Os Aproveitadores, os
Entreguistas e a Receptação Internacional
José
Augusto Fontoura da Costa
Professor
de Direito Internacional da Faculdade de Direito da USP
Gilberto
Bercovici
Professor
de Direito Econômico da Faculdade de Direito da USP
Desde
a retirada da Petrobrás como operadora única do pré-sal (Lei nº 13.365, de 29
de novembro de 2016), os ativos da empresa estatal vêm sendo vendidos sem
licitação, como determina a legislação brasileira (Plano Nacional de
Desestatização e o artigo 29 da Lei nº 13.303, de 30 de junho de 2016). A
Petrobrás não precisa vender ativos para reduzir seu nível de endividamento. Ao
contrário, na medida em que vende ativos ela reduz sua capacidade de pagamento
da dívida no médio prazo e desestrutura sua cadeia produtiva, em prejuízo à
geração futura de caixa, além de assumir riscos empresariais desnecessários. O
plano da Petrobrás tem viés de curtíssimo prazo e ignora a essência de uma
empresa integrada de energia que usa a verticalização em cadeia para equilibrar
suas receitas, compensando a inevitável variação do preço do petróleo, de seus
derivados e da energia elétrica, característica essencial para minimizar os
riscos empresariais. Na medida em que a Petrobrás seja fatiada, o agente
privado tende a buscar o lucro máximo por negócio, majorando os custos ao
consumidor, o que restringe o crescimento do mercado interno.
Não
bastasse a ausência de licitação, a venda de ativos da Petrobrás vem ocorrendo
a preços bem abaixo dos preços de mercado, como é notório exemplo a venda do
campo de Carcará para a empresa estatal norueguesa Statoil por cerca de US$ 2,5
bilhões, quando valeria várias vezes mais.
Deve
ficar claro, no entanto, que aproveitadores que adquirem o patrimônio nacional
a preço vil e conscientes da anormalidade da situação política e da patente
ilegitimidade do governo podem ter que devolver o que compraram sem qualquer
direito a indenização.
Imagine-se
na singela situação de, em uma esquina da Praça da Sé, adquirir um Rolex novo e
legítimo pela quantia de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Obviamente o preço não
é compatível com a normalidade do mercado e a compra não se deu de um vendedor
autorizado.
O
direito penal dá nome e sobrenome a esta operação: receptação culposa. In
verbis: “adquirir ou receber coisa que, por sua natureza ou pela desproporção
entre o valor e o preço, ou pela condição de quem a oferece, deve presumir-se
obtida por meio criminoso” (Código Penal, Art. 180, § 3º). O direito civil
qualifica a posse como de má fé. Alguns dos mais celebrados princípios
jurídicos também são desrespeitados, em particular o de que nemo auditur
propriam turpitudinem allegans, ou seja, o de que ninguém pode se aproveitar de
sua própria torpeza.
Do
ponto de vista moral e ético, bem como dos fundamentos de justiça que orientam
o direito, tal circunstância não difere daquela protagonizada por empresas
estrangeiras que vêm adquirindo, depois do golpe de 2016, recursos do povo
brasileiro. Os preços pagos são incompatíveis com o mercado e a situação
institucional e política não é exatamente daquelas que inspiram confiança,
muito menos certeza.
O
que está ocorrendo com a Petrobrás e outros ativos estatais estratégicos
(fala-se até na privatização dos Correios, de satélites, concessões de lavra
mineral em terras indígenas ou de fronteira, etc.) pode, portanto, ser
equiparado ao crime de receptação. Afinal, um bem público foi subtraído do
patrimônio público de forma ilegal, sem licitação, e vendido a preço vil, por
um preço que é vinte por cento do valor de mercado. A empresa compradora
obviamente sabe que está adquirindo um ativo valiosíssimo por vinte por cento
do preço e sem concorrência pública. Ou seja, não há nenhum terceiro de boa-fé
envolvido neste tipo de negócio.
Os
denominados “investidores estrangeiros” pelos entreguistas mais rasteiros e
aclamados por inúmeros sabujos midiáticos como dotados de poderes de gestão que
jamais reles brasileiros ou o Poder Público terão não podem ser tidos como ignorantes
ou inocentes. Não é possível que tão tarimbados e capacitados negociantes
tenham comprado a Torre Eiffel de um golpista qualquer. São o que são:
aproveitadores, abutres, hienas.
Do
ponto de vista jurídico é possível, claro, construir teses e apontar bases
legais para uma eventual proteção desses capitais. Não são defesas robustas,
mas quem já não viu a loteria da distribuição fazer do quadrado, redondo. Da
perspectiva moral salta aos olhos a óbvia repulsa pelas atitudes que, em busca
de lucro fácil, fingem não ver os mais evidentes vestígios de fraude. Por fim,
sempre há alarde em torno da possível perda de reputação do país e do futuro
possível temor de se investir no Brasil. No entanto, uma vez expostas as
circunstâncias da retomada do patrimônio nacional fica delineada a clara
repulsa pelo oportunismo deslavado, o que é perfeitamente compatível com as
boas vindas e a proteção ao investimento estrangeiro que ingressa e se emprega
honestamente. Não é um bom recado para os que entram em nossa casa?
Há
regras e argumentos mais do que suficientes para apoiar, com clareza, a tese de
que tais “investimentos” não são mais do que aventuras sabidamente à margem da
ética e do Direito. Há, para tanto, apoio tanto no ordenamento brasileiro,
quanto nos padrões internacionais de proteção de investimentos. A rigor, as
posições jurídicas não podem ser transferidas nessas condições, as operações
não são válidas, nem podem ser eficientes.
Por
conseguinte, a nacionalização de tais ativos não pode ser equiparada a qualquer
forma de desapropriação, expropriação ou confisco. Não se pode tirar algo de
quem não é possuidor, dono ou titular. A exploração de recursos nacionais e
outros benefícios abocanhados ao arrepio da lei está longe de ter fundamento
jurídico. É de natureza precária e ilegítima. É também injusta.
Consequentemente,
não há qualquer dever do Estado de indenizar de maneira pronta e eficaz, a
partir do valor de mercado anterior ao anúncio da desapropriação. Há, se tanto,
a pretensão a receber os valores escriturais efetivamente pagos, de modo a
evitar que o Estado se beneficie de vantagens ilegítimas. De tais montantes,
por óbvio, é perfeitamente razoável abater quaisquer lucros que o possuidor
ilegítimo tenha auferido.
É
importante lembrar, por fim, que, como na receptação culposa do exemplo, as
circunstâncias gritam alto. Tão alto que o pagamento de preço vil é
indissociável de assumir o risco da perda. A História nos mostra que quem
compra bens públicos estratégicos corre sempre o risco de uma renacionalização.
Quem compra bens públicos estratégicos a preços deliberadamente defasados, pode
ter a certeza de que a renacionalização daqueles ativos virá, bem como a
responsabilização tanto dos aproveitadores como dos entreguistas e seus
cúmplices.
https://www.conversaafiada.com.br/economia/nao-compre-nada-do-parente-vai-ser-tudo-renacionalizado
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