A
imprensa brasileira parodiou Sartre: os golpes são os outros.
O
desespero da mídia brasileira para tirar o foco do desastre ferroviário do
governo Temer, que está fazendo uma pedalada fiscal por dia, deteriorando todos
os índices sócio-econômicos do país a uma velocidade recorde, faz com ela se
volte inteiramente para a questão da Venezuela, cuja conjuntura política sempre
foi deturpada para os brasileiros.
***
No Jornal GGN
O Fantasma do
Golpe Perfeito, por Jair Pinheiro
“Corte
alinhada com Maduro assumiu funções do Congresso”, é a manchete do UOL hoje,
01/14/17, data adequada para a pós-verdade. De um só golpe a manchete difunde a
ideia de que dois pilares básicos da democracia foram atacados: o rompimento da
divisão dos poderes e a usurpação da independência do judiciário e,
imediatamente, a falsa notícia é disseminada por toda América Latina,
curiosamente sem citar fontes venezuelanas.
Aos
fatos, pois! Dois deputados oposicionistas a Maduro vinham sendo investigados
por crime eleitoral, desde as eleições de 2015. Terminado o processo, o TSJ –
Tribunal Supremo de Justicia, após responsabilizá-los, determinou à Assembleia
Nacional as providências para a cessação do mandato. Ante a recusa da AN de
cumprir a ordem judicial, o tribunal tomou para si, o que a lei venezuelana
permite, as funções estritamente vinculadas ao cumprimento da ordem judicial,
preservando as prerrogativas do legislativo. Em seguida, num movimento
aparentemente coordenado, diversos líderes oposicionistas deixaram o país em
direção a diferentes países (Colômbia, Panamá, México, EUA e Espanha).
Enfim,
está montada a cena do golpe perfeito: as manchetes insinuam uma dissolução do
legislativo que não houve, os comentários dos mal-denominados especialistas e
de âncoras celebridades ratificam e o movimento de líderes oposicionistas
deixando o país, e dando entrevistas no aeroporto pedindo apoio internacional,
confirmam: rompeu-se a ordem constitucional no país vizinho.
Na
sequência, as manchetes reiteram o que parece ser um desdobramento natural:
“Argentina pede reunião do Mercosul para discutir crise venezuelana”, “Brasil
(não é piada) pede suspensão da Venezuela do Mercosul”, “Peru pede retirada de
embaixador venezuelano”. Portanto, no plano discursivo vai se criando o
isolamento internacional do país vizinho, na expectativa de que tal isolamento se
concretize, um dos quesitos normalmente aceitos pelos bem-pensantes senhores
que se arrogam o papel de representantes da comunidade internacional para
justificar a intervenção imperialista contra governos que se opõem ao império.
A
esta altura já estamos muito distantes dos fatos, mas estes nunca tiveram
importância mesmo, a não ser como referência a ser superficial e maliciosamente
aludida para criar a ilusão reconfortante de que se está restabelecendo a ordem
constitucional, quando, o que se visa de fato, é alterá-la. É neste contexto de
manobra alusão/ilusão que a imprensa informa como algo excepcional e não
prerrogativa do cargo, que a fiscal geral (equivalente a procurador geral da
república) Luisa Ortega Díaz considera inconstitucional as sentenças de número
155 e 156 e pede a revisão à Sala Constitucional do TSJ (equivalente ao nosso
STF na função, mas melhor na execução) a anulação. Passados poucos minutos da
meia-noite, Maduro anuncia deliberação do Conselho de Defesa da Nação de, entre
outras coisas, “Exhortar al Tribunal Supremo de Justicia a revisar las
decisiones 155 y 156, con el propósito de mantener la estabilidad institucional
y el equilibrio de Poderes, mediante los recursos contemplados en el
ordenamiento jurídico venezolano.”
Oportuno
registrar que, em seu pronunciamento, Maduro cita a anulação pela corte suprema
do plebiscito na Colômbia para ratificar o acordo de paz com as FARC, medida de
grande gravidade por anular o voto popular, sem que nenhuma agência
multilateral ou liderança regional tenha proposto intervenção no país vizinho,
o que, a seu ver, está correto, pois trata-se de problema interno do povo
colombiano.
Cumpre
anotar que o Conselho de Defesa Nacional tem sua existência estabelecida pelo
artigo 323 da Constituição venezuelana e é composto pelo presidente da
república, que o preside, o vice-presidente, o presidente da AN, o presidente
do TSJ, o presidente do Conselho Moral Republicano (órgão sem equivalência no
sistema brasileiro) e os ministros dos setores de defesa, segurança interna,
relações exteriores, planejamento e outros cuja participação se considere
pertinente. Portanto, a ordem constitucional está preservada segundo
disposições e instrumentos estabelecidos, algo bem distante das medidas de
exceção que se vão tornado rotina no Brasil. Entretanto, não será surpresa se
este desdobramento constitucionalmente previsto for anunciado pela imprensa
brasileira como vitória da oposição venezuelana e resultado da pressão
internacional.
Jair Pinheiro
– Professor do depto. de ciência política da UNESP/Marília
http://www.ocafezinho.com/2017/04/01/sobre-venezuela-para-imprensa-brasileira-golpe-sao-os-outros/
Nenhum comentário:
Postar um comentário