Se
a história das penas é uma história dos horrores, a história dos julgamentos é
uma história de erros; e não só de erros, mas também de sofrimentos e abusos,
todas as vezes que no processo se fez uso de medidas instrutórias diretamente
aflitivas, da tortura até o moderno abuso da prisão preventiva. (Luigi
Ferrajoli)
Em
síntese existem duas modalidades de prisão: i) a prisão-pena que decorre de
condenação definitiva (transitada em julgado) e ii) a prisão provisória: prisão
cautelar de natureza processual. A prisão preventiva, a prisão em flagrante e a
prisão temporária são espécies de prisão provisória de natureza cautelar e
processual.
Como
se trata de prisão sem pena e, portanto, sem que tenha sido o agente condenado
por sentença definitiva, a prisão provisória, seja ela preventiva ou de
qualquer outra modalidade, deve sempre ser evitada e, tão somente, decretada ou
mantida em casos de extrema necessidade posto que, como já dito, ainda não foi
o acusado condenado em definitivo. Não se pode negar que enquanto houver
recurso à sentença poderá ser modificada. Inúmeros são os casos de réus
condenados em primeira instância serem absolvidos em segunda instância ou mesmo
pelos tribunais superiores. Por tanto, a conservação da liberdade deveria e
deve prevalecer até a transitada em julgado.
Não
se pode olvidar que o duplo grau de jurisdição que possibilita e assegura o
reexame da matéria e das decisões por um órgão ou um tribunal superior
constitui um princípio e uma garantia processual mínima prevista, inclusive, na
Convenção Americana de Direitos Humanos.
Gostem
ou não, está assentado que no sistema processual pátrio o status libertaris
(estado de liberdade) é a regra e a prisão provisória a exceção. Nunca é demais
lembrar que a Constituição da República (CR) abriga — ainda que mitigado pelo
Supremo Tribunal Federal — o princípio da presunção de inocência segundo o qual
“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal
condenatória” (artigo 5º, LVII).
Em
seu instigante e indispensável “Guia compacto do processo penal conforme a
teoria dos jogos”, Alexandre Morais da Rosa a partir da teoria dos jogos
assevera que “as medidas cautelares podem se configurar como mecanismos de
pressão cooperativa e/ou tática de aniquilamento (simbólico e real, dadas as
condições em que são executadas). A mais violenta é a prisão cautelar. A prisão
do indiciado/acusado é modalidade de guerra como ‘tática de aniquilação’, uma
vez que os movimentos da defesa vinculados à soltura”. [1]
É
óbvio -— Nelson Rodrigues diria óbvio ululante — que a prisão provisória e,
claro, a preventiva, tem como uma das características a provisoriedade. Sendo
assim, por certo, não pode a prisão cautelar perdurar por tempo indeterminado
ou ad infinitum. Provisório é interino, temporário, passageiro, transitório, o
contrário de definitivo. Nada, absolutamente nada, justifica que um acusado,
ainda que condenado por um juiz de piso permaneça preso preventivamente por
meses e até anos aguardando o julgamento em definitivo. Neste sentido já
decidiu o STF:
"HABEAS
CORPUS" - DECRETAÇÃO DE PRISÃO CAUTELAR - PRISÃO CAUTELAR QUE SE PROLONGA
DE MODO IRRAZOÁVEL - INADMISSIBILIDADE - EXCESSO DE PRAZO IMPUTÁVEL AO PODER
PÚBLICO - VIOLAÇÃO À GARANTIA CONSTITUCIONAL DO "DUE PROCESS OF LAW"
- DIREITO QUE ASSISTE AO RÉU DE SER JULGADO DENTRO DE PRAZO ADEQUADO E RAZOÁVEL
- PEDIDO DEFERIDO. EXCEPCIONALIDADE DA PRISÃO CAUTELAR. - A prisão cautelar -
que tem função exclusivamente instrumental - não pode converter-se em forma antecipada
de punição penal. A privação cautelar da liberdade - que constitui providência
qualificada pela nota da excepcionalidade - somente se justifica em hipóteses
estritas, não podendo efetivar-se, legitimamente, quando ausente qualquer dos
fundamentos legais necessários à sua decretação pelo Poder Judiciário. O
JULGAMENTO SEM DILAÇÕES INDEVIDAS CONSTITUI PROJEÇÃO DO PRINCÍPIO DO DEVIDO
PROCESSO LEGAL. - O direito ao julgamento, sem dilações indevidas, qualifica-se
como prerrogativa fundamental que decorre da garantia constitucional do
"due process of law". O réu - especialmente aquele que se acha
sujeito a medidas cautelares de privação da sua liberdade - tem o direito
público subjetivo de ser julgado, pelo Poder Público, dentro de prazo razoável,
sem demora excessiva nem dilações indevidas. Convenção Americana sobre Direitos
Humanos (Art. 7º, ns. 5 e 6). Doutrina. Jurisprudência. - O excesso de prazo,
quando exclusivamente imputável ao aparelho judiciário - não derivando,
portanto, de qualquer fato procrastinatório causalmente atribuível ao réu -
traduz situação anômala que compromete a efetividade do processo, pois, além de
tornar evidente o desprezo estatal pela liberdade do cidadão, frustra um
direito básico que assiste a qualquer pessoa: o direito à resolução do litígio,
sem dilações indevidas e com todas as garantias reconhecidas pelo ordenamento
constitucional. (HC 83773 / SP - Rel.
Min. CELSO DE MELLO. DJ 06-11-2006)
Ressalte-se
que, embora a lei processual não fixe um prazo determinado de duração da prisão
preventiva, como fez com a prisão temporária, por exemplo, “há que se observado
o prazo previsto a pratica dos atos processuais referentes ao réu preso,
estabelecidos legalmente para cada situação processual”. [2]
Não
sendo despiciendo lembrar que a garantia da razoável duração do processo já
vinha previsto na Convenção Americana de Direitos Humanos em seu artigo 8.1., a
qual foi subscrita pelo Brasil.
Note-se
que, desde meados de 2011 vigora no ordenamento jurídico processual penal a Lei
12.403/11, que trata da prisão preventiva e de outras cautelares penais. Com a
vigência da referida lei o setuagenário Código de Processo Penal (Decreto-Lei
3.689, de 3 de outubro de 1941) passou a admitir o uso de outras medidas —
proibição de acesso ou frequência a determinados lugares, proibição de manter contato com pessoa determinada,
prisão domiciliar, suspensão do exercício da função pública ou de atividade de
natureza econômica ou financeira, monitoração eletrônica etc. — bem menos
traumáticas e agressivas que a prisão preventiva.
A
prisão preventiva que pode ser decretada como garantia da ordem pública, da
ordem econômica, por conveniência da instrução criminal ou para assegurar a
aplicação da lei penal, quando houver prova da existência do crime e indício
suficiente de autoria, continua prevista em lei, mas deixou de ser a única
medida da qual dispõe o magistrado para assegurara a ordem do processo. Agora,
mais do que antes, entende-se que a prisão preventiva somente poderá ser
decretada quando não for cabível a sua substituição por outra medida cautelar,
passando a ser a extrema e ultima ratio entre as medidas cautelares. [3]
Quando
a prisão preventiva — medida amarga, hostil e extrema — se converte em
antecipação da tutela penal, em instrumento de investigação ou em moeda de
troca para obtenção de delações, o processo penal deixa de ser democrático, se
distancia do Estado de direito e se aproxima cada vez mais dos processos
autoritários e de exceção, próprios dos regimes fascistas.
[1] ROSA, Alexandre
Morais da. Guia compacto do processo penal conforme a teoria do jogos. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013.
[2] GIACOMOLLI, Nereu
José. Prisão, liberdade e as cautelares alternativas ao cárcere. São Paulo:
Marcial Pons, 2013.
[3] BARROS, Flaviane de
Magalhães e MACHADO, Felipe Amorim. Prisão e medidas cautelares: nova reforma
do processo penal. Belo Horizonte: Del Rey, 2011.
Leonardo
Isaac Yarochewsky é advogado criminalista e doutor em Ciências Penais.
Revista
Consultor Jurídico
http://www.conjur.com.br/2017-mai-05/yarochewsky-gostem-ou-nao-estado-liberdade-regra
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