sexta-feira, 19 de maio de 2017

JUÍZES AINDA SE FIAM NA PALAVRA ISOLADA DE POLICIAIS E TESTEMUNHAS. Por Luís Francisco Carvalho Filho

A médica Virgínia Helena Soares de Souza foi presa com estardalhaço em fevereiro de 2013, acusada de provocar o óbito de sete pacientes internados na UTI do Hospital Evangélico de Curitiba. A "Doutora Morte" volta ao noticiário, com menos destaque, é verdade, por ter sido inocentada: em alguns casos, absolvição sumária, em outros o juiz não encontrou indícios suficientes para submetê-la a júri popular.

Há danos irreparáveis. A reputação destruída, a carreira terminada, o confisco do tempo (dentro e fora da prisão), a angústia familiar, o estigma, o escândalo: "Vive quem eu quero, quem eu não quero eu deixo morrer", era o que dela se dizia com estrépito ou à boca pequena.

Poucos meses depois de sua prisão, a revista "Piauí" publicaria reportagem de Daniela Pinheiro oferecendo um contraponto sóbrio e atento dos personagens e do processo. Virgínia foi defendida, desconstruiu "provas", recuperou a inocência

Outro médico, Joaquim Ribeiro Filho, em mais um caso rumoroso, preso pela Polícia Federal em 2008, no Rio de Janeiro, acusado de fraudulentamente furar a fila única do transplante de fígado, também foi absolvido. Nove anos depois.

Dirão que afinal a Justiça se fez, que os erros judiciários não se consumaram, apesar da demora, e que os dois episódios mostram traços de eficiência do sistema judicial. Não é bem assim.

A maioria dos réus não tem meios de reagir ao rolo compressor da acusação criminal. A ausência de defesa e a invisibilidade geram material orgânico propício à proliferação de condenações erradas.

Além de identificar casos concretos, o desafio da versão brasileira do "Innocence Project" (organização fundada nos EUA há 25 anos e com entidades afiliadas se espalhando por diversos países), presidida pela advogada Dora Cavalcanti, é procurar estratégias de prevenção.

Pesquisas e estudos são essenciais para a compreensão da Justiça Criminal e para formulação de propostas de reforma.

A polícia é despreparada. Despreza evidências e não preserva cena de crime. Só excepcionalmente o conhecimento científico está disponível para investigadores e investigados. Falta investimento. Corrupção de princípios, autoritarismo, preconceito. As defesas são formais, ineficazes. A lei está defasada. Formalidades cautelares foram sendo flexibilizadas e o reconhecimento de suspeitos, por exemplo, é invariavelmente frágil, inseguro.

Em uma era marcada pela sofisticação tecnológica, juízes ainda se fiam na palavra isolada de policiais. A verdade da testemunha, ocular ou circunstancial, ainda é ponto determinante das decisões, ainda que a testemunha possa mentir ou se enganar, ver o que não viu ou acreditar que viu aquilo que gostaria de ter visto.

O erro judiciário faz parte das regras do jogo processual. Parece inexorável. Aqui e no mundo inteiro: excessos, ineficiência, clamor, ódio político ou de classe, racismo. Por isso, a obrigação de indenizá-lo está presente nas declarações de direitos humanos, em tratados internacionais e nas constituições dos países.

Ainda se vê a notícia da inocência de alguém condenado como um fait-divers, como algo extraordinário ou pitoresco. Mas é um sintoma grave e perturbador de fraqueza institucional.

*Texto originalmente publicado na edição de 6/5 do jornal Folha de S.Paulo

http://www.conjur.com.br/2017-mai-06/luis-francisco-juizes-ainda-fiam-policiais-testemunhas










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