“Naquele
tempo não tinha corrupção…”. Foi o que ouvi de um senhor, com uns 50 anos, em
uma conversa informal, enquanto aguardava ser atendido em uma casa lotérica.
Ele
faz parte da geração que nasceu na época do golpe de 1964 e viveu a juventude
nas décadas de 1970 e 1980. Para ele, na ditadura não havia corrupção, como não
havia bandidos pelas ruas, se amava a pátria e os professores eram mais
respeitados. Em um momento, resumiu: “não era essa baderna”. Essas memórias,
construídas a posteriori e repletas de impressões tão pessoais quanto parciais,
deixou meu interlocutor nostálgico e o fez tirar conclusões apocalípticas sobre
o tempo presente. “Na política só tem ladrão”, “Precisa começar tudo do zero”,
afirmou.
Essas
percepções não são somente individuais. Elas se replicam em grupos, redes
sociais e habitam um repertório comum entre as direitas. Não raramente se
manifestam também em políticos que se apresentam como inovadores e bastiões da
moralidade. Ou entre eleitores céticos, que simplesmente anulam o voto, pois
creem que todo o sistema político está corrompido. Os recordes de abstenção e
voto nulo nas últimas eleições municipais, bem como o crescimento eleitoral das
direitas, fenômenos que são, ao mesmo tempo, locais e mundiais, parecem atestar
que meu companheiro ocasional de fila de loteria não está sozinho.
A
escuta do “naquele tempo não tinha corrupção…” me fez escrever este texto. Sou
historiador e, em virtude de minha tese de doutoramento, pesquiso a forma como
a ditadura disse combater a corrupção. Estou convencido de que esse é apenas
mais um dos mitos que se construiu sobre aquele período. Meus colegas
historiadores talvez me advirtam que a palavra “mito” teve muitos sentidos ao
longo da história e que ainda é polêmica. Raoul Girardet, historiador francês
recentemente falecido e autor do livro “Mitos e mitologias políticas” admitiu
diversos significados para os mitos. Entre eles, talvez o mais conhecido seja o
de que o mito pode ser um “falseamento da realidade”. Em duas palavras: uma
mentira. É justamente nesse sentido que afirmo que a ideia de que não houve
corrupção na ditadura é um mito. Porque é falsa e não se comprova diante da
pesquisa histórica. Pelo contrário, as evidências apontam o fato de que, nos
anos de autoritarismo, o problema apenas piorou.
1-
Muitos não se lembram de corrupção na ditadura porque havia censura. – A
censura de imprensa, estabelecida no país desde o golpe, não deixava chegar ao
grande público as principais denúncias de corrupção. A menos que isso fosse de
interesse do regime. Ainda em 1964, foram vários os acusados de corrupção. Anos
mais tarde, a Comissão Geral de Investigações (CGI), órgão criado após o AI-5
sob o pretexto de combater a corrupção, estabeleceu como norma plantar notas
nos jornais sobre as principais denúncias. Era parte da suposta “obra
moralizadora” da ditadura, que gerou, estima-se, cerca de 3000 processos com
mais de 10000 envolvidos. Após feita a investigação, a CGI poderia sugerir ao
presidente da República o confisco de bens dos acusados. Durante quase vinte
anos, a ação conjunta do controle dos grandes meios de comunicação e da
propaganda pela “moralização dos costumes políticos” gerou, em muitos, a
sensação de que não havia corrupção.
2-
As ações de combate à corrupção na ditadura tinham cunho arbitrário e de
perseguição política. – Ao contrário da transparência e do controle externo dos
poderes, princípios atualmente reconhecidos como basilares no combate à
corrupção, os processos da CGI, que mencionei anteriormente, eram completamente
secretos. Quando acionados, as vítimas da acusação tinham apenas oito dias para
elaborar uma defesa com a justificativa de seus bens, com total desconhecimento
da acusação. Os depoimentos ocorriam geralmente em quartéis, enquanto os
suspeitos eram expostos na grande imprensa. Os principais alvos eram políticos
do regime anterior e a intenção era a de abalar destruir suas reputações.
Dúvidas disso? O primeiro investigado da CGI foi João Goulart, embora nada
tenha sido comprovado sobre ele. Juscelino Kubitschek, outro ex-presidente,
teve um dos mais longos processos da comissão.
3
– Os casos de corrupção que envolviam militares e aliados da ditadura tinham
tratamento diferenciado. – As suspeitas de corrupção que envolviam militares
não implicavam o risco da perda de bens, como ocorria com os investigados pela
CGI. No lugar disso, os casos eram encaminhados a comissões de investigação
sumária que existiam nas três armas. Sobre esses documentos, nada sabemos até
hoje. Nem mesmo se ainda existem. Já as denúncias de corrupção de aliados civis
do regime, embora existissem em razoável número, raramente eram enfrentadas
pela cúpula do Planalto, como sugere Elio Gaspari no livro A ditadura acabada.
Outro especialista no assunto, o historiador Pedro Campos, fez um estudo
aprofundado sobre as transações de empreiteiras com a ditadura, demonstrando
que as relações ilícitas entre o Estado e esses empresários não nasceram na
Nova República, como parecem sugerir algumas das delações de empreiteiros que
se tornaram célebres recentemente.
4
– Concepção limitada do problema da corrupção – Nos relatórios e nas atas de
reuniões da CGI é facilmente perceptível a ideia de que corrupção era roubo e
que só havia ladrões na política pois não havia punição. Achavam que a simples
existência e o medo da punição inibiriam práticas corruptas, o que chamavam de
“ação catalítica”, em referência ao efeito de aceleração, catálise, que algumas
substâncias químicas produzem em reações. No entanto, o combate à corrupção
produzido pelos militares no poder, como admitiu o próprio ex-presidente
Ernesto Geisel, foi inócuo. Isso ocorreu porque a ditadura perpetuou uma noção
simplória de corrupção. Cientistas sociais de diversas vertentes teóricas
apontam para leituras bem mais complexas sobre o tema. Leonardo Avritzer,
cientista político da UFMG, por exemplo, refuta a ideia de que a corrupção seja
algo cultural ou inerente aos brasileiros, mas, antes, um fenômeno relacionado
à incapacidade das instituições de coibi-la, em uma “inter-relação entre
política e cultura”. Nesse sentido, combater a corrupção passaria por entender
melhor essa relação e criar mecanismos institucionais para evitá-la.
Certamente
já ouvimos o famoso dito de que uma mentira contada muitas vezes pode ser
aceita como verdade. Hoje se fala em pós-verdade, expressão oriunda da guerra
de versões e informações falsas, ou extremamente parciais, que, por exemplo,
são compartilhadas nas redes sociais. Algo de que se utilizam, inclusive,
figuras públicas que veem nessa característica do século XXI uma porta de
entrada para oportunismo e a realização de seus objetivos políticos. Talvez as
redes sociais tenham contribuído para uma espécie de primazia da opinião. (como
esta, que arrisquei agora). Esse pequeno artigo mesmo, quantos poderão
desqualificá-lo sem sequer debater os aspectos que apresentei?
Todos,
inclusive minha companhia de fila, têm o direito de expressar seus sentimentos
e impressões políticas. Vivemos, afinal, em uma democracia. Mas quando os juízos
que emitimos sobre política e história afastam-se muito dos fatos, o debate cai
de nível e nos tornamos vulneráveis a aventureiros que se apresentam como
salvadores da pátria e dos tempos. Uma avaliação mais acurada faria perceber
que fizemos avanços importantes no combate à corrupção no Brasil nos últimos
anos, tais como a criação da Controladoria Geral da União (CGU) e a atuação da
Polícia Federal na inibição de novos crimes. O risco, parece, é outro: o da
aposta insistente em medidas autoritárias para extirpar a corrupção. A pregação
moralista e a cegueira diante da história da ditadura apresentam a
contrapartida da total descrença na política e, consequentemente, na
democracia. Se essa perspectiva se mantiver, haverá o perigo de sucumbirmos a
novos anos de chumbo.
Diego Knack é
historiador e professor de História.
http://www.institutojoaogoulart.org.br/noticia.php?id=18770&back=1
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