A
crise do governo Temer ocasionada pela delação dos proprietários da JBS
promoveu uma atualização da tática golpista. O ponto final para Temer é uma
tentativa de continuidade para o golpe.
Postulado 1 –
Contradição entre interesse particular e o geral
Os
interesses de uma classe não correspondem a um programa acordado a priori entre
todos os indivíduos que a compõem. No mundo real, os indivíduos agem a partir
de seus interesses, das avaliações que fazem sobre as situações que lhes são
impostas, e cada uma destas ações é limitada pelo universo cognitivo do mesmo,
além, é claro, da força que dispõe para atuar e viabilizar seus objetivos.
Mesmo
sendo ambas verdadeiras, é pela mediação analítica dos objetivos de setores,
grupos e indivíduos (concreto – particular) e dos interesses de classe
(abstrato – genérico) que se podem procurar explicar os acontecimentos de uma
conjuntura específica. Assim, a ação de um sujeito pode comprometer o interesse
da classe à qual pertence, ou, ao contrário, salvá-la da própria miopia em
relação aos fatos que ameaçam sua própria reprodução.
Postulado 2 – O
imponderável existe
Se
for verdade que os sujeitos (atores) de um determinado jogo social procuram
agir de maneira consciente no sentido de alcançar seus objetivos, é também
verdadeiro que outros atores (aliados e adversários) tentam fazer o mesmo.
A
ação de um ator pode constranger os planos de outros, criando uma situação
diferente daquela desejada por amplos. Quanto maior o número de atores
envolvidos em um jogo, maior probabilidade do imponderável, isso porque as
variáveis em operação na situação escapam ao controle dos sujeitos envolvidos,
muitas vezes não são previsíveis, ou quando previsíveis não são domesticáveis.
Não
é possível conhecer todas as consequências de uma ação, a porção conhecida é
proporcional (ou quase) ao conjunto de informações de que dispõe o ator, bem
como sua capacidade cognitiva (proveniente da experiência, da pesquisa, etc.)
em transformar informações em conhecimentos, e conhecimentos em atos.
Entre
a vontade dos atores de atingir seus objetivos e o volume de variáveis por eles
desconhecidas surge o espaço para o imponderável.
Por
que deram o golpe mesmo?
Para
conhecer o que está em jogo hoje é preciso retomar as análises do
desencadeamento do golpe e assim identificar o que há de novo na situação
presente, ou seja, qual é a novidade conjuntural.
É
necessário resgatar que o golpe é, antes de tudo, uma confluência de
interesses. No nível de mando mais alto encontram-se os interesses das grandes
petroleiras e conglomerados financeiros internacionais, que usaram o seu
principal mecanismo de operação, o Departamento de Estado dos EUA, que também
possui interesses próprios com a desestabilização do Brasil, para desencadearem
a trama do golpista. Em resumo, neste momento havia dois objetivos
fundamentais.
Objetivo
do cartel das grandes petroleiras internacionais – Controlar o principal
recurso estratégico brasileiro, o petróleo do Pré-Sal, mas também a tecnologia
desenvolvida pela Petrobras. (Objetivo 1)
Objetivo
do Departamento de Estado dos EUA – Inviabilizar a reivindicação de um lugar
menos submisso do país nas relações internacionais (derrotar o Brics), por meio
da implosão dos seus patrocinadores no Brasil. (Objetivo 2)
A
partir de 2014, com a reeleição de Dilma, colocou-se, aos atores externos, a
necessidade de uma abordagem mais truculenta. Daí iniciou-se o processo de
desestabilização e impeachment. Para viabilizá-lo foi necessário decompor não
apenas a base parlamentar da presidente, mas ainda retirar o apoio (em alguns
casos, a tolerância) que a mesma tinha nas próprias elites (bancos,
empreiteiras, agronegócio, etc.).
Para
garantir a aliança entre a Casa Branca e a Casa Grande foi necessário ainda
agregar, aos dois primeiros objetivos, aqueles que correspondem aos interesses
imediatos dos capitalistas brasileiros, que já estavam explícitos na agenda
parlamentar das grandes confederações patronais (CNI, Febraban, Fiesp, CNA,
etc.) e que ganharam sistematização no documento do PMDB, denominado “Ponte
para o Futuro”.
Objetivo
dos bancos – Garantir o aumento da renda da especulação financeira via dívida
pública e financeirização de serviços públicos (ex.: congelamento dos gastos
públicos por 20 anos, proposta de destruição da previdência pública, etc.).
(Objetivo 3)
Objetivo
do empresariado – eliminar os direitos trabalhistas e ampliar a subordinação do
trabalhador perante o empregador (ex.: Proposta de reforma trabalhista,
terceirização irrestrita, alteração das normas de demarcação de terras
indígenas, etc.) (Objetivo 4)
Objetivo
dos partidos políticos conservadores – Ampliar privilégios, desequilibrar as
condições de disputa eleitoral ao seu favor, proteger-se contra ações criminais
(Ex.: Escola Sem Partido, alteração do sistema eleitoral, etc.). (Objetivo 5)
O
golpe é, portanto, a convergência destes interesses, que para materializar-se
necessitariam eliminar um centro político-econômico condicionador formado pelo
PT e a fração do empresariado beneficiária das medidas anticíclicas e das políticas
de formação de players mundiais sustentada pelo financiamento do Bndes. Neste
rol encontram-se as grandes construtoras, com a Odebrecht, que se capitalizaram
com o Plano de Aceleração do Crescimento /PAC.
Para executar o golpe,
foi necessário:
1)
Decompor a viabilidade política do PT e de Lula.
2)
Enfraquecer as chamadas empresas (“players”) mundiais explorando o sistema de
corrupção intrínseco às atividades capitalistas, que não é uma exclusividade
brasileira.
3)
Realizar ataques coordenados, maciços e rápidos aos direitos do povo na
perspectiva de dificultar a capacidade de reação e unidade das organizações
populares.
Em
síntese, a tática empreendida foi romper a relação de colaboração entre o PT e
as grandes empreiteiras. Os instrumentos utilizados foram delações e acordos de
leniência; e explorar as divergências de posição das organizações populares e
sindicais em relação ao PT, isolando-o ainda mais dos setores populares. Como
instrumento, foi montado o espetáculo do combate à corrupção (sem
necessariamente combatê-la de maneira objetiva, uma vez que as investigações
foram seletivas).
O
Juiz Sérgio Moro e setores MPF (como aquele procurador do PowerPoint) são
agentes (operadores) desta tática e são orientados no exterior (vide as
intensas viagens do Juiz e dos membros do MP aos EUA).
A
tática deu certo até certo ponto.
Entre o golpe desejado e
o golpe possível
Algumas
novidades da conjuntura mudaram substancialmente o curso dos acontecimentos em
relação à Lava-Jato e à condição de Temer. Para perceber isso é necessário
passar em revista os objetivos iniciais da trama do golpe.
Crise
de orientação externa da Lava-Jato
Os
atores externos (Petroleiras e Departamento de Estado do EUA) atingiram
parcialmente seus objetivos.
Foi
aprovado o projeto de autoria do Senador José Serra, hoje Lei 13365/2016, que
retirou a garantia legal da Petrobras em participar em pelo menos 30% de cada
jazida do pré-sal, além da operação exclusiva dos recursos provenientes destas
reservas. A Petrobras, sob a direção do golpista Pedro Parente, segue vendendo
jazidas de petróleo e gás por todo o país, garantido os interesses
internacionais sobre estes recursos. A privatização da empresa está sendo feita
por meio da desconstrução de sua viabilidade a logo prazo, assim o cartel das
petroleiras internacionais garante boa parte do seu objetivo inicial.
Com
o governo Temer, e sob a condução também de José Serra nas Relações Exteriores,
o Brasil afastou-se do Brics e está isolado nas relações internacionais (exceto
em relação a Washington). Enquanto ministro, José Serra sinalizou o interesse
em ingressar nas negociações do TISA (Trade in Services Agreement — Acordo
sobre Comércio de Serviços). Nada mais é do que um acordo de “livre” comércio
muito mais danoso do que a proposta da ALCA e o Nafta, que visa a
“mexicanização” das nações dependentes sob o domínio dos EUA e União Europeia.
Os membros dos Brics não estavam dentro destas negociações, pela razão óbvia: o
TISA é uma estratégia contra os “emergentes”.
Assim,
é possível afirmar que o objetivo da Casa Branca foi parcialmente atingido.
Porém, outra novidade neste tema é a entrada de Donald Trumph no Salão Oval.
Mesmo não rompendo com a política externa norte-americana, ele até o momento
concentra-se em outra agenda, a da sua própria viabilidade política. O que
deixa, em alguma medida, acéfala a orientação externa da Lava-Jato, largando
Sérgio Moro sem direção, agindo por conta própria, ou quase.
Os “de baixo” bloqueiam
a agenda do golpe
Restam
ainda os objetivos da Casa Grande brasileira (renda, privilégios econômicos e
políticos, redução de direitos), que não foram contemplados conforme o prometido
pelo governo de Temer.
Os
bancos conquistaram uma grande vitória na PEC de Congelamento de Gastos (PEC do
Fim do Mundo), mas a proposta de “Reforma” da Previdência está sob sério risco.
O empresariado exige a “Reforma” Trabalhista, que também recebeu forte
resistência da maioria da população brasileira. Os partidos conservadores,
envolvidos nos escândalos de corrupção e desgastando-se a cada dia para
viabilizar a agenda golpista fortemente antipopular, não conseguiram garantir
as condições para uma contrarreforma política conservadora.
Enquanto
isso, as organizações populares e sindicais acertavam uma linha mínima de
resistência e uma forma básica de trabalho, que lhes garantiu ampliar
significativamente o custo da aprovação das reformas. A Greve Geral do dia 28
de abril foi a expressão desse processo de unidade na ação.
Diante
do bloqueio da agenda legislativa do golpe, o único fator que mantinha a
sustentação de Temer em seu posto foi corrompido. O presidente do golpe
encontra-se sem valor de uso e sem valor de troca, ou seja, é uma “coisa” a ser
descartada caso não disponha de nenhum recurso de chantagem, como aqueles
utilizados por Eduardo Cunha.
A alta probabilidade do
imponderável
A
Operação Lava-Jato de Moro (1ª instância) - seletiva em suas investigações -
não tem controle sobre todos os campos de disputa que inaugurou. A delação dos
donos da JBS foi produto da ação de outro centro de atores, o da Lava-Jato DF,
operada por Rodrigo Janot (PGR) e pelo Ministro Edson Fachin (Relator da
Lava-Jato no STF), que procuram reestabelecer uma “hierarquia” no Judiciário, e
assumir o protagonismo na condução da operação, na tentativa de alcançar os
objetivos constrangidos pela condução em primeira instância.
A
lógica de Moro, ao eleger Lula como seu antagonista ao preço de colocar em
questão a própria operação Lava-Jato, desagradou parcelas do consórcio
golpista, mais fundamentadas pelos resultados de suas ações do que pelas
preferências políticas e rancores. Moro não é mais útil, ou não na mesma
proporção que antes, porque já está passando a arrombar portas abertas, e suas
ações não correspondem mais aos objetivos já indicados. A condução de Curitiba
protegia Temer e o PSDB, mas o que vale isso se os interesses materiais que
estes agentes deveriam viabilizar não estão sendo encaminhados?
O
elemento chave da atual crise do governo Temer não é a delação dos donos da
J&B, mas a incapacidade da presidência e seus aliados tucanos em dirigir a
aprovação das reformas. Isso se deve especialmente à resistência do povo nas
ruas, que tem tido impacto no cenário parlamentar. Como não consegue aprovar as
reformas, a Casa Grande deseja descartar o presidente e conduzir ao Palácio do
Planalto alguém que tenha condições de continuar o trabalho.
Janot
e Fachin assumem a condução da Lava-Jato neste momento, no sentido de fazer
aquilo que Moro não quer e o que Temer não pode: dar continuidade à agenda das
reformas. As delações dos “Irmãos Friboi” (Joesley e Wesley Batista) foram uma
oportunidade para superar a tática já desgastada de Curitiba, e recompor o
mínimo de legitimidade para que o espetáculo da Lava-Jato continue. Por isso a
Globo cria as condições para a queda de Temer, Aécio e companhia, justamente
para limpar o campo obstruído de interesses menores e viabilizar uma sucessão
útil às metas do setor bancário e empresarial, mesmo que para isso tenha de
destruir políticos conservadores (o elo mais fraco da trama do golpe), ou seja,
não viabilizar “Objetivo 5” de nossa lista acima.
A
confusão sobre qual caminho tomar na sucessão é justificável. O consórcio
golpista não tem um estado-maior, mas uma correlação de força entre diferentes
centros de decisão que perseguem metas próprias e agem frente às oportunidades
e ameaças com as quais se deparam.
Voltando
aos postulados iniciais, é na contradição entre os interesses particulares e o
geral que a política real se processa. As elites se reproduzem principalmente
pela competição, e a cooperação surge sempre no marco de um interesse
competitivo. As delações e acordos de leniência deram segurança jurídica para a
traição, já impressa nos costumes do andar de cima. A rasteira ganhou
acabamento legal. Os açougueiros, que se tornaram banqueiros, não deixarão
ninguém de pé, desde que seus vistos estejam garantidos para um destino acima
da Linha do Equador. O capitalista particular pode provocar o apocalipse de sua
classe em troca da salvação privada de seus bens, os donos da JBS não são
exceção.
Se
a traição é um modus operandi dos capitalistas, que se intensifica em períodos
de crise, o espaço para o imponderável se amplia, as consequências de cada ação
não são conhecidas completamente por quem a executa. Este é um retrato do
Brasil atual, no qual ninguém do espectro político tradicional, com algum nível
de bom-senso, pode afirmar com certeza que estará livre nas próximas 24 horas.
Por
mais imprevisível que seja a situação, não se trata do caos, mas, antes de
tudo, da convulsão do mundo real, sempre indiferente aos nossos esforços de
compreendê-lo.
http://outraspalavras.net/brasil/o-golpe-em-seu-impasse/
Nenhum comentário:
Postar um comentário