não passa de mera especulação. Sendo assim, incabível o argumento de que a prisão é demasiadamente rigorosa para quem será condenado ao final a uma pena diversa da privativa de liberdade ou ao seu cumprimento em regime menos gravoso, pois não sabemos sequer se o recurso interposto pela defesa técnica do paciente será conhecido nessa instância superior.

O habeas corpus e a Operação Lava Jato

Para a defesa, outro argumento que deve ser combatido na sentença é o de que se Rafael Braga respondeu todo o processo preso, por que ele deveria ser solto agora?

De acordo com o advogado, a sentença em 1ª instância não retira a presunção de inocência.

"O que a Constituição fala é que a gente é inocente até o trânsito em julgado da sentença condenatória, que seria a sentença irrecorrível, que não cabe nenhum recurso."

Desde 2016, no entanto, o STF relativizou a presunção de inocência para permitir a execução provisória da pena, ou seja a prisão, a partir do julgamento em 2ª instância, explica Lucas Sada.

"Foi uma grande mudança. Mas continua sendo apenas em uma decisão de 2ª instância. A decisão do Rafael é de 1ª, então ele só pode ser mantido preso se ele oferecer risco ao processo ou a ordem pública, o que também não é uma realidade."

Como paradigma, a defesa usa algumas decisões, sobretudo, da Operação Lava Jato de pessoas que já foram condenadas em 1ª instância e que receberam o direito de responder o processo em liberdade, como é o caso do político José Dirceu que recebeu habeas corpus após quase dois anos de prisão.

"Porque se pessoas que são acusadas de crimes graves, que cometeram crimes que abalaram a ordem socioeconômica, e que tem algum poder de influência podem responder em liberdade, e Rafael Braga, que é preto, pobre, semi analfabeto, desdentado, fraco, sozinho, sem resistência, tem que passar o processo todo preso?", questiona Lucas Sada.

Para o advogado, a sentença é uma "exacerbação de como o sistema pode ser perverso".

"O sistema pode incidir de maneira irracional sobre aquele que se enquadra no estereotipo do crime. Aquele que é socialmente lido como deliquente. O que vem a ser exatamente a imagem de Rafael: preto, pobre, mal vestido e em uma situação de conflito. Para esse tipo de pessoa não é preciso nem uma acusação consistente para que sejam preso."

O advogado, ainda, chama atenção sobre o "efeito da prisão". De acordo com ele, uma vez preso, a chance do sujeito ser preso novamente é enorme.

"Se você é socializado de maneira violenta, e a prisão é um ambiente violento, a sociedade passa a te olhar ainda mais como um criminoso. Ele tava com a tornozeleira eletrônica. Ele era literalmente o criminoso perfeito."

http://www.huffpostbrasil.com/2017/07/31/ele-tem-consciencia-da-injustica-que-esta-sofrendo-diz-advoga_a_23058724/


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