Há
muito tempo o Brasil reconheceu que o afeto é fonte de parentesco.
A
partir do texto de João Baptista Villela (Desbiologização da Paternidade)[1]
que data de 1979, a construção doutrinária sólida coloca o Direito de Família
brasileiro em posição de relevo perante os demais países que, lentamente,
começam a reconhecer que além do parentesco natural (decorrente do sangue, do
DNA) e do parentesco civil (decorrente das técnicas de reprodução humana
assistida e da adoção) o afeto também é causa de parentesco.
Os
problemas e vicissitudes enfrentados, mormente em razões de objeções que
carecem de fundamento, levantadas por professores conservadores (também
chamados de “time do contra”), que se negam a enxergar que a família mudou e
com isso mudou também o Direito de Família, foram superados pela decisão do
Supremo Tribunal Federal na repercussão geral 622 em setembro de 2016. Assim
temos:
“A
paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o
reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem
biológica, com os efeitos jurídicos próprios.”[2]
A
decisão representa o grande triunfo do afeto: reconhecido não só como fonte de
paternidade, mas com repercussão geral.[3]
O
reconhecimento judicial da paternidade socioafetiva e seus efeitos é pacífico e
reiterado pelas decisões do STJ, Corte que encerra o debate em matéria
infraconstitucional. Assim temos duas grandes questões:
a)
Homem registra filho de sua esposa ou companheira sabendo que biologicamente o
filho é de um terceiro. Depois de algum tempo, apesar dos vínculos de afeto já
consolidados, propõe demanda contra o filho (negatória de paternidade) com base
na ausência de vínculo consanguíneo (invoca do DNA). As decisões pela
improcedência da ação e manutenção do vínculo são constantes. Por todas:
A
"adoção à brasileira", ainda
que fundamentada na "piedade" e muito
embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer
fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado,
não consubstancia negócio
jurídico sujeito a distrato por
mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva, consistente
no término do relacionamento com a genitora. (REsp 1333360/SP, Rel. Ministro
LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 18/10/2016, DJe 07/12/2016)
b)Terceiro
pretende desfazer a paternidade socioafetiva (ação declaratória de nulidade do
registro) para fins de herança. Nesses casos, o filho biológico normalmente
pretende desconstituir a paternidade socioafetiva para herdar a totalidade dos
bens do falecido. As decisões do STJ constantes e reiteradas repelem essa
conduta (improcedência da ação). Por todas:
“A
paternidade biológica feita constar em registro civil a contar de livre
manifestação emanada do
próprio declarante, ainda que
negada por posterior exame de DNA, não
pode ser afastada em demanda proposta
exclusivamente por herdeiros,
mormente havendo provas dos fortes laços socioafetivos
entre o pai e a filha, não tendo o primeiro, mesmo
ciente do resultado do exame de pesquisa genética, portanto, ainda em vida, adotado qualquer medida
desconstitutiva de liame. (REsp 1131076/PR, Rel. Ministro Marco Buzzi, 4a
Turma, julgado em 06/10/2016, DJe 11/11/2016)”
O
problema ocorre então, nas situações em que o pai socioafetivo pretende
registrar o filho ou filha sem buscar tutela judicial. Busca, apenas, o
registro civil para reconhecer que é pai socioafetivo de determinada pessoa.
Pelo sistema do Código Penal, se aquele homem declarar que é pai biológico,
sabendo que não o é, cometerá crime:
“Art.
242 - Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem;
ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente
ao estado civil:
Pena
- reclusão, de dois a seis anos.
Parágrafo
único - Se o crime é praticado por motivo de reconhecida nobreza:
Pena
- detenção, de um a dois anos, podendo o juiz deixar de aplicar a pena”.
Em
termos práticos, o motivo de nobreza impera. Reconhece-se filho que
biologicamente é de outrem para dar um pai a quem não o tem. O afeto é fundamento,
em regra, da prática da “falsa” declaração. Não estamos tratando, por óbvio, de
situação em que há rapto de crianças em que os motivos, nada nobres, não só são
totalmente censuráveis como plena e severamente puníveis.
Contudo,
o Direito de Família, seguindo o preceito do melhor interesse da criança e a
desjudicialização das questões em que não há conflito, precisava dar à questão
solução mais adequada e célere. Foi assim que o Estado de Pernambuco, por meio
do Provimento 9 de 2013[4], de lavra do genial jurista, grande familiarista e
detentor de cultura geral invejável, Desembargador Jones Figueirêdo Alves, de
maneira pioneira, regulamentou a questão:
Artigo
2º - O interessado poderá reconhecer a paternidade socioafetiva de filho,
perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, mediante a
apresentação de documento de identificação com foto, certidão de nascimento do
filho, em original ou cópia.
§3º
- Constarão do termo, além dos dados do requerente, os dados da genitora e do
filho, devendo o Oficial colher a assinatura da genitora do filho a ser
reconhecido, caso o mesmo seja menor.
§4º
- Caso o filho a ser reconhecido seja maior, o reconhecimento dependerá da
anuência escrita do mesmo, perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas
Naturais”.
Note-se
que, pelo Provimento em questão, há um requisito básico: que a pessoa a ser
reconhecida como filho ou filha não tenha pai declarado na certidão de
nascimento.
Seguindo
idêntica (ou praticamente) orientação temos, inclusive com cópia total ou
parcial do texto, temos os provimentos:
21 de 2013 do Tribunal de Justiça do
Maranhão;[5]
15 de 2013 do Tribunal de Justiça do
Ceará;[6]
234 do Tribunal de Justiça do Amazonas;[7]
11 de 2014 do Tribunal de Justiça de Santa
Catarina;[8]
264
de 2016 do Tribunal de Justiça do Paraná[9];
149 de 2017 do Tribunal de Justiça do Mato
Grosso do Sul[10].
Algumas
peculiaridades devem ser ressaltadas. No Maranhão, por exemplo, só se admite o
reconhecimento extrajudicial se a pessoa for maior de 18 anos[11]. Já no
Tribunal de Sergipe, reconhece a possibilidade de reconhecimento de filho “por
escrito particular, inclusive codicilo, a impossibilidade de reconhecimento da
paternidade caso seja posterior ao falecimento do reconhecido a “desnecessidade
de concordância da genitora, bem como do reconhecido, se menor, caso seja o
reconhecimento por escritura pública, com base no que se infere da Lei nº
8.560/90, como também do Código Civil”.
Note-se
que as regulamentações feitas pelos tribunais indicam que há um consenso: o
reconhecimento extrajudicial é possível e há necessidade de regulamentação da
questão. As diferenças são poucas e as semelhanças profundas. Em nossa próxima
coluna seguiremos com a reflexão e a orientação do Conselho Nacional de Justiça.
[1]
https://www.direito.ufmg.br/revista/index.php/revista/article/view/1156
[2]
Recurso Extraordinário 898.060.
[3]
Para maior aprofundamento dos efeitos da decisão, entre a leitura possível e a
desejável, nossas duas colunas: “A multiparentalidade está admitida e... com
repercussão geral. Vitória ou derrota do afeto?”
(http://cartaforense.com.br/conteudo/colunas/a-multiparentalidade-esta-admitida-e-com-repercussao-geral-vitoria-ou-derrota-do-afeto/17172)
[4]
http://www.tjpe.jus.br/documents/10180/149195/PROVIMENTO+09-2013.doc+02.12.2013.pdf/a1415bce-2b42-4ca1-8529-9d4540dbc9db
[5]
http://gerenciador.tjma.jus.br/app/webroot/files/publicacao/404284/anexo_948144_online_html_19122013_1038.pdf
[6]
http://corregedoria.tjce.jus.br/wp-content/uploads/2013/12/Prov-n-15-2013-Reconhecimento-voluntario-de-paternidade-uniao-socioafetiva.pdf
[7]
file:///C:/Users/Sim%C3%A3o/Downloads/provimento_234_2014.pdf
[8]
http://anoreg.org.br/images/arquivos/Provimento_11.pdf.
[9]
http://www.irpen.org.br/imprime_noticia.php?not=3730
[10]
https://www.tjms.jus.br/sistemas/biblioteca/legislacao_comp.php?lei=31456&original=1
[11]
Art. 1° Autorizar o reconhecimento espontâneo da paternidade socioafetiva de
pessoas maiores de dezoito anos que já se acharem registradas sem paternidade
estabelecida, perante o oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais do
Estado do Maranhão.
José
Fernando Simão é advogado, diretor do conselho consultivo do IBDFAM e professor
da Universidade de São Paulo e da Escola Paulista de Direito.
http://www.conjur.com.br/2017-abr-30/processo-familiar-reconhecimento-extrajudicial-parentalidade-afetiva-parte
Nenhum comentário:
Postar um comentário