Em
2011, a escola de samba Unidos da Lona Preta compôs um samba cujo refrão
termina com o verso: “Agronegócio, a mentira do Brasil”. O que a princípio
poderia parecer uma frase de efeito na guerra simbólica entre agroecologia e
agronegócio revela-se a cada dia uma verdade incontestável.
A
mentira em questão possui diversas dimensões: o agronegócio não mata a fome,
como afirma, não gera emprego e tampouco é sustentável, como às vezes tem a
cara de pau de propagandear. Hoje, o assunto é a viabilidade econômica do
agronegócio.
Em
relação à dimensão econômica, um dos aspectos dessa mentira que temos alertado
há tempos é o alto custo de produção que muitas vezes encosta ou ultrapassa o
preço de venda das mercadorias. Nesta semana, foi publicada uma reportagem
contendo declarações do presidente da Aprosoja-GO que ajudam a descortinar
didaticamente mais essa balela do agronegócio.
O
que entendemos por agronegócio
Como
prólogo, é importante alinhar o que entendemos por agronegócio. O tema é
extenso, mas aqui falamos especificamente sobre uma cadeia de produção, que
engloba três grandes grupos de atividades, denominados:
Antes
da porteira;
Dentro
da porteira; e
Depois
da porteira.
O
primeiro estágio se refere à parte da cadeia que produz os insumos que serão
utilizados na produção: agrotóxicos, sementes (híbridas ou transgênicas) e
adubos químicos. Além dos insumos, outra parte importante neste estágio são as
empresas produtoras de máquinas agrícolas.
O
segundo estágio – dentro da porteira – se refere à atividade agrícola em si:
semear, plantar e colher (regado a muitas aplicações de agrotóxicos). Esta
atividade é a que povoa o imaginário da sociedade e que, muitas vezes, se
confunde com o próprio termo “agronegócio”.
Finalmente,
o terceiro estágio – depois da porteira – inclui uma vastíssima gama de
atividades econômicas, por exemplo: a recepção e armazenamento da produção
(originação), tradings que distribuem a produção no mercado interno e externo,
as indústrias de transformação (alimentação humana, animal, produção de óleos e
combustíveis), e sobretudo o mercado financeiro, que eleva a produção agrícola
ao abstrato mercado de ações presentes e futuras, fazendo todo o tipo de
malabarismo especulativo.
É
claro que ainda há toda a base de sustentação simbólica (mídia), jurídica/legal
(legislativo) e financeira (executivo). A participação desses atores é crucial
para a manutenção do agronegócio, como veremos à frente.
Quem é o
agronegócio?
A
partir das definições acima, pode-se desenhar e dar vida aos jogadores desta
cadeia. Na parte de insumos, o controle fica por conta das tradicionais seis
grandes – Basf, Bayer, Monsanto, Syngenta, Dow, Dupont – que estão virando três
gigantes (Monsanto-Bayer, Dow-Dupont, Syngenta-ChemChina-Adama). No ramo de
máquinas, temos John Deere e New Holland como praticamente únicas fornecedoras
de tratores.
Depois
da porteira, reinam as famosas ABCD: ADM, Bunge, Cargill e Dreyfuss, que
concentram o mercado de logística e estendem os ramos até a indústria de
alimentos, se é que podem ser assim chamados os produtos dessas empresas. Na
indústria de alimentos, mais concentração: Nestlé, Kraft, Coca-Cola, Unilever,
Pepsico, etc.
Como
se pode ver, o único espaço que sobra para o Brasil é a parte de dentro da
porteira. Ainda que haja um grande movimento de compra de terras pelo mercado
financeiro internacional, podemos afirmar que a maioria dos que atuam “dentro
da porteira” são empresas brasileiras, e familiares em muitos casos. (Se o
PL4059/2012, que libera a venda de terras para estrangeiros, hoje restrita, for
aprovado, nem isso mais se poderá afirmar).
A conta não
fecha
A
partir dessa introdução, em que viu-se os três grupos de componentes do
agronegócio, e por quem eles são formados, podemos prosseguir na análise da
reportagem sobre o custo de produção da soja.
A
Associação de Produtores de Soja de Goiás divulgou no final de maio um estudo
revelando os custos de produção da soja e milho, e os preços médios de venda. A
conclusão não chega a ser novidade: somados os custos com terra, sementes,
agrotóxicos, fertilizantes e máquinas, o produtor pagou R$ 3.484,16 por hectare
de plantação de soja. Neste mesmo hectare, com toda a tecnologia de ponta, ele
foi capaz de produzir entre 58 e 60 sacas de soja. Ocorre que a saca de soja
foi comercializada a R$ 58, resultando num faturamento de R$ 3.364,00/ha. Ou
seja: prejuízo. Conclusão semelhante foi encontrada a partir da análise feita
sobre a produção de milho.
Sobre
o assunto, o presidente da Aprosoja-GO, Bartolomeu Braz Pereira, mata uma parte
da charada: “A parte financeira da nossa atividade é baseada no dólar, tanto os
preços de insumos como os de venda. Quando fizemos o planejamento desta safra,
o dólar permeava os R$ 4,00; hoje está mais próximo de R$ 3,00. Só essa
diferença gera um impacto de 30%”.
Elementar,
meu caro Bartolomeu. Se eu moro no Brasil, como no Brasil, durmo no Brasil,
produzo soja no Brasil, mas: meu insumo é controlado por um oligopólio
estrangeiro, e quem determina o preço do meu produto é outro oligopólio
estrangeiro, então o produtor não tem nenhum controle sobre seu negócio, e o
país não tem nenhuma soberania sobre uma de suas principais atividades
econômicas.
Bartolomeu
segue com outra pista: “Não adianta ter uma supersafra se vamos ter prejuízo.
(…) Tudo tem que ser avaliado, porque não há conta que feche com esse custo de
produção que só aumenta”.
Infelizmente,
caro Bartolomeu, sinto lhe dizer que o espírito do pacote tecnológico é igual à
lenda urbana do baleiro que vende doces com cocaína para viciar as crianças. No
começo é bem barato, e dá o maior efeito. Depois que vicia, o barato diminui e
o preço aumenta. Aí já não tem mais saída.
A
reportagem termina com uma recomendação surpreendente do consultor Cristiano
Palavro: “No caso das sementes, que vêm encarecendo devido ao emprego de
biotecnologia (transgênicos!), o consultor técnico da Aprosoja-GO aconselha o
plantio de variedades convencionais ou sem patente, desde que consigam competir
em produtividade.”
Quase
15 anos depois da legalização dos transgênicos no Brasil, parece que a ficha
caiu. Resta saber se ainda há tempo de voltar atrás. O ISAAA, entidade de
propaganda dos transgênicos no mundo, afirmou em seu relatório de 2016 que
96,5% da soja plantada no Brasil é geneticamente modificada.
E o pato, quem
paga?
Decorre
da nossa definição acima que não foi o agronegócio que teve prejuízos. Afinal,
o faturamento de 9,6 bilhões de dólares alcançado pela indústria de agrotóxicos
no Brasil em 2016 não é o que se possa chamar de mau resultado. Quem teve
prejuízo foi justamente aquela parcela do agronegócio que tem a maior parte das
raízes fincadas no Brasil.
Pobres
produtores rurais, homens do campo, que suam a enxada, trabalham para alimentar
o Brasil debaixo de chuva e sol, sujeitos à ação de pragas malvadas… Não, pera!
Faltou
um “pequeno” detalhe nesta trama: os R$ 188,3 bilhões do Plano Safra anunciados
pelo ministro Blairo Maggi no último dia 7 de junho; um aumento de 1% em
relação à safra passada. Este montante é totalmente destinado aos grandes
produtores rurais para pagar suas contas com a turma de antes e depois da
porteira.
Ou
seja: quase 8 bolsa-famílias é valor do bolsa-agronegócio, dinheiro que vai
diretamente do governo para as empresas, fazendo uma curtíssima parada “dentro
da porteira”. E quando o produtor não consegue honrar as dívidas dos
empréstimos contraídos, há inúmeras possibilidades de negociação e seguros,
também custeados pelo governo.
Obviamente
é dever do Estado financiar a produção agrícola do país. O problema central é o
modelo de agricultura adotado, que se torna extremamente vulnerável a fatores
externos sobre os quais não há nem controle nem previsibilidade.
O
agronegócio movimenta sim uma fatia grande da economia. No entanto, privilegia
empresas multinacionais e a produção de mercadorias agrícolas, e despreza a
produção de comida de verdade, que vai pra mesa, virando as costas para a
grande maioria dos agricultores do país, agricultores familiares. Aliás, virar
as costas não é de todo mal: a agricultura familiar integrada ao agronegócio
sim é o pior dos mundos: o pequeno produtor se vê aprisionado num modelo que
produz o que agronegócio necessita, e vende pelo preço que o agronegócio quiser
pagar. O caso do tabaco gera inclusive grandes taxas de suicídios, em uma
mistura explosiva de agrotóxicos neurotóxicos e dívidas impagáveis.
Não
há nenhuma novidade nessa discussão. Mas enquanto não tivermos forças para
realizar a reforma agrária e mudar o modelo de produção, resta-nos seguir
lutando e provando o que disse a Unidos da Lona Preta em 2011: Agronegócio, a
mentira do Brasil.
https://www.brasildefato.com.br/2017/06/14/de-quem-e-o-prejuizo-do-agronegocio/
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