O
depoimento prestado pelo ex-presidente Lula ao juiz Sérgio Moro trouxe à tona
um debate propositalmente adormecido acerca da relação entre a mídia e o
exercício do poder punitivo estatal. Lula lembrou que Moro defendeu em artigo doutrinário
sobre a operação “mãos limpas” (mani pulite) que a imprensa deve ser
politicamente instrumentalizada pela justiça para atingir seus objetivos
persecutórios, sem o qual seria impossível combater a criminalidade organizada.
A
performance dos atores jurídicos envolvidos na operação Lava Jato, o clímax e
anticlímax de um enredo novelesco, os sobressaltos e as reviravoltas
transmitidos em tempo real pelas tevês a reter a atenção de um público ávido
por justiça a qualquer preço, ou algo assim, indica que a teoria defendida pelo
magistrado pode ter encontrado alguma correspondência na prática. É preciso, no
entanto, investigar o impacto dessa relação em um sistema que sustenta proteger
direitos e garantias fundamentais, além da natureza, extensão e morfologia
dessa relação para se saber quem efetivamente é meio e quem é comando.
Na
sociedade de massa e da informação convém ter presente que a mídia atua como
árbitro do acesso à existência social e política, validando determinadas
posições e desqualificando outras, em larga medida fornecendo “a imagem do
mundo ao homem comum” (BERTRAND).
Organizada
em conglomerados empresariais (e familiares no caso brasileiro), seu objetivo
central é a manutenção da estrutura dos processos de acumulação capitalista por
meio da divisão social do trabalho. Logo, a mídia não se apresenta como um
elemento imparcial nesse processo de apuração de condutas e imputações, como
deveria ser o órgão estatal de solução de conflitos, já que apoiar ou rechaçar
determinados agentes políticos obedece a uma lógica diversa da que deveria
nortear a ação estatal fundada na noção do bem comum.
Por
mais que se queira, instrumentalizar essa poderosa máquina construtora do
aparato simbólico para atingir determinadas finalidades não parece ser algo
trivial. Atiçar a fera é bulir com o imponderável, pois o único comando que o
mastodonte obedece é o que atende ao escopo de sua existência, ou seja, a
manutenção do status quo e do ecossistema que alimenta o seu poder.
Moro
que de bobo não tem nada já se deu conta disso, prisioneiro que de bom grado se
tornou desse enredo. Se pretendia tosquiar com a doutrina colada dos italianos
da mani pulite, certo é que voltou tosquiado pela força dos fatos, jamais se
opondo aos termos do acordo.
Em
um mundo de imagens e de reality show, muitas vezes a fama e o reconhecimento
social são mais importantes que a riqueza material. E no fim das contas, posar
de herói é sempre melhor do que de vilão, mesmo que a contrapartida envolva o
despojar-se do munus de julgador e a auto-conversão em operador autômato de
discursos preestabelecidos segundo interesses hegemônicos.
Entabula-se,
então, uma relação real e distante da idealizada inicialmente entre juiz e
mídia. Esta lhe concede o efeito celebridade e uma popularidade efêmera. Aquele
o ajuste de contas com os desviantes, os inimigos públicos selecionados pelos
meios de comunicação, tudo sob a chancela do poder estatal que deveria ser
imparcial e tributário do devido processo legal, o qual, assim como os demais
direitos e garantias fundamentais, serve apenas como referência retórica.
No
fundo, trata-se de uma privatização ad hoc da função jurisdicional. Os
julgamentos não são apenas na, mas, sobretudo pela mídia. O juiz que parece
todo poderoso, na verdade, é fraco e impotente, teleguiado por interesses que
pouco tem a ver com as coisas da justiça assentada em um sistema de normas
escalonadas preestabelecidas.
Ao
final de seu depoimento, Lula disse que se Moro não o condenasse seria devorado
por aqueles que hoje o apoiam. Ao fazê-lo, o ex-presidente expôs as vísceras de
um sistema carcomido que nada tem a ver com a Justiça, exceto o mise en scène.
De toda aquela pantomima, o que se viu ao final foi um juiz guarnecido por
tropas, holofotes e microfones, mas acuado pelos valores elementares da
civilização.
Yuri
Carajelescov é mestre e doutor em Direito pela USP.
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/295332/Jurista-diz-que-Moro-foi-devorado-pela-m%C3%ADdia.htm
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