Antes
de iniciar a abordagem deste tema, admito polêmico, é preciso um exercício de
afastamento de nossas convicções pessoais sobre moralidade e religião, fincando
nossa análise em uma direção estritamente jurídica, sob as luzes,
principalmente, da Constituição Federal.
Nessa
quadra, inegavelmente, estamos vivenciando uma revolução, não de armas, mas de
conceitos.
Proposições
antigas cedem espaço a uma nova realidade, agora alicerçada no direito
fundamental à diferença.
Peço
licença para citar um trecho de voto do Ministro do Supremo Tribunal Federal,
Aliomar Baleeiro, proferido no ano de 1968: "Mas o conceito de
"obsceno", "imoral", "contrário aos bons
costumes" é condicionado ao local e à época. Inúmeras atitudes aceitas no
passado são repudiadas hoje, do mesmo modo que aceitamos sem pestanejar
procedimentos repugnantes às gerações anteriores. A polícia do rio há 30 ou 40
anos não permitia que um rapaz se apresentasse de busto nu nas praias e parece
que só mudou de critério quando o ex-rei Eduardo VIII, então príncipe de Gales,
assim se exibiu com o irmão em Copacabana. O chamado bikini (ou duas peças)
seria inconcebível em qualquer praia do mundo ocidental há 30 anos. Negro de
braço dado com branca em público ou propósito de casamento entre ambos,
constítuia crime e atentado aos bons costumes em vários estados
norte-americanos do sul, até tempo bem próximo do atual.”[1]
De
se anotar que nesta fase de transição entre realidades diferentes, não se
consegue identificar o exato momento da ruptura, as alterações são contínuas,
de modo que haverá um tempo em que ambas conviverão, fazendo aflorar, em maior
escala no início da transição e em menor escala no seu final, momentos de
conflito entre ambas.
Avançando,
pois, na análise jurídica do tema, afasto de início a ideia de que haveria uma
lacuna no sistema capaz de não reconhecer os direitos perseguidos legitimamente
pelos transexuais.
A
Constituição Federal fornece, com sobras, o suporte necessário para amparar a
tese.
No
seu preâmbulo, há afirmação expressa de que o Brasil é um Estado Democrático de
Direito, tendo como um valor supremo a sociedade fraterna, pluralista e sem
preconceitos.
Ainda,
a dignidade da pessoa humana é fundamento da República, conforme artigo 1º, da
Constituição Federal.[2]
Mais
à frente, em seu artigo 3º, inciso IV, a Constituição Federal estabelece como
objetivo fundamental da República promover o bem de todos, sem preconceitos,
dentre outros, de sexo, terminando com a cláusula aberta “quaisquer outras
formas de discriminação”.[3]
De
se lembrar, também, que a Constituição Federal é, na sua essência, um diploma
normativo inclusivo, donde não se deve admitir qualquer interpretação do seu
texto capaz de reconhecer e admitir alguma forma de discriminação, protegendo o
cidadão de sofrimentos evitáveis na sua esfera social de relacionamentos
cotidianos.
Importante
perceber que, o princípio da dignidade da pessoa humana, erigido, como vimos,
em pilar do eixo central de garantias da Constituição Federal, comporta uma
dimensão existencial capaz de permitir que os cidadãos busquem a própria
felicidade, fazendo livremente as escolhas que lhe pareçam mais acertadas.
Aliás,
a evolução da doutrina dos direitos humanos caminha para reconhecer sujeitos
específicos de direitos, dando ao indivíduo uma visão particularizada, o que
importa, como consequência, na hipótese de ocorrência de alguma violação dos
seus direitos, em uma resposta individual, própria para uma determinada
categoria tida como vulnerável no meio social, as chamadas minorias.
Então,
cabe indagar: Quem é o transexual? Quem é essa pessoa que está a merecer essa
especial proteção do Estado enquanto integrante de uma minoria, exigindo uma
visão particularizada no meio social em que vive?
O
transexual é o individuo que nasceu homem ou mulher, segundo os critérios então
vigentes para a definição do sexo, porém cresceu e se desenvolveu no seu íntimo
como um indivíduo do sexo oposto, com hábitos, reações e aspecto físico diverso
do seu sexo morfológico.
Há,
no individuo transexual, e isso se revela extremamente importante, um repudio
ao sexo morfológico. Inclusive, o transexual não se enxerga como uma pessoa
homossexual.
Ele
estranha o próprio corpo que a natureza lhe deu ao nascer, gerando uma perigosa
frustação, um desconforto que conduz à automutilação e ao autoextermínio.
A
ambiguidade sexual decorrente do fenômeno da transexualidade é meramente
biológica, porque no sentido psicossocial, o transexual tem a convicção de
pertencer ao sexo oposto, com sentimentos, percepções, índole e conduta assim
condizentes, em contraposição à sua genitália que avilta o seu espírito.
Avançando
na ideia de reconhecimento de direitos ao transexual, em que pese tratar-se de
formalidade administrativa que não interfere no direito constitucional de
escolha do seu projeto de vida, o registro público torna-se importante ante a
sua natureza jurídica.
A
Lei de Registros Públicos (Lei 6015/1973), cuja finalidade é conferir
autenticidade, segurança e eficácia aos atos jurídicos da vida civil, adotou
como critério distintivo dos sexos a conformação da genitália, ou seja, pênis
para o sexo masculino e vagina para o sexo feminino.
Ocorre,
porém, que, nos dias atuais, o critério do sexo aparente estabelecido pela Lei
de Registro Públicos não é suficiente para a definição do gênero, impondo-se a
consideração das condições psicológicas e sociais do indivíduo, definidoras da
sua real sexualidade.
O
transtorno de identidade sexual é doença catalogada na 10ª Classificação
Internacional de Doenças da Organização Mundial de Saúde (CID 10), vindo a
cirurgia de redesignação de sexo como solução terapêutica para esses casos.
Aqui,
cabe abrir um parêntese para afirmar que, em que pese a catalogação da OMS
servir como fundamento para a superação do óbice previsto no Artigo 13, do
Código Civil, que somente autoriza a disposição de parte do próprio corpo por
exigência médica, ouso dizer que, um, não estamos diante de hipótese
patológica, dois, o procedimento médico não é ato essencial para a definição do
gênero.
A
identidade sexual integra, ao meu sentir, os direitos da personalidade.
Vale,
aqui, lembrar que o Brasil é signatário da Carta de Princípios de Yogyakarta (2006),
documento universal que estabelece o claro afastamento de qualquer preconceito
de gênero ou orientação sexual.
Afirmar
a dignidade humana significa para cada um manifestar sua verdadeira identidade,
o que inclui o reconhecimento da sua real identidade sexual, em respeito à
pessoa humana como valor absoluto.
Neste
diapasão, é absolutamente irrelevante para a definição do direito de alterar o
gênero e o prenome que constam do registro civil a realização do procedimento
cirúrgico de redesignação sexual.
O
transexual já sente, em seu íntimo, pertencer ao sexo oposto, de modo que a
realização ou não do procedimento de redesignação sexual se mostra irrelevante
para a definição do gênero e, por consequência, do direito de alteração do
prenome.
O
Poder Judiciário avançou bastante no tema, mesmo que o caminho ainda seja longo
para a integral concretude dos direitos dos transexuais.
Importante
lembrar que, para os casos de indivíduos transexuais que realizaram a cirurgia
de redesignação, a jurisprudência aceita com certa tranquilidade, quiçá de
forma pacífica, a alteração do gênero e do prenome, inclusive com dois
precedentes no Superior Tribunal de Justiça.[4]
Em
ambos os casos, o fundamento usado para permitir as alterações do registro
civil, na essência, foi a desconformidade entre o sexo biológico imposto ao
nascer (critério legal) e o psicológico que vive no íntimo do indivíduo.
Não
há, adotando-se o fundamento utilizado pelo Superior Tribunal de Justiça, razão
jurídica diversa que possa obstar o mesmo direito para os indivíduos
transexuais não operados, pois estes também se sentem no seu íntimo como
pertencentes ao sexo oposto.
A
cirurgia de redesignação, na minha visão, é mera etapa complementar de todo um
procedimento que inclui também, por exemplo, outras espécies de procedimentos
cirúrgicos e a terapia hormonal.
Não
é demais lembrar vários casos de pessoas que não podem se submeter ao ato
cirúrgico ou que são temerosas em relação a qualquer espécie de intervenção
médica.
Além
disso, some-se que a redesignação do sexo feminino para o masculino constitui
procedimento não comum e sujeito a maiores riscos do que a redesignação do sexo
masculino para o feminino, além do que a eficácia do membro construído ainda é
duvidosa no primeiro caso.
Lembro,
por oportuno, que no caso da redesignação do sexo feminino para o masculino até
mesmo o Instituto Nacional do Seguro Social – INSS aceita a realização do
procedimento.
Havendo,
assim, e dessa exigência não há como se afastar, laudo técnico que ateste a condição
de transexual (convicção íntima de pertencer ao sexo oposto), tal prova já é
suficiente para permitir a alteração do gênero e do prenome, independentemente
do ato cirúrgico.
Mais
recentemente, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de decisão monocrática,
amparada na jurisprudência dominante da Corte, homologou sentença estrangeira
que havia reconhecido o direito à alteração de gênero e prenome de pessoa
transexual.[5][6]
No
Tribunal de Justiça de São Paulo, na Apelação de Relatoria do Desembargador
Vito Guglielmi e na Apelação da Relatoria do Desembargador Beretta da Silveira,
o Tribunal admitiu, além do prenome, a alteração do gênero.[7]
Consta
da primeira Apelação a observação no sentido de que a alteração deverá ser
averbada no registro civil, informando que se deu por decisão judicial. Na
visão da Sexta Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo,
de um lado assegura-se o direito de terceiros, pois não há rompimento com a
vida civil anterior e, de outro, preserva-se a dignidade e a privacidade do
interessado, pois a informação não constará dos documentos de uso diário,
constando, segundo a decisão, apenas da certidão de nascimento.
Sobre
esse ponto, penso que melhor se revela o decidido pela Terceira Câmara de
Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo, no sentido de que a
informação seja anotada no livro registral, ao exclusivo conhecimento do
interessado ou constando apenas das certidões de inteiro teor, somente
expedidas com autorização judicial, nos moldes do que já acontece com os casos
de adoção.
A
vingar a tese de que se pode admitir nas certidões do registro público qualquer
referência, ainda que genérica, sobre a alteração do gênero e do prenome,
estar-se-ia perpetuando o constrangimento, em clara afronta ao princípio
constitucional da dignidade da pessoa humana.
Nessa
mesma linha, em sede Recurso Especial, com origem em Acórdão do Tribunal de
Justiça do Rio Grande do Sul, da Relatoria do Ministro Marco Buzzi se decidiu
nesse sentido.[8]
Vale
lembrar, ainda, que a matéria está na pauta do Supremo Tribunal Federal, no
objeto da ADI 4275, ajuizada pela Procuradoria Geral da República.
Por
fim, cabe dizer que, sobre esse tema, estamos atrasados, ao menos no aspecto
legislativo.
É
que, enquanto em países como a Alemanha há legislação que permite aos pais,
quando do nascimento do filho, adotar o sexo como indefinido e a Argentina que
editou a Lei de Identidade de Gênero, no Brasil não há qualquer perspectiva
nesse sentido.
O
Brasil ainda sedimenta seu caminho, em passos lentos, com o reconhecimento por
órgãos estatais do direito ao uso do Nome Social, ou seja, aquele pelo qual o
transexual pretende ver-se chamado no meio social em que vive, sem alteração no
assento de nascimento.
Algumas
entidades de caráter privado, caso de escolas e universidades, avançam ao criar
banheiros sem identificação de gênero ou extinguindo comemorações ligadas ao
gênero, substituindo, por exemplo, o dia das mães e dos pais pela festa da
família.
Não
há mais espaço para meia dignidade. Ou aplicamos a Constituição Federal em sua
inteireza ou rasgamos o seu Texto. Não se pode admitir mais que o cidadão
transexual seja colocado à margem da sociedade.
O
Poder Judiciário, atento à evolução do fato social, tem cumprido o seu papel.
Cabe agora ao legislador, representante dessa sociedade plural, fazê-lo.
[1]
Supremo Tribunal Federal, Relator Ministro Aliomar Baleeiro, Recurso em Mandado
de Segurança 18.534, 2ª TURMA, JULGADO EM 01 DE OUTUBRO DE 1968.
[2]
Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos
Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático
de Direito e tem como fundamentos: I - a soberania; II - a cidadania; III - a
dignidade da pessoa humana; IV - os valores sociais do trabalho e da livre
iniciativa; V - o pluralismo político.
[3]
Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: I
- construir uma sociedade livre, justa e solidária; II - garantir o
desenvolvimento nacional; III - erradicar a pobreza e a marginalização e
reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem
preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de
discriminação.
[4]
Superior Tribunal de Justiça, Recursos Especiais 1.008.398/SP, Relatora
Ministra Nancy Andrighi, e 737.993/MG, Relator Ministro João Otávio de Noronha.
[5]
SENTENÇA ESTRANGEIRA Nº 13.233 - ES (2015/0020486-7)
[6]
SENTENÇA ESTRANGEIRA Nº 11.942 - IT (2014/0116950-3)
[7]
Tribunal de Justiça de São Paulo, Apelação Cível 0008359-56.2004.8.26.0505, 6ª
Câmara de Direito de Privado, Relator Vito Guglielmi. Tribunal de Justiça de
São Paulo, Apelação Cível 0028083-77.2009.8.26.0562, 3ª Câmara de Direito
Privado, Relator Beretta da Silveira.
[8]
RECURSO ESPECIAL Nº 1.043.004 - RS (2008/0064846-9).
Frederico dos Santos
Messias é juiz de Direito, titular da 4ª Vara Cível da Comarca de Santos.
Revista Consultor
Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-mai-06/frederico-messias-constituicao-veta-marginalizacao-transexuais
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